1. Abertura.
«Is there a new regime of images like that of automatism?»
Gilles Deleuze
«A representação do mundo anuncia a sua possível destruição. Que podemos fazer? Temos de aprender a ler as imagens de maneira produtiva.»
Harun Farocki
A mais importante característica das imagens técnicas, segundo Flusser (1998), é o facto de materializarem determinados conceitos a respeito do mundo, justamente os conceitos que nortearam a construção dos aparelhos que lhes dão forma. Assim, a fotografia, muito ao contrário de registar automaticamente impressões do mundo físico, transcodifica determinadas teorias científicas em imagens.
No decorrer deste ensaio, e enquanto sintoma do desaparecimento de uma ontologia estável da imagem, pretende-se examinar a hipótese de uma transdução da percepção visual num novo regime da imagem e da visão sintética.
Procuraremos igualmente estabelecer a rede conceptual que nos permita desenvolver uma síntese da noção de imagem especulativa num enquadramento teórico que se vem designando como pós-media, designadamente no contexto neocibernético.
2. Visão Maquínica, Algoritmos e Percepção Sintética.
«Unless you are Paul Klee, it is not easy to imagine artificial contemplation, the wide-awake dream of a population of objects all busy staring at you.»
Paul Virilio
«How is the body, including the observing body, becoming a component of new machines, economies, apparatuses, whether social, libidinal, or technological? In what ways is subjectivity becoming a precarious condition of interface between rationalized systems of exchange and networks of information?»
Jonathan Crary
Lev Manovich, numa crónica intitulada «The Algorithms of Our Lives»1, questionava:
How does the software we use influence what we express and imagine? Shall we continue to accept the decisions made for us by algorithms if we don’t know how they operate? What does it mean to be a citizen of a software society? Who benefits from the analysis of the cultural activities of hundreds of millions of people? Automatic targeting of ads on Google networks, Facebook, and Twitter already uses both texts of users’ posts or emails and other data, but learning how hundreds of millions of people interact with billions of images and socialnetwork videos could not only help advertisers craft more-successful visual ads but also help academics raise new questions.»
Termos como visão pós-humana, percepção sintética ou inteligência artificial têm sido facilmente conotados — designadamente no contexto de uma tecnicidade fetichista, ou na defesa do evento disruptivo da singularidade (http://singularityu.org/) — com sistemas autónomos e independentes do ser humano. Todavia, para Matteo Pasquinelli, «the design of artificial intelligence is still a product of the human intellect and therefore a form of its augmentation.» (Pasquinelli, 2015, p. 12).
A cognição algorítmica é hoje central a um tecnocapitalismo que se apropriou dos mecanismos psicológicos do comportamento-cognição-afecção (ciberbehaviorismo) e que integra a retroalimentação implícita ao colectivo sociotécnico (neurofeedback) enquanto parte da equação política e ideológica do neoliberalismo que pretende anular todas as pretensões históricas do materialismo dialéctico, afastando assim a conflitualidade e os antagonismos sociais do centro da esfera política. Esta neutralização do agonismo político é o corolário da construção da cibernética enquanto dialéctica sem comunismo (Pinto, 2015, p. 33). Da racionalização absoluta do trabalho e das relações sociais ao sector financeiro, os algoritmos subjazem às novas modulações do pensamento e do controlo.
«Automated cognition in the age of algorithmic capitalism […] digital automation has come to correspond to cognitive and affective capital. With this, the logic of digital automation has entered the spheres of affects and feelings, linguistic competences, modes of cooperation, forms of knowledge, as well as manifestations of desire. Even more, human thought itself is said to have become a function of capital. In this automated regime of affection and cognition, capacities are measured and quantified through a general field defined by either money or information. By gathering data and quantifying behaviors, attitudes, and beliefs, the neoliberal world of financial derivatives and big data also provides a calculus for judging human actions, and a mechanism for inciting and directing those actions.» (Parisi, 2015, 126).
Contudo, nem as propostas de Lazzarato acerca da construção do homem endividado (Lazzarato, 2012), nem as teorias farmacológicas e tecnocapitalistas de Stiegler (Stiegler, 2014) conseguem dar conta das transformações no campo da automação algorítmica que incluem hoje elementos incomputáveis2, e que excedem a mera instrumentalização da razão humana para fins de controlo ideológico e poder simbólico.
A construção algorítmica da imagem e o rápido desenvolvimento das capacidades de processamento sintético da imagem digital vêm criando novas formas de ver e representar o mundo, dependentes da potência de computação, reconfigurando as relações entre observador-objecto-mundo e os respectivos regimes de representação culturalmente estabelecidos. Jonathan Crary, na sua obra de 1990 (Techniques of the Observer: on Vision and Modernity in the Nineteenth Century) elencava já os media modernos capazes de realocar a visão em novos modos de ver, ou modelos de visualização, num plano transcendente ao do mero observador humano.
«Computer-aided design, synthetic holography, flight simulators, computer animation, robotic image recognition, ray tracing, texture mapping, motion control, virtual environment helmets, magnetic resonance imaging, and multispectral sensors are only a few of the techniques that are relocating vision to a plane severed from a human observer.» (Crary, 1990, p. 2)
A deslocação do visível para o campo da cibernética é a condição do modelo dominante de produção das imagens e da industrialização do não-olhar, de acordo com as necessidades das indústrias da informação, militares, médicas ou do entretenimento.
«Most of the historically important functions of the human eye are being supplanted by practices in which visual images no longer have any reference to the position of an observer in a “real”, optically perceived world. If these images can be said to refer to anything, it is to millions of bits of electronic mathematical data. Increasingly, visuality will be situated on a cybernetic and electromagnetic terrain where abstract visual and linguistic elements coincide and are consumed, circulated, and exchanged globally.» (Crary, 1990, p. 4)
Cada vez com maior capacidade de análise e auto-aprendizagem, os machine learning algorithms são já hoje um processo dominante da burocracia automatizada (quem dá a ver o quê e a quem?) cujo poder de inculcar silenciosamente padrões de comportamento individualizados, mas em massa, emergem como padrão computacional (sociedade de controlo) e já não como norma institucional (sociedade disciplinar).
Os avanços no campo dos algoritmos de aprendizagem automática quando aplicados ao universo da «tradução» de imagens são hoje capazes de gerar descrição natural (linguagem humana) através da tecnologia da Google (!!!Img. 4.!!!), conjugando diversas linhas de investigação na área da inteligência artificial (computer vision, neural networks, deep learning, natural language processing, genetic algorithms e machine translation). Em síntese, trata-se de um sistema que permite, através do uso de redes neurais3, o reconhecimento e a interpretação automática de imagens e a produção de frases gramática e semanticamente próximas da descrição humana.
Quer seja para uma utilização recreativa, quer em simuladores de guerra para fins de treino dos operacionais militares ou em terapias de stress pós-traumático, o ecrã «cria uma nova liturgia onde se jogam novas transubstanciações […] o ecrã instaura uma nova relação entre a mimesis e a ficção» (Mondzain, 2009, p. 42), dando assim lugar a um dispositivo com poderes fusionais e confusionais na constituição do imaginário sintético e fantasmático da pós-modernidade, impondo toda uma nova logística da percepção (Virilio, 1994, p. 70) capacitada para introduzir as invisibilidades de uma perceção/visão sintética, que é em si mesma a reprodução de uma cegueira tóxica e voluntária, contaminando o horizonte da visão e do conhecimento e, consequentemente, forma última da industrialização: a industrialização do não-olhar (idem, p. 73).
Como sublinha Crary, os problemas da visão sempre se constituíram ao longo dos tempos como questões acerca do corpo e da sua subjugação às operações do poder social, com especial ênfase nas transformações ocorridas no século XIX, designadamente na redefinição do estatuto do sujeito-observador, da percepção e do regime escópico correlativo. (Crary, 1990)
Trevor Paglen4, artista que acompanhou de perto a ultima fase da carreira de Harun Farocki, designadamente na sua derradeira exposição, Visibility Machines5, reconhece que actualmente as imagens operativas se tornaram invisíveis, sem que contudo tivessem deixado de operar sobre a realidade: «It became clear that machines rarely even bother making the meat-eye interpretable versions of their operational images that we saw in Eye/Machine. There’s really no point. Meat-eyes are far too inefficient to see what’s going on anyway» (Paglen, 2014).
Este desaparecimento, apesar de tudo, remete-nos para uma noção de fotografia expandida, que podemos encontrar em Vilém Flusser e Paul Virilio. Com a imagem digital e o seu processamento através de software, a noção de programa e de utilizador (funcionário) visados por Vilém Flusser ganham, com as imagens operativas, um novo significado. É que estas imagens não requerem já o «funcionário» para serem produzidas e actuantes. A imagem digital (fotografia e vídeo) enquanto «máquina de visão» — seeing machines (Paglen, 2014b6) — abrange hoje praticamente todas as tecnologias de produção de imagem, desde os iPhones, scanners de segurança de aeroportos, reconhecimento eletro-ótico a partir de satélites, leitores de código QR, câmaras de vigilância de reconhecimento facial, sistemas de reconhecimento automático de matriculas, Google Street View, etc. Esta definição tem ainda de incluir toda uma rede de elementos actantes (Latour, 2005), tais como os metadados associados às imagens, os protocolos de comunicação, software, algoritmos e sistemas de arquivo.
Era previsível que a conquista do mundo como imagem (Heidegger, 2002, p. 117), o crime perfeito realizado através da atualização do mundo, de todos os acontecimentos e actos em informação pura (Baudrillard, 1996, p. 49), fosse efetivada pelo derradeiro estágio das tecnologias visiónicas (Virilio, 1994, p. 59) através da produção da imagem sintética não destinada ao olho humano biológico, mas à visão artificial construída pela ideologia cibernética do controlo.
Hoje é impossível, se concordarmos com Paul Virilio, descrever o desenvolvimento do audiovisual sem falar também sobre o desenvolvimento do imaginário virtual e da sua influência no comportamento humano, ou sem apontar para a nova etapa da industrialização da visão e para o crescimento de um verdadeiro mercado da perceção sintética, com todas as questões éticas que isso implica, nomeadamente em relação aos sistemas de controle e vigilância: «Having no graphic or videographic outputs, the automatic-perception prosthesis will function like a kind of mechanized imaginary from which, this time, we would be totally excluded» (idem, p. 60).
As problemáticas levantadas por esta nova categoria de imagem no contexto neocibernético em que operam, mais precisamente numa semioesfera em que «data are not numbers but diagrams of surfaces, new landscapes of knowledge that inaugurated a vertiginous perspective over the world and society as a whole: the eye of the algorithm, or algorithmic vision» (Pasquinelli, s/d, p. 2), são de vária ordem: que novos tipos de conhecimento serão produzidos a partir destas imagens? Que parte do conhecimento tradicional pode ser transformado e que parte pode simplesmente desaparecer por completo? Mas vejamos também as questões levantadas pelo próprio Matteo Pasquinelli:
«How does one address a form of power that is absorbing social data like a cyclone sucks up the water of the oceans? How does one face the monopolies of planetary computation without access to computing power and data centers? Alternatively, how realistic are the tactics of obfuscation and dissimulation in the long term? Is invisibility really necessarily the best strategy to embrace? Can the datascape be subverted to claim a political autonomy of data, as data activism is starting to address today?»
Num outro aspecto complementar, a relação entre a visão e a imagem já não pode ser tomada como a directriz da construção do conhecimento tal como vinha sendo promovido desde o iluminismo (ocularcentrismo), uma vez que o processamento de imagem por computadores já não é sustentado pela semântica antropológica do olho humano. Consequentemente, Ernst e Farocki sugerem recuperar, para a teoria dos media, a análise do discurso de Michel Foucault e a teoria matématica da comunicação de Claude Shannon, pois pela primeira vez o arquivo mundial das imagens pode organizar-se a si mesmo, sem recurso à semântica dos metadados, mas de acordo com critérios adequados às estruturas de dados endógenas a cada arquivo, «a visual memory in its own medium (endogenic)» (Ernst e Farocki, 2004, p. 262).
Com o incremento das operações transdutivas no contexto da neocibernética, o resultado é o aparecimento de um novo tipo de imagem que já não representa a solidez material do mundo (hardimage7), mas antes uma instável configuração algorítmica de bases de dados e fragmentos de código transcodificados em imagens numéricas (softimage8).
Quase um século após o desenvolvimento da visão computacional, as máquinas de visão atingiram um grau de autonomia tal que prescindem dos operadores humanos que lhes guiem a visão artificial, dispensando de igual modo os espectadores humanos de visualizarem as suas imagens. Tal como Hoelzl e Marie (2016) resumem, «that is, we will move from the “kinoeye” as a supplement to human vision to the robotic eye as a substitute to human vision: from the eye that sees to show, to the eye that sees for itself (or for other nonhumans)».
3. Para uma Teoria da Imagem Especulativa.
«The brain has lost its Euclidean co-ordinates, and now emits other signs.»
Gilles Deleuze
«The making of a global datascape is calling for a new epistemic eye.»
Matteo Pasquinelli
A designada «Nova Estética» (New Aesthetics9), que ironicamente Bruce Sterling descreve como «one thing among a kind: it’s like early photography for French Impressionists or like silent film for Russian Constructivists, or like abstract-dynamics for Italian Futurists»10, sendo uma estética da cegueira ou do não-visual, cujas raízes podemos encontrar em William J. T. Mitchell (There Are No Visual Media) e Friedrich Kittler (There Is No Sofware), coloca-nos perante as seguintes questões elecadas por Shintaro Miyazaki: «what does seeing like digital devices mean, when the visual sense is excluded? what does seeing or perception in general mean, when we concentrate on the non-visual senses? Is machinic seeing like human seeing?» (Miyazaki, 2015, p. 221).
Do ponto de vista técnico, ou de uma filosofia da técnica, a Nova Estética é ainda devedora do pensamento de Gilbert Simondon, e de noções e processos como transdução, modulação, homeostase ou feedback. Entre outras, estas inovações conceptuais, e os seus desenvolvimentos tecno-cientificos, permitiram a expansão das próteses cibernéticas dos processos neuronais associados à imagem e à visão. De facto, é devido ao exponencial desenvolvimento dos algoritmos genéticos, e ao seu uso nos processos de produção de imagens e da percepção sintética, que podemos afirmar que a Nova Estética significa, antes de mais, produção digital e computação de ficheiros de imagens (pixeis).
Trevor Paglen designa como scripts a função básica e óbvia de um sistema de imagem sintético, o seu estilo de ver. Um script é então um conjunto de procedimentos que as máquinas de visão (seeing machines) efectuam para ver, perceber e operar no mundo (Paglen, 2014b). Aqui a separação lacaniana entre o olhar (gaze) digital da câmara e o olho humano faz sentido, pois não só o olhar da câmara manifestamente apreende o que o olho humano não consegue, mas o olho humano também parece notavelmente deficiente devido à sua construção histórica e institucional, havendo portanto razão em afirmar que a cegueira humana se confronta doravante com o aperfeiçoamento da percepção sintética.
A produção (processamento) autopoiética da imagem digital — no contexto neocibernético acima referido — vem ganhando autonomia face às operações que envolvem humanos11. As imagens propagam-se hoje automaticamente, e ao nível do seu elemento básico — o pixel12 – são geridas por protocolos maquínicos e algoritmos geradores daquilo que Hansen designa como «Post-Perceptual Images» (Hansen, 2016, p. 18).
É nas práticas de pós-cinema que melhor se evidencia esta dimensão aperceptual e metamórfica das imagens. O cinema de Michael Bay, designadamente na sequela de Transformers, é elucidativo da actual descorrelação entre as imagens e a subjectividade humana incorporada e suas perspectivas (fenomenológica, narrativa e visual), configurando um inaudito post-perceptual media regime: «a radically nonhuman ontology of the image, where these images’ discorrelation from human perceptibility signals an expansion of the field of material affect: beyond the visual or even the perceptual, the images of postcinematic media operate and impinge upon us at what might be called a “metabolic” level.» (Denson, 2016, p. 2).
Mas o que é realmente revolucionário na tendência para a invisibilidade da computação é a crescente imbricação entre a técnica e a afecção, mais especificamente a existência de fluxos informacionais impercetíveis à consciência humana, revelando-se assim, de acordo com Mark B. N. Hansen, a centralidade da microtemporalidade constituinte do sensório da experiência contemporânea.
«This microtemporal and imperceptible dimension of ubiquitous computational environments can never be brought into the sphere of direct, conscious attention and awareness: rather, it impacts sensory experience unconsciously, imperceptibly, in short, at a level beneath the threshold of attention and awareness. It impacts sensory experience, that is, by impacting the sensing brain microtemporally, at the level of the autonomous sub‐processes or microconsciousnesses, that comprise the infrastructure of seamless and integrated macroconscious experience.» (Hansen, 2012)
Se por um lado o processamento autopoiético da imagem digital se concretiza numa esfera transcendente (imperceptível) à percepção humana, escapando à consciência e à cognição humanas, por outro as propriedades cognitivas emergentes das máquinas de visão (cognitive vision) levam-nos para além dos limites humanistas e antropocêntricos, e aproximam-nos de uma perspectiva pós-humanista dos conceitos de visão e imagem: «It takes us to a point where human vision is only one among many possible sentient systems and where we need to reconsider what images (and imaging) means with regard to non-visual sentient systems» (Hoelzl e Marie, 2016).
Neste ponto, pós-imagem (postimage13) e visão pós-humana constituem-se enquanto confluência da cognição automatizada promovida pelo tecnocapitalismo, dando assim lugar a um «new alien mode of thought, able to change its initial conditions and to express ends that do not match the finality of organic thought» (Parisi, 2015, p. 136).
«I think that is the problem. It is often quite difficult to conceive of media without a viewing subject.
Orit Halpern: I mean, I don’t know if we ever will, but I think as a thought experiment it’s interesting to ask.» (Eddie Lohmeyer, International Journal of Communication 10 (2016)14
Se perceber o meio-ambiente é inventá-lo, como diz von Foerster16, então é isso que fazem as máquinas de visão através das operações transdutivas da Imagem Especulativa: especulando, percebendo e recriando a bioesfera cibernética que habitamos; programando e produzindo o visível; quantificando o mundo sensível; analisando dados biométricos, reconhecendo pessoas e coisas automaticamente; modulando comportamentos (ciberbehaviorismo16); gerindo a homeostase na relação entre os actantes da rede; manipulando estados emocionais; criando mundos virtuais e simulacros da realidade; captando e transformando o mundo17, etc.
É a Imagem Especulativa que permite a mediação entre dois regimes escópicos e perceptivos complementares, paralelos e correlacionáveis, o do humano e o da inteligência artificial. É a imagem produzida pelo dispositivo tecno-estético, uma imagem dinâmica, de alta performance digital, flexível e que induz perceções adequadas individualmente a cada consciência humana e por isso também induz comportamentos, ideias, alucinações, emoções, etc. A Imagem Especulativa possibilita a mediação entre a mente humana (e os seus correlatos neuronais) e a mente artificial (sintética) que insiste em dialogar connosco18.
Não se trata somente de um agenciamento humano, mas de uma co-operação entre sistemas técnicos, produtores e receptores de imagens, cujo produto vetorial resulta na criação de um contexto onde nós, os pós-humanos, não estamos diante das imagens, «nós estamos entre elas, assim como elas estão entre nós. A questão é saber como nos movemos entre elas, como as fazemos circular.» (Ranciére, 2010, p. 94).
Na carta a Serge Daney, Deleuze (2003, pp. 99-114) refere-se a uma terceira idade, ou terceiro estado da imagem, como aquele em que já não há nada para ver por detrás, sobre ou dentro dela, mas quando a imagem desliza sempre sobre uma imagem preexistente, quando o fundo da imagem é sempre já uma imagem.
No campo da imagem cinemática, a emergência de um cinema consciente, dotado de competências especulativas, hibridação entre cinema e inteligência artificial, vem sendo desenvolvido, na esteira do cinema expandido (Youngblood) e da imagem-tempo (Deleuze), enquanto máquina de visão cognitiva.
«A “conscious cinema” — an enhanced cinema that deploys prospective artificially conscious technology — cannot be discounted. Given the increasing proximity of artificial intelligence and interactive entertainment, we can expect a great deal of theorisation to emerge on the subject of mind-technology integration in the field of sentient entertainment systems, with an extension of current debates in AI about the degree to which cognition can be understood as an internalised or an externalised process.» (Pepperell, 2006, p. 193)
Contudo, por muito que aqui pudéssemos especular em torno de uma teoria da Imagem Especulativa, chegaríamos certamente a uma conclusão semelhante à de Jacques Ranciére: «a expressão “imagem pensativa” não é evidente» (Ranciére, 2010a, p. 157). A «imagem pensativa» a que Ranciére alude é resultante de uma heterogénese enquanto novo estatuto da figura e um «terceiro modo de pensar a rotura estética: um modo que não é a supressão da imagem na presença directa, mas a sua emancipação em relação à lógica unificadora da acção(…)» (idem, p. 177).
O vídeo assume, segundo Ranciére, este paradigma, até porque a imagem vídeo já não era realmente uma imagem em sentido estrito. Com efeito, a imagem vídeo destruiu aquilo que seria a própria especificidade da imagem, a sua passividade adequada às significações do espetáculo do visível. No vídeo há toda uma série de «formas metamórficas que se apresentam como explicitamente como artefactos, como produções do cálculo e da máquina […] seres feitos de puras vibrações luminosas […] vagas electrónicas […] que sofrem uma dupla metamorfose que faz delas o teatro de uma pensatividade inédita.» (idem, p. 184)
Para Ranciére, a pensatividade da imagem designa algo que resiste ao pensamento humano, ao dos criadores e espectadores das imagens, e talvez seja por isso mesmo que o autor afirma que a «imagem não deixará tão depressa de ser pensativa» (idem, p. 190).
Esta resistência da pensatividade na imagem digital especulativa é, afinal, uma inversão da correlação humanista, unidirecional, entre o pensamento (subjectividade) e o ser (objectividade), pois, como vimos acima, é intrínseca às máquinas de visão (visão cognitiva, perceção sintética) uma intencionalidade algoritmíca da subjetividade maquínica, uma vez que o desenvolvimento da inteligência artificial permite analisar e perceber o meio-ambiente (neo)cibernético (cognisfera19), e assim inventá-lo através de agenciamentos múltiplos.
As máquinas cognitivas deixaram assim de ser meros objetos utilitários ao dispor da subjectividade humana para se tornarem produtoras de alteridade técnica, percepção sintética e cognição ubíqua, i. e., de incorporação cibernética da mente. Resumindo de outra forma, por Edmond Couchot:
«The position of object, image, and subject is no longer linear. Through the interfaces, the subject hybridizes himself with the object and the image. A new feature of subjectivity is appearing. According to Roy Ascott, for example, subjectivity is no longer localized in a sole point in the space but distributed through the networks; according to Siegfried Zelinski, subjectivity is the possibility of action at the frontier of the networks; according to Pierre Lévy, subjectivity has become fractal; Derrick de Kerckhove speaks of “borrowed subjectivity”, the possibility of “alienarization”. Therefore a new perceptive habitus is emerging.» (Cochout, 2007, p. 183)
O algoritmo que reconhece a beleza em retratos fotográficos20 é apenas um dos exemplos possíveis no interior da plêiade de agentes maquinícos disponíveis para especular e intervir no mundo que ainda há instantes era pouco mais do que humano, demasiado humano.
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Uricchio, William (2011). «The Algorithmic Turn: Photosynth, Augmented Reality and the Changing Implications of the Image». Visual Studies, vol. 26, n.º 1, Março.
Notas
1 http://chronicle.com/article/The-Algorithms-of-Our-Lives-/143557/
2 Gregory Chaitin, «The Limits of Reason». Scientific American 294 (3), 2006: 74–81.; Gregory Chaitin, «The Halting Probability Omega: Irreducible Complexity in Pure Mathematics». Milan Journal of Mathematics 75 (1), 2007: 291–304.
3 «We owe to connectionism, among other things, the invention of “neural networks”: computer-calculated virtual networks simulating living cells that behave-because of the way they are interconnected-in a way none of them would behave if they were taken in isolation. This is referred to as “emergent” behavior. Neural networks are able to develop “cognitive strategies” and to find nonprogrammed solutions when they are placed in certain situations […] At the basis of neural nets and of genetic algorithms, the same principle prevails: that of highly complex interactivity between constituent elements of artificial life and intelligence (genes and neurons) that, thanks to their configuration, interact in order to produce emergent phenomena.» (Couchot, 2016, p. 185)
5 http://www.umbc.edu/cadvc/exhibitions/VisibilityMachines.php
6 «The digital image that shows on a screen is not only a luminous surface that the eyes see, it is also the product of a calculation, a program and a machine.» (Chouchot, 2007, p.183)
7 Acerca da distinção entre hardimage e softimage, vide Ingrid Hoelzl e Rémie Marie (2016). «Posthuman Vision». in Proceedings of the 22nd International Symposium on Electronic Art ISEA2016, Hong Kong.
8 «From our earlier definition of the image as program (softimage) we arrive in fact at a very large definition of the image: understood as the relation of data and of algorithms that are engaged in an operation of data gathering, processing, rendering, and exchange.» (Hoelzl e Marie, 2016)
09 https://en.wikipedia.org/wiki/New_Aesthetic
10 http://www.wired.com/2012/04/an-essay-on-the-new-aesthetic/
11 «Thus, images — that is to say, the virtual semiotic objects composing them — became capable of behaving like more or less sensitive, “intelligent”, and lively artificial beings- more or less autonomous beings. Let’s understand “autonomous” to mean capable of creating its own laws.» (Couchot, 2007, p. 184)
12 «The pixel is the operator, in our 21st-century media culture, of a fundamental transformation of the image that, I shall argue, begins to operate without being phenomenally apprehended.» (Hansen, 2016, p. 20)
13 «The postimage, then, is (or will be) not an objective (photographic) or subjective (human-centred) image, but a whatever image or better, a common image.» (Ingrid Hoelzl e Rémi Marie, «From the Kino-Eye to the Postimage», 2016)
14 in «Cinema/Cybernetics/Visuality: A Conversation with Orit Halpern».
15 «When we perceive our environment, it is we who invent it.» (Clark e Hansen, 2009, p.5)
16 «O qual tem vindo a implementar-se como meio-ambiente cibernético imersivo, ubíquo e holístico, isto é, que procura agir em todo o ciclo do processo de feedback, automatizando a administração de inputs lógicos e afectivos (racionalidade e emoção) na expectativa de recolher outputs calculáveis e preemptivos (através do uso de algoritmos genéticos), e assim exercer uma forma de controlo difuso e manter a homeostase — equilíbrio meta-estável — nos colectivos sociotécnicos (redes telemáticas).» (Cf. Rui Matoso, «Redes, Cibernética e Neuropoder: Breve Estudo do Contexto Cibernético Actual», 2015.
17 «Google Cloud Vision API enables developers to understand the content of an image by encapsulating powerful machine learning models.»
18 O filme Her (2013) desvenda um pouco deste diálogo «interespécies», neste caso, uma relação amorosa entre um ser humano e um sistema operativo dotado de inteligência artificial. Cf. http://www.wired.com/insights/2014/02/can-build-samantha-tells-us-future-ai/
19 Cognisfera é um termo que permite identificar um ecossistema de interconexão cognitiva, no qual as máquinas e os organismos humanos estão cada vez mais integrados.
20 https://medium.com/the-physics-arxiv-blog/the-algorithm-that-sees-beauty-in-photographic-portraits-435ab8064646#.kl6c6pisq
Nota: o ensaio agora publicado é uma versão reduzida, cuja versão integral pode ser acedida através do url: https://www.academia.edu/27418868/A_Imagem_Especulativa