O Som em Bits: A Repercussão das Plataformas Digitais na Música

A Invisível Presença Cultural do Som.

O som representa o primeiro grande contágio comunicacional. Antes da articulação da mensagem pela linguagem transmitida oralmente pela palavra, já a repercussão da combinatória de diferentes sons e ritmos formava culturas e dava início à formação de civilizações. A música e a sua história evolutiva traçam caminhos e mapas de sentido que incitam a viagens por modos de estar, de viver, de pensar. Os trilhos do som, ou melhor, da sonoridade, reenviam os nossos sentidos para os primórdios do ajuntamento de seres pensantes, da partilha, da comunhão, em que dois ouvidos escutam e respondem mais eficientemente do que um e, por isso, da comunicação.

A rapidez e eficiência do armazenamento e transmissão de matéria por via digital coaduna-se impreterivelmente com este estado primário de união dos espíritos que a música e a cultura oral pareciam oferecer. Contudo, a actividade contemporânea de «ouvir música» tornou-se uma experiência seccionada, codificada pela semântica dos géneros musicais e das teorias da classificação. Os enleios do uso da tecnologia digital e da rede fazem parte de um estado que George Steiner define através do conceito de «pós-cultura». O presente em que vivemos resulta da tomada de consciência de que a História não é linear, as hierarquias teóricas e o conhecimento são inadequados a uma aplicação tangível. De um modo geral, já não existe uma hierarquia de valores, uma dualidade perceptível entre a cultura ocidental e as restantes, a alta ou baixa cultura, a civilização desenvolvida ou subdesenvolvida, as classes, os sexos e os papéis sociais. Todos estes gradientes, outrora úteis e denotando uma cultura ocidental omnipotente, diluem-se caoticamente na era do digital e da Internet.

Antes do primeiro grande meio de comunicação de massas, a rádio, a experiência da música incorporava um sentido de apreciação colectivo, fosse em contexto religioso, festivo/popular ou erudito. O surgimento da radio elevou a promulgação não só da palavra mas também do som e da música a uma experiência de escuta individual, controlada pelo botão do on/off. O contágio não se aplicava apenas a um cenário de apreciação ou êxtase colectivo mas também de fruição individual. Na era digital a individuação do processo de transmissão toma proporções de incitamento à selecção criteriosa do individuo sobre o que quer ouvir e processar uma vez, copiosamente ou nunca. Este processo é acompanhado por uma necessidade de dar continuidade a um estado de constante imersão no som — imersão total que compila melodias, tecidos sonoros de origens várias que, cuidadosamente ou aleatoriamente libertados nos ouvidos individuais, são necessidades que acompanham o quotidiano e marcam as tarefas mundanas através do casulo solitário que são os headphones, utilizados em massa nos espaços públicos e privados.

O aparecimento do headphone consolida a tendência de individuação na relação dos ouvintes com a música, que se vai afirmar em pleno na era da Internet, onde surgem novas formas de agregação de públicos e comunidades. Mais do que uma selecção num oceano de hercúleas proporções, a Internet providencia um mapa contingente de dados e informação que, pela ilusão da liberdade de selecção, sobrevive e é encontrada precisamente por pertencer a uma rede de conteúdos. O dado isolado é aquele que nunca é encontrado. Ao mesmo tempo que o individuo, na busca pelo novo e único, procura construir um gosto particular e cada vez mais distinto, há também a necessidade de formação de novas comunidades, também elas cada vez mais específicas e especializadas. De um tempo em que estas comunidades muitas vezes se circunscreviam a uma área geográfica e a uma camada social, passamos para um momento em que as comunidades se formam com indivíduos heterogéneos, reunidos pelo gosto em comum.

Sinal dessa complexificação, ainda que não seja exclusivamente sintoma disso, é também o pulular de géneros musicais que se observa com o surgimento da era digital. Numa pesquisa em plataformas como o Last.fm é possível encontrar géneros recentemente criados e tão distintos como «witch house», «chillwave» ou «post-black-metal». Aqui o fenómeno consolida-se em duas frentes ambivalentes na música: os que a fazem e os que falam sobre ela. A ideia de democratização da arte, assim como a definiu Walter Benjamin em «A Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade Técnica», ganha forma plena com o surgimento da Internet. É o crescimento do arquivo online (o mapa) e da partilha de informação que permite fazer chegar aos ouvintes, e potenciais criadores, novas sonoridades distantes, quer geograficamente, quer temporalmente. Essa renovação engrossa e, em certa medida, dilui o pluralismo cultural, contribuindo para um modo de fazer música cada vez mais especializado e diferenciado. Por outro lado, quando um novo fenómeno musical começa a tomar forma, é normalmente apanágio dos que falam sobre música dar-lhe um nome, surgindo assim uma nova designação para um género. Instituído um género, pode surgir — gravitando em torno dele — uma determinada cultura com traços específicos, ainda que não necessariamente exclusivos. Aqui a relação que se cria com o som, na forma de música e com uma estética e uma ética próprias, supõe uma compreensão e aceitação de diversos códigos que lhe são extrínsecos.

A par dessa democratização da arte observa-se a descentralização dos meios. São plataformas como o blog, o vlog e o site independente que ganham relevância nos novos processos de comunicação sobre música1. Intuímos, aliás, como sinal de individuação, essa tendência onde a crítica deixa de estar concentrada em agentes com uma autoridade conferida pelo nome do meio em que opinam, para se diluir um pouco por outros indivíduos. A figura especializada do crítico perde força num contexto em que surgem cada vez mais influenciadores independentes, sem sujeições editoriais ou económicas e com público recorrente. Das zines independentes de baixa tiragem e de difusão frouxa passamos para os blogs ou canais de Youtube com milhares de visualizações. Com as plataformas digitais abriu-se caminho não só para novos modos de fazer música, observando-se a sua mutação enquanto som, mas também para novos modos de a comunicar, arquivar e partilhar, tornando-a um produto cultural diferente daquilo que era há umas décadas.

 

Selectividade Individual e Experiência Partilhada.

É possível afirmar que a universalização dos meios quebrou hierarquias e divisões maioritariamente aceites. Com esta nova cáustica forma de estar, coloca-se a questão do valor e da apreciação da música, agora assente essencialmente no gosto. A uniformização do uso da rede e da informação promove a selecção individual e o gosto especializado. Este fenómeno tende a impor a tendência de que o gosto individual não é privilégio de alguns, mas uma característica universal. A arte, ou as expressões artísticas, outrora privilégio intelectual de alguns, torna-se uma mescla de constante produção, reprodução, apreciação e divulgação em rede por todos aqueles que têm «gosto» e que passam a fazer parte do próprio processo artístico pela divulgação online. Desvanece-se qualquer hierarquia ou autoridade para dar lugar a um colectivismo de partilha de artefactos que não mais representam uma civilização mas momentos criativos.

Como aponta Steiner, já nos anos 70, as audiências deixam de ocupar um lugar onde ressoa o talento do artista transmissor da sua criação. Surge um impulso participativo onde artista e público formam um conjunto sem distinção que apaga o conceito de permanência da clássica oeuvre. A distinção entre ambos não é clara e o embalsamamento desse produto final da criatividade no espaço e no tempo não é palpável.

Assiste-se, então, a uma flexibilização da partilha de conteúdos que se torna substancialmente mais rápida do que qualquer processo de crítica, avaliação ou categorização prévia por parte de experts. A perda de influência do crítico ou do especialista materializa-se numa voz enfraquecida pela facilitação da troca, da cópia e da divulgação do produto original. Por outro lado, desenvolvem-se projectos alternativos que reorganizam os arquivos digitais em novas produções artísticas que veiculam o cânone contemporâneo do recorte e da colagem.

Heitor Alvelos, pioneiro na investigação do design em Portugal, deu asas à criação de uma marca distribuidora de música online assente numa plataforma digital. O projecto, denominado «333», apresenta a particularidade de ter como centro o corte e a colagem de sonoridades aleatórias cuja fonte é anónima. Numa reprodução da apropriação e remistura enquanto tendência contemporânea, a «333» materializa a pirataria e rebate o conceito de autoria num processo de produção musical cujo produto final são várias faixas com a duração de três minutos e trinta e três segundos. Impõe-se aqui a duração sobre o conteúdo, o código sobre qualquer propriedade artística intrínseca à música transformada. Em simultâneo, conceptualmente, a reflexão deste projecto assenta na particularidade desta duração imposta pelo criador da plataforma mas que poderia, por exemplo, representar o modelo imposto pela preview de uma faixa musical — a possibilidade que alguns sites oferecem aos visitantes para ouvir uma curta amostra antes de comprar e ter acesso ao produto na totalidade. As faixas são, depois, organizadas em playlists que podem ser adquiridas no formato físico e clássico do «álbum musical».

 
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Por toda a rede pululam modelos de apresentação de faixas musicais que coincidem com modelos tradicionais de distribuição outrora em formato físico ou palpável que atribuíam o sentido de «obra finalizada» e hermética como o álbum ou o EP. No entanto, deste modo de distribuição e consumo em massa, o universo digital da Internet herda o formato da playlist que facilmente reúne a obra de um só artista ou projecto ou de vários, à semelhança da colectânea ou das infinitas cassetes gravadas directamente a partir da rádio até aos anos 90. No entanto, a crescente disseminação da playlist acarreta o risco da possível banalização do conteúdo da música ou até mesmo uma elevada especialização de género que anula qualquer diversidade na experiência.

 

Plataformas de Comunicação Digital e Modelação da Experiência.

A adaptação da experiência de ouvir musica à rapidez da circulação da informação e à acelerada vivência mundana do homem contemporâneo pode ser vista como cacofónica mas, ao invés, surge uma nova ordem. Deste panorama surgem formatos que regularizam a experiência de ouvir a obra de um determinado artista. Afastando os trilhos do experimentalismo artístico, deparamo-nos com um cenário verdadeiramente uniformizado em que o modelo da faixa musical prevalece com o intuito de comercializar uma experiência de curta duração. A duração adquire uma aplicação formal que, aliada ao formato digital, permite uma intensa troca iniciada pela portabilidade do formato físico do álbum, durante o período do gramofone, passando pelo vinil, a cassete, o CD e, agora, o formato digital que pode ser adquirido facilmente pela via online.

A imersão no século XXI traz consigo a «morte do álbum». Dita-se o fim de um formato que outrora modelava o consumo para dar lugar a vários espaços virtuais de divulgação. Entre plataformas digitais e dispositivos técnicos que aparelham a experiência de ouvir música, surge uma nova ordem de divulgação e consumo que ultrapassa a categorização da informação. Antes do artigo jornalístico impõe-se o link, antes da classificação da música por género estabelece-se a ligação entre artistas semelhantes e obras similares num mapa de correlações quase automáticas lideradas por palavras-chave e tags. Assim se assinala a prevalência de uma cultura do link e da supremacia da relação entre conteúdos sobre o conteúdo propriamente dito.

A descoberta de novos artistas torna-se, assim, incrivelmente fácil onde o poder de ligação, a rede de conteúdos, é o caminho para se chegar a qualquer Roma. É nesse pequeno hub que são os metadados que os géneros ganham um sentido verdadeiramente agregador, o que possibilita uma interligação que dispensa o crivo humano no processo de relações. A gravação original da música torna-se legível em bits e bytes, comprimida na hiperligação e não mais na escrita do jornalista ou do crítico.

 

O Fantasma da Música: O Arquivo Disseminado e a Obra Incompleta.

A apreciação da música torna-se uma experiência fragmentada, uma apreciação da regravação sobre regravação, de cópia sobre cópia em formatos digitais progressivamente mais compactos e leves. Num universo em que o MP3 é rei, os ouvintes são pajens. Isto porque a experiência da música no meio digital raramente traz consigo todos cambiantes da experiência «original».

Recentemente, um estudante de doutoramento da University of Virginia Center for Computer Music criou um projecto que apelidou como «The Ghost in the MP3», onde mostra o que se perde durante a compressão de uma música para MP3, ou seja, o resultado da subtração que o MP3 compromete no ficheiro não comprimido. E os resultados são inesperados, estranhamente belos e audíveis. Apesar de ter sido criado há mais de 20 anos, o MP3 continua a ser o tipo de compressão que impera no digital. E, como refere o autor, apesar de já haver outras alternativas mais fieis à obra original, e de já termos capacidades de armazenamento e de velocidades de transferência de dados exponencialmente maiores, continua a ser negligenciada a experiência do som no digital. Aqui, no geral, o som ficou cristalizado numa tecnologia do século passado. E se, de facto, vivemos numa era das imagens, compreende-se melhor que as preferências quanto à performance da imagem se tenham refinado muito mais do que as do som. A qualidade e resolução dos vídeos e das imagens que recebemos tem vindo a ser cada vez melhor, enquanto no som, de modo geral, a performance pouco ou nada se alterou.

 

 

Não é por isso de estranhar que tenhamos assistido ao renascimento do vinil e a essa busca pela experiência original, nos últimos anos. Face à fraca evolução da qualidade do som no consumo de música digital, muitos melómanos recentram a atenção no analógico, que vai ganhando cada vez mais um estatuto de artefacto, numa relação quase proporcional ao crescimento do digital. Contudo, começam a surgir alguns sinais duma procura por uma melhor experiência, com plataformas como o Spotify, que utiliza o formato Ogg Vorbis, que é, alegadamente, melhor do que o MP3, com bitrates mais elevados.

Esta busca pela sonoridade original — ou pelo menos pelos formatos analógicos — não anula a plasticidade inerente à World Wide Web. As inúmeras possibilidades do formato digital, que promovem uma apropriação da música, ultrapassam a mera catalogação ou a crítica especializada. A complexidade da web e o seu carácter automatizado redefinem a experiência da escuta como um fenómeno sem tempo nem espaço, sem marco geográfico nem limitação temporal. A informação existente em simultâneo, isto é, dados digitais que coexistem online, apenas requer a procura de quem a busca e torna-se processável através do link.

A Internet torna-se o reflexo de uma produção artística e cultural cujas ligações, visualizações e partilhas entre indivíduos e grupos se sobrepõe à comunicação especializada, aos media generalizados, ao jornalismo e à crítica. Ao invés, esta comunicação — aparentemente muda — multiplica-se em plataformas variadas, assentes no discurso da imagem, da estética do som e da rede de contactos ou projectos inerentes como eventos. Mais do que um recurso explicativo sobre o fruto da produção artística, a rede torna-se uma apresentação de um mapa mental da cultura contemporânea, um reflexo espelhado das correlações entre pessoas, instituições e empresas. A inocente playlist — a ordenação individual ou produzida por outros de várias faixas musicais — torna-se a banda sonora das mundanidades de todos nós, mas também a revelação de cópias-fantasma de um arquivo de afecções, de gostos e ambivalências estéticas que nos colam à vida e nos retêm no presente. Um simulacro digital inseparável do mundo palpável e físico que reflecte, num ecrã pixelizado e nas frequências transmitidas pelos headphones, um gesto irrepetível do que foi o mundo, um dia, naqueles 3 minutos e pouco.

 

Referências

Bull, M. e Beck, L. (2004) The Auditory Culture Reader. Oxford: Berg Publishers.

Steiner, George (1998) No Castelo do Barba Azul: Algumas Notas para a Redefinição de Cultura. Lisboa: Relógio d’Água. (Disponível em http://www.anti-rev.org/textes/Steiner71a/3.html)

Sterne, Jonathan (2003) The Audible Past: Cultural Origins of Sound Reproduction. Durham: Duke University Press.

Walker, Harriet (2014) «Album is Dead, Long Live Playlists», The Guardian, 30 de Julho de 2014.

 

Notas

1 Será importante esclarecer aqui que não nos referimos à música obviamente comercial e de grande distribuição, sendo que essa mantém os meios mais tradicionais como via de comunicação.