Sobre Dois Planos de «Ana», de António Reis e Margarida Cordeiro


Uma mulher vestida de negro tenta controlar uma barca num rio revolto. A barca é um caixão que roda na água, o corpo da mulher desoculta outra passageira, uma cabra. É uma barca da morte, o plano ecoa e condensa os anteriores vinte minutos de filme, e não teria este sentido sem eles.
Ou: uma rapariga vestida de verde e vermelho avança, encostada a uma parede branca, as palmas das mãos arrastam-na colada à parede, como um bicho, como na dança contemporânea. E esse arrastar pela parede é uma tocante figura de dor: a Mãe Ana vai morrer.
Estes dois planos de Ana são exemplares daquilo que caracteriza o melhor dos filmes de António Reis e Margarida Martins Cordeiro. Uma preocupação de atingir o «sagrado» pela economia de meios, sem ornamentos, sem a procura do efeito fácil. A ascese pela economia, para esperar chegar-se à expressão da verdade. Uma dialéctica do concreto e do abstracto, num mundo em que tudo deve ter igual importância mas onde, afinal, há o primado do ser humano. Uma obra onde não se procura reproduzir o real, mas criá-lo no ecrã. O rigor. Um rigor estético que acompanha um rigor do pensamento.
Estes valores não surgem do nada. Encontramos raízes deste projecto estético — que é um projecto de vida — noutro cineasta igualmente despojado, rigoroso, intransigente, Tanto nos filmes como no Notes sur le cinématographe, Robert Bresson expõe uma teoria — a que ele chama método — do cinema. Não por acaso, Reis considerava as Notes… o livro de cinema.
Esta estética que é uma ética estóica do rigor e da ascese deixou sementes no cinema português, muito por culpa do que Reis tentou comunicar nas suas aulas da Escola de Cinema. Pedro Costa é um exemplo claro da continuidade deste projecto estético e de vida, que tenta criar algo novo a partir daquilo a que Bresson se refere sempre como «o real». Nesse projecto é necessário ser totalmente artista e dar toda a sua alma (e toda a vida) aos filmes. Em Bresson e Reis/Cordeiro, mas também em Costa, a obra é inseparável de um universo, de uma visão do mundo e de um sistema ético; serão, segundo as palavras de Bresson, não «metteurs en scène» mas «metteurs en ordre». Têm uma «teoria» forte (que vêm em grande parte de Bresson) e os filmes são interrogações filosóficas sobre a situação do homem no universo. Dizem-se realistas porque utilizam parcelas do «real», da matéria do mundo, mas sê-lo-ão? Não serão antes anti-realistas porque reordenam o real?
 

1. Ana: Falemos de embarcações e de travessias.

1.1.

A realização de Ana está assinalada deste modo no genérico inicial: «Produção e realização: António Reis e Margarida Cordeiro». A obra cinematográfica de Reis e Cordeiro é caracterizada pela singularidade desta dupla autoria. De Jaime até Rosa de Areia há uma clara mudança no tratamento das formas cinematográficas. Falta fazer o trabalho sobre essa evolução, sobre essa mudança. Esse trabalho de fôlego implica tempo e meios que a ambição do presente artigo não atinge. Aqui, trata-se apenas de analisar dois planos de Ana no contexto desse filme, e fazer uma superficial passagem por Trás-os-Montes para suportar a tese de que António Reis1 é um dos elos de ligação de um determinado modo de encarar a criação artística cinematográfica.
No final do genérico de Ana, o fundo muda de preto para azul. Aparece um céu com nuvens numa panorâmica descendente, do céu para a terra (o que vemos na terra será um castelo?) enquanto se ouve uma voz off: «Naqueles dias…», que nos dá imediatamente um «era uma vez» da fábula e do mito. Ou do universo dos contos infantis. Esta voz e a imagem do cavaleiro que se aproxima fazem-nos compreender que o mundo em que vamos entrar é um mundo particular que não é o da vida de todos os dias nem o do cinema de todos os dias.
O cavaleiro vai passar por uma ponte, mas pára, volta para trás. O cavaleiro afinal não muda de mundo. Porquê? Por que será isto? Segundo o que conhecíamos de Trás-os-Montes, esta não travessia é incompreensível. Mas se nos situarmos no domínio estritamente narrativo, então podemos concluir que o cavaleiro foi à ponte apenas para ter um encontro, para (percebemo-lo depois) ir buscar alguém que não apareceu.
Esta sujeição (será aparente, será desejada?) a regras narrativas de causa–efeito, longe do filme mais livre que é Trás-os-Montes é o que nos vai causar espanto ao longo de Ana. Aqui estamos num mundo, afinal, que já não é o mundo simultaneamente mítico e real de Trás-os-Montes. Em Trás-os-Montes busca-se uma verdade que não está necessariamente ancorada no realismo. Aqui vai ser necessário, ao espectador que admira Reis/Cordeiro, um movimento de estranheza por estar, afinal, num território que pode ter regras narrativas mais convencionais.
O filme continua, o cavaleiro da ponte faz uma ligação com um cavalinho de pau. Estamos ainda num universo de história infantil.
Aparece a grande figura da Mãe Ana vinda do escuro. E vemos a abóbora enorme, prenha, laranja, que está na cozinha.
Estamos agora na manjedoura do presépio com o burro e a vaca. Os gestos são lentos, solenes, os planos longos. Fica claro que todo este início do filme Ana tem a ver com a Natividade (com o princípio das coisas, com o nascimento, com algo primordial).
Chega a Virgem Maria, que é a Ama e não a mãe da criança (que não existe no filme).
Os «figurantes» estão a construir/figurar uma Madona — manto, almofada vermelha aos pés, menino embrulhado em azul. Pela luz, pela composição, os realizadores refazem a pintura clássica com respeito. Há peso, lentidão e solenidade nos gestos e nas falas.
Os primeiros vinte minutos do filme constroem assim uma imagem de Maria, da maternidade cristã, com a diferença iconoclasta de essa imagem ser construída com uma Ama: a mãe não é a Mãe, é uma ama de leite. Os realizadores misturam e cruzam influências e referências: a Natividade cristã, o início mitológico do mundo, a pintura clássica ocidental, o início de um filme biográfico. É muito claro que estão também a tentar a narrativa clássica, querem «contar uma história» que vai ser a história da infância e da aprendizagem de Alexandre, o bebé que nasceu.
 
Damos um salto no filme como o filme dá um salto no tempo, do Inverno para o campo na Primavera, vemos um trilho no lameiro. O mês de Março.
O tempo passa, o tempo passou. E volta a passar, estamos agora no Verão.
Panorâmica sobre as montanhas do Verão; as espigas de milho. Corta para um plano todo construído numa composição de cores, tomate vermelho em baixo, verde do Verão em cima, e o boi e o vestido azul da mulher que trabalha (neste filme, a família da história que está a ser contada não trabalha, tem empregados).
Chega um automóvel vindo do mundo moderno. Depois muda o plano. E é agora que aparece a rapariga rafaeliana com um vestido branco.
A rapariga de branco, virgem, aparece muito lentamente, (porquê tão lentamente?) de boina também branca e um gato ao colo. Mas não! Não é um gato, é uma raposa! Traz uma raposa ao colo. E de repente tudo se torna mais interessante. E de repente a rapariga é a raposa e a raposa é a rapariga. Virgem e perversa. Aparece aqui uma contradição forte entre a imagem clássica da virgindade e a perversidade de um animal selvagem e matreiro.

1.2.

Por volta dos 30 minutos de filme, é-nos mostrada a aprendizagem de Alexandre. Primeiro com o prisma de Newton e a decomposição da luz. Depois com o mercúrio e com o leite — contrastes de cor, de texturas, de sensações.
E aos 33’50’’, contada por Octávio, começa a história das embarcações dos povos que ali viveram. É ainda de aprendizagem, de aquisição de conhecimentos que aqui se trata.
Mas só aos 54 minutos de Ana vemos a barca da morte, e é ela que me interessa aqui.
Cerca de vinte minutos antes começou Octávio a falar de embarcações.
Octávio é, neste filme, um detentor do saber: o dele é um saber livresco e académico, e a aprendizagem de Alexandre é também livresca e escolar, mais do que experimental e em contacto com a natureza.
Octávio fala das embarcações utilizadas pelos povos antigos que viveram naquelas zonas e das influências talvez mesopotâmicas que sofreram essas embarcações. Alexandre, o rapaz do filme, o rapaz que aprende, ouve a conversa.
O plano dura três minutos e cinquenta segundos, acabando aos 37’40’’.
O segundo plano desta cena, ainda com Octávio na sua lição, vai até aos 43’40’’ e corta para um plano da velhice, talvez um prenúncio da morte: vemos uma estranha velha a fazer croché. Parece ser um plano um pouco incompreensível nesta cena. Estará a senhora também a ouvir a prelecção sobre antigas embarcações?
Corta para um plano que parece de John Ford: a cancela — uma separação — a mulher do vestido azul do lado de lá, a Mãe Ana do lado de cá. É um plano amarelo e a Mãe Ana recebe ovos — sim, ovos! — símbolo da vida e da eternidade, mas que lhe dá também e nos dá a nós, espectadores, uma relação directa com a vida material daquela família. Em off Octávio continua a falar da Mesopotâmia. Percebe-se que o plano da velha a fazer crochet contrasta com estes ovos, com o ovo primordial, e liga o nascimento e as origens à degradação e à morte. Prenúncio da morte da Mãe Ana? Alusão à travessia da vida por cada um de nós, e também pelas personagens? Aqui fala-se de uma viagem diferente…
No plano seguinte aparece outra vez a rapariga de branco, ainda com a raposa ao colo. Esperava a Mãe Ana. Passa um rebanho, estamos simultaneamente na contemporaneidade do presente e em tempos míticos, vemos ainda os ovos. E a voz de Octávio fala em off de barcos votivos. Depois fala da barca dos mortos, do culto dos astros a das barcas do sol e da lua.
Plano do vendedor de bijutaria. Ainda a rapariga fulva com a raposa fulva, ela e a Mãe Ana vêem as jóias. Os vendilhões do Templo? a fútil vaidade humana? um memento moris? A simultânea grandeza e futilidade da nossa passagem por este mundo. Ana é um filme de contrários e de contradições. A travessia é um tema central no filme. Começou na ponte do plano inicial (que não chegou a ser atravessada pelo cavaleiro…) e o tema da travessia é desenvolvido aqui de várias formas, neste núcleo do filme. Vemos — ou ouvimos falar — durante vinte minutos de travessias e de transportes marítimos, de formas de navegar, de modos de fazer a travessia das águas e da vida. Fala-se dos meios de transporte entre margens, a travessia entre margens distintas, que podem fazer parte de territórios diferentes, mas podem também ser as margens da vida.
Octávio continua a sua lição sempre em off: fala de barcas que serviam de túmulo, das origens da vida e do ovo primordial. Refere a barca enquanto recipiente que é ao mesmo tempo um ovo, e que faz a passagem de um mundo para o outro, do mundo dos não seres para o mundo dos seres pelo nascimento; deste mundo para o mundo das sombras e dos espíritos pela morte. Um ovo é um encontro com a Origem. Referência à morte enquanto retorno à origem, à mãe Natureza ou à Mãe primordial.
 
Vemos agora Octávio que deambula. Tanto o que já ouvimos no off de Octávio como as relações entre as imagens, como o modo de enquadrar e iluminar, transformam continuamente aquilo que vemos.
Aos 48’14’’ de filme está numa bela igreja românica que para nós é agora também uma barca. Recipiente que faz a passagem das almas entre mundos. Barca de almas. A igreja como barca invertida e recipiente de almas. Octávio passa em frente à câmara. O que vemos agora no filme é um pensamento ou um sonho de Octávio? O pó onírico trazido pelo vento entra pela porta lateral da igreja.
Octávio olha para fora, para os montes.
Depois Octávio volta a passar, muito lentamente, pela nave da igreja para sair pela porta principal. Dois homens comem e oferecem-lhe morangos no exterior da igreja. Os três homens comem morangos e olham, ouvem-se gritos de crianças ao longe.
Plano de terra lavrada, Octávio passa no horizonte de um lado ao outro do ecrã.
Aos 51’00’’ Octávio está a descer para o rio, vêem-se grandes montanhas ao fundo. Há uma panorâmica de acompanhamento até uma eira, onde uma mulher, vestida de preto, viaja de pé sobre antiquíssimo instrumento puxado por dois bois (estará a debulhar?). Está acompanhada por uma criança. É uma deusa num carro solar ou lunar.
Estamos no Egipto, na Mesopotâmia, no Médio Oriente. E ao mesmo tempo a mulher vai numa barca, faz surf ou ski na barca puxada pelos bois sagrados.
Octávio continua o seu passeio, há um rio no fundo do vale. Depois, aos 52’47’’ vemos as crianças no rio. Fazem experiências com vários tipos de embarcação. E mais longe o rio corre rápido, preparando-nos para o momento mais dinâmico do filme, vinte minutos depois de se começar a falar de embarcações.
Aos 53’55’’, fulminante, vemos a barca da morte. A mulher em pé, toda de preto, a tentar dominar as águas. Com a cabra como passageira, figura do diabo mas também da fertilidade e da vida. O som do rio forte começa a ouvir-se nove segundos antes de aparecer a imagem da barca. Seria o corte no som demasiado brusco se fosse feito com a imagem? Mas deste modo, com a ligação feita pelo som, a mulher na barca pode estar, ou não, no mesmo rio em que as crianças tomam banho e brincam com embarcações. O plano acaba aos 54’30’’, e passamos para a varanda da casa onde Octávio dorme (tudo é sonho? tudo não passou de um sonho?) apoiado nos calhamaços que presumimos serem sobre navegação. O seu passeio pelo campo não terá passado de um sonho. Passeio de barcas e de barcos, pelo campo, pela igreja, pelos montes até ao rio.
Mas o sonho é ainda uma travessia — ainda o mesmo tema — para outro mundo, para o mundo dos espíritos. Octávio acorda, vem da terra de Morfeu e à sua frente aparece a rapariga ruiva, sem a raposa, e agora ela é uma mulher, de camisa branca e saia preta, cabelo agarrado – é ela a raposa? É uma Mulher frente a Octávio. Real ou sonhada?
Depois tudo muda: vemos um banho no rio verde, à sombra de Renoir, que é o que aqui interessa: o império da luz.
Logo a seguir a Mãe Ana está em casa, Alexandre na cama. Doente? A doença aparece no filme.
 
O barco da mulher de negro é um caixão, com uma cabra, animal sagrado e demoníaco. Ela, vestida de preto, é também uma figura da morte. A violência do rio torna-o perigoso. Vinte minutos de filme preparam este plano. A mulher que rema, devido à violência do rio, está totalmente implicada no que faz, totalmente atenta ao rio e ao que faz no rio, ignorante do local para onde o rio a arrasta, para onde as forças superiores a levam. Há uma força na imagem — rio / barca / mulher / cabra — que nos sobressalta e nos choca, depois das deambulações de Octávio, lentas e cuidadosas. Este plano é um golpe profundo no filme.
Foram necessários vinte minutos de preparação para dar toda a força mitológica, histórica, simbólica e formal a este breve plano.
 

1.3.

O segundo momento que gostaria de realçar em Ana tem também a ver com a travessia. É o momento da travessia da Mãe Ana para a morte. Uma passagem definitiva e sem regresso.
Mas o que me interessa aqui é o modo como é expressa a dor da rapariga ruiva pela morte da Mãe Ana. É isso que torna esta cena especial e grande.
 
O Verão chegou outra vez. Vemos um tapete pendurado ao sol, o som de cigarras e abelhas. E searas outra vez.
Alexandre está em convalescença. São oferecidas oferendas ao convalescente. A rapariga da raposa aparece mas não tem raposa e chega o circo pobre e triste. Aqui já não há alegria. Não há alegria nas formas. A exaltação da criação, a alegria de dar vida às formas está ausente. Aqui tudo é tristonho e rígido. Tudo é filmado de modo solene, hierático.
Ana é um filme sobre a tristeza, enquanto Trás-os-Montes era sobre a alegria, a alegria de criar e de viver, a alegria da aprendizagem e do conhecimento.
Mas há aqui, neste Verão triste que prepara a morte da Mãe Ana, um belo plano: a ceifeira da camisa azul contra o amarelo dourado e verde das searas.
 
O pedaço de filme que nos interessa começa no Magnificat. A Mãe Ana passa, primeiro em grande plano, depois mais ao longe, e um penedo enorme serve-lhe de escala e contraponto. A Mãe Ana procura e encontra Miranda, a vaca. Cospe sangue para um lenço — a morte já foi anunciada várias vezes neste filme.
A seguir estamos em casa, e a rapariga da raposa já não está de branco, mas de vermelho e verde. Tem o cabelo solto. A rapariga da raposa, que já não o é, é agora Portugal, e cobre com uma manta a Mãe Ana doente. Descobre o lenço da Mãe Ana com sangue. Há aqui finalmente um movimento brusco e que promete outros movimentos. Um movimento quase de cinema mudo.
No quarto da Mãe Ana, a rapariga olha pela janela.
Passou uma hora e quarenta minutos de filme.
A rapariga vai ver a vaca Miranda, leva vestidos um casaco branco e a saia vermelha. Afasta-se numa estrada com perspectiva muito marcada, com futuro, onde aparece finalmente o sol. A luz muda quando a rapariga caminha pelo campo, e há aqui um momento mágico e de futuro, com a luz e o branco e vermelho a prometerem àquela rapariga uma vida diferente.
Outra vez em casa, a rapariga ruiva olha para a Mãe Ana deitada. Percebe que ela vai morrer. Aparece Alexandre que estaca, e a rapariga encosta-se à parede, sente a parede com a palma da mão e recua. A rapariga precisa de apoio e existe porque tem contacto físico com a parede. A parede é a sua confidente possível, a única confidente que ampara a sua dor.
Octávio chega, sai do carro.
E vemos a rapariga encurralada num canto da casa, ente duas paredes. Como um bicho agarrado à parede, percorrendo-a, agarrando-se a ela com as palmas das mãos. Há um movimento inusitado e há qualquer coisa que explode no filme, nós vemos a dor indizível e invisível através da movimentação daquela rapariga. Este plano vai contra o peso e a solenidade de grande parte do filme. Os melhores pedaços/planos do filme são momentos de livre criação das formas. É quando se dá a experiencia sensível, quando as «personagens» tem um conhecimento sensorial do mundo, que os filmes de Reis e Cordeiro ganham profundidade e espessura. Como nesta dança com a parede. A minha tese é que em Ana, a necessidade de dramatizar rouba com frequência leveza, liberdade e frescura à criação das formas.
A rapariga primeiro está de costas, depois vira-se (para a Mãe Ana?) sempre com uma mão em contacto com a parede: é uma fuga sem saída, uma dor sem saída. Aqui há movimento porque tudo é expresso pela imagem, e a imagem exprime imenso. O plano acaba com ela encostada a um móvel (biombo?) de palha, a cara escondida pelo braço, de lado para nós, o cabelo a escorrer da cabeça para os ombros, um buraco na parede rachada, ameaçador. A racha na parede, o móvel, formam uma grade de verticais que a aprisionam. O buraco na parede rompe esse gradeamento de verticais, mas não permite fuga nenhuma, pelo contrário, é ameaçador, por ali só saem males. Branco, preto, vermelho e verde com o cabelo que escorre, depois o castanho do móvel. verticais de cor e branco, a dor, a dor escondida, que se não mostra.
Octávio sobe as escadas.
A rapariga corre ao vento, contra o vento, contrariada pelo vento. A morte e a vida. Casaco branco contra uma parede de vegetação verde. Ela chama por Alexandre.
Vemos a vaca Miranda e uma figura humana contra a poça de água ou lago primordial. O fim do mundo, o início do mundo. Acaba o filme.
 
O filme Ana transporta consigo uma contradição que o enfraquece. Por um lado temos uma vontade criativa e uma liberdade de associação e criação de formas que fazem os melhores momentos do filme, e que estão próximas e são representativas dos ensinamentos que António Reis transmitia nas suas aulas na Escola de Cinema. Por outro, há uma vontade narrativa, uma necessidade de encadeamento de acontecimentos num enredo que quer contar a história de uma família (ou de uma Casa) de Trás-os-Montes. As formas ficam espartilhadas e enredadas neste «enredo» e só de tempos a tempos se libertam, tornando, nesses momentos, o filme grande e livre.
Em Trás-os-Montes esta contradição não aparece, ou não é evidente, Trás-os-Montes é um filme muito diferente, onde no início.
 

2. No início era…: Trás-os-Montes e o conhecimento do mundo.

No início há logo o moderno (Cézanne) e o arcaico (as inscrições na rocha).
O antigo aqui é aquilo que está fundo em nós (humanos) e no mundo.
E logo no início há outras dualidades; por exemplo, passamos do grande e largo para o particular e para o pormenor. Também a linguagem é simultaneamente antiga, infantil, recente e adulta.
No início as inscrições antigas, arcaicas, estão escondidas, é preciso ir procurá-las, mas o pequeno pastor vê-as (sem esforço, em raccord directo), sabe onde as procurar.
Trás-os-Montes começa com crianças, com o olhar de crianças que vivem alegre e simultaneamente o recente e o arcaico. Também aqui a criação cinematográfica é jovem, e há uma grande alegria na descoberta e invenção das formas. Aqui sente-se um grande prazer em dar vida às formas, tudo é dinâmico. Há um prazer e uma alegria de viver e criar que se vai, pouco a pouco, perdendo nos filmes seguintes.
Por exemplo, no baile de Trás-os-Montes é possível sentir a alegria de viver: o burro (Branca-Flor?) vai atravessar a ribeira, percebemos que com esta travessia começa um flashback. Depois saímos do flashback com a música do baile e voltamos à festa! A música e a festa fazem a ligação dos dois tempos sobre dois grandes planos do Armando, um dos rapazes do filme.
Depois os três rapazes correm nas medas de feno (é Verão), correm atrás dos gansos. «Vamos para a ribeira!» diz um deles, e correm outra vez, num raccord belo e audacioso, feito com a mudança das estações do ano. Os rapazes correm para nós durante o Verão, e afastam-se de nós a correr já no Outono, com casacos e barretes (um fica para trás a apertar as botas). Agora são já 4 e não 3. E há outro raccord meteorológico, os rapazes continuam a correr e chegam ao rio no Inverno. (Neste filme há muitas descidas, vai-se quase sempre para baixo.) O rio está a começar a gelar. Um flashback? Pouco importa, o que interessa é o que aqui se passa com os rapazes e com as formas cinematográficas, e o que se passa é a aprendizagem dos rapazes, sempre na natureza, sempre em contacto com a matéria. É uma aprendizagem rápida que faz os planos mudarem conforme a estação do ano, embora as acções tenham continuidade e os planos façam raccord.
Este é um filme de aprendizagem, é um filme sobre a aprendizagem sensível da matéria do cinema por Reis e Cordeiro — eles estão muito conscientes disso e para o mostrar servem-se das metáforas da aprendizagem dos miúdos e das raparigas. Os rapazes tomam conhecimento do mundo, e esta aquisição de conhecimentos, esta aprendizagem, é provocada pela matéria sensível. Em todo este início do filme (pelo menos na primeira meia hora) se sente a exaltação da aprendizagem e do conhecimento. Que é sentida pelos realizadores e por eles mostrada no filme.
Trás-os-Montes é também um filme que não se interessa pela narrativa convencional, é um filme que inventa raccords novos, novas relações entre os pequenos blocos narrativos de que se compõe, e que muito generosamente oferece ao espectador o trabalho de recompor numa linha (ou em várias) estas possibilidades narrativas. Trás-os-Montes obriga o espectador a trabalhar e fá-lo com imenso prazer (o filme e o espectador têm prazer). Aqui tanto há uma liberdade formal como uma liberdade estrutural e uma liberdade narrativa que são oferecidas ao deleite do espectador.
Trás-os-Montes são os rapazes a correr pelos campos e a descobrir o mundo.
E os rapazes chegam ao rio e brincam na neve. É inverno, começa a gelar. Eles aprendem à sua maneira e à sua custa, ou seja provam (comem) o gelo. Aprendem com gestos primordiais, simbólicos, puros, feitos de rituais antigos e imemoriais. Provam os cristais de gelo. Gesto sagrado, mágico. Aprendem em comunhão com a natureza, como também parecem estar os realizadores, que inventam um filme e descobrem formas cinematográficas e nos dão a ver a alegria dessa invenção e dessa descoberta. Alguns exemplos:

  • O vermelho do cachecol comprido contra o branco do Inverno.
  • O raccord do olhar do rapaz para a matéria que é um pensamento, o fogo de que ele, o rapaz, se lembra, o raio pelo chão dentro.
  • O peixe preso no gelo do rio.

Nestes rapazes, mesmo os enganos, os esquecimentos do texto, são enternecedores, significativos e fazem parte daquele universo de aprendizagem e daquele sistema cinematográfico. Há um prazer tão grande em filmar tudo o que Reis e Cordeiro filmam, um tão grande amor pelas pessoas, pelos objectos, pelas paisagens primordiais, em ver e dar a ver aquela aprendizagem, aquele conhecimento do mundo, que só de sentir esse prazer (que está evidenciado nas formas), nós nos emocionamos e sentimos também exaltação estética.
Outro exemplo:
A casa abandonada, uma espécie de gruta, um outro mundo mais antigo. O preto e branco desta casa antiga e abandonada, o preto e branco desta cena só é afastado com o aparecimento da grafonola, que é pousada sobre a colcha laranja, e temos outra vez a vida, a procura e a exaltação da vida. Grafonola-música-alegria. Enquanto a cor laranja contrasta com todo o preto e branco envolvente, que é a morte. E a música enche o quarto — e sentimos a vida no prazer da música, da música popular.
Em Reis/Cordeiro, como é evidente neste filme de crianças e de vida, as experiências sensoriais são sempre experiências cognitivas. Como na arte. E Trás-os-Montes é sobre isso, sobre as formas, sobre as experiências sensoriais e sobre o conhecimento que se adquire através das formas — que só podem ser apreendidas sensorialmente. Muito daquilo que se aprende, que as crianças aprendem, tem a ver com o passado — da família, da aldeia, da região — e aprende-se com gestos e ritos arcaicos. O passado e o futuro estão concretizados, materializados, na criança a escrever ao pai ausente o ditado da mãe.
Toda a primeira meia hora de filme é uma constante descoberta e conhecimento do mundo para as crianças — os rapazes, as raparigas do filme — para o espectador e para os realizadores. Até aqui Trás-os-Montes é um mundo de crianças. Crianças e mulheres. Os pais, os maridos estão ausentes. Depois o filme muda.
Por volta dos 49 minutos de filme entramos no mundo dos homens.
É a longa panorâmica de 360 graus sobre as faces das pessoas sentadas dentro da velha torre de pedra que marca esta mudança. De início há mulheres e crianças, nessa panorâmica que mostra a espécie humana do mundo transmontano, depois ficamos apenas com homens. E entramos no mundo masculino da lei e da ordem. Do trabalho nas minas, do trabalho remunerado. Os homens estão presentes também na sua sublinhada ausência; o pai ausente, emigrado, de quem se tem poucas, raras notícias, torna-se cada vez mais presente pela ausência.
Há fábricas, fábricas que fecham e que obrigam à partida. Mas ainda há pais que ensinam os filhos a pescar.

 

3. A herança de António Reis.

3.1.

Quando foi dar aulas para a Escola de Cinema do Conservatório Nacional, em 1977, António Reis tinha terminado Trás-os-Montes e o seu prestígio enquanto realizador estava em ascensão.
As suas aulas eram, com frequência, preenchidas pelo visionamento e análise de Trás-os-Montes. E isso justificava-se plenamente, já que nesse filme está tudo aquilo de que se faziam os ensinamentos de Reis. Está a exigência e o rigor porque ali só se filma o essencial. E o essencial são as formas modernas e arcaicas simultaneamente, aquilo que vem de muito longe, os mitos arcaicos com raízes profundas na humanidade. O que interessava a Reis, em Trás-os-Montes como nas suas aulas, eram as formas, mas as formas ao serviço do homem. A partir do seu filme encontrávamos o seu olhar penetrante, a procura do rigor, a escuta das formas e o despojamento cinematográfico de que ele tanto falava nas aulas.
Hoje, quando tanta gente reivindica a herança de Reis, é necessário desbravar terreno para perceber que: a) o que Reis ensinava não é necessariamente o que pôs nos seus filmes a quatro mãos; b) encontram-se muitos dos valores defendidos por Reis noutros cineastas, em particular em Bresson; e c) nos cineastas portugueses actuais, pode alguém ser considerado seu herdeiro?
Posto de outro modo: haverá uma linhagem portuguesa de uma herança de Bresson que passa por António Reis e chega a Pedro Costa?
 
Desde a sua primeira aula Reis tentou, acima de tudo, incutir o rigor do olhar, desenvolvendo a nossa acuidade visual. Ele ensinava sobretudo a ver. Mas ensinou também que quando se trata do acto criativo ou da análise ou visionamento de arte, não é possível fingir, não nos podemos enganar (nem a nós próprios nem a ninguém).
Essa exigência e esse rigor exigidos pela criação artística tocaram fundo nalguns dos seus alunos. Perante a arte temos de ser verdadeiros, sem complacências, e procurar a verdade (das formas e nas formas). Para nós, alunos, o problema (mas seria um problema? foi um problema?) é que esse posicionamento relativamente à arte era ideológico e era político. Assim, Reis afirmava que só valia a pena aprender Cinema se quiséssemos ser artistas, e ao criarmos devíamos procurar acima de tudo a verdade das formas com uma atitude de rigor, de despojamento e de intransigência. Esses valores deviam ser transportados para a vida. Essa nossa posição perante a criação, a arte e a vida seria necessariamente ética e política.
 

3.2.

Já num artigo de 1956 para o Comércio do Porto2, em que António Reis apresenta uma edição de um álbum de Hokusai, ele chama a atenção por um lado para as características técnicas, já que a técnica da pintura e do desenho, o traço, a pincelada, são essenciais para ele na análise de uma obra de arte. Mas essas características tornavam evidentes as qualidades morais do artista, a seriedade no trabalho, a severidade mesmo: «sempre até morrer, severo ao extremo com o seu labor», escreve Reis sobre Hokusai, e esta severidade está manifesta na forma de viver: numa espécie de ascese e pobreza, sobrevivendo com meios materiais mínimos que fazem sobressair aquilo que é essencial ao trabalho do artista — o rigor, a seriedade, a severidade. Hokusai, «o velho tonto do desenho, […] de sandálias e envolto numa humilde capa de palha (como um camponês de Katsouskika)» e que «por indiferença e talvez por gosto foi sempre pobre». Os valores morais aqui apontados por Reis são aqueles que ele prezava e que nele, como em Hokusai, tomam uma forma que pode chegar a parecer rude.
Neste artigo há outra característica que Reis transportou para as aulas: ele refere alguns dos seus autores «de cabeceira», aqui fala de Roy e de Focillon.
Depois, noutro artigo que escreveu nos anos 50 para o Jornal de Notícias3, ao falar do arranha-céus de Arne Jacobsen em Copenhaga, quando lhe aponta a «austeridade de um menhir» e as ligações à arquitectura rural, revela-nos outros valores, ou melhor, outras dicotomias lhe são caras, que sempre prezou na arte: primitividade/modernidade, ruralidade/urbanidade, e volta a falar da «vida das formas» (embora sem referir Focillon). Fala também da «interioridade mítica» do menhir/edifício, daquela coluna/escultura a que se refere também como «ideograma plástico». E ao descrever a pequena colher do restaurante que reflecte todo o edifício, aparece com clareza outra dicotomia que muito prezava, entre um detalhe que reflecte e é um reflexo da totalidade.
Nesta altura Reis não só tem o gosto formado, como a sua rede de autores e de conceitos, de que haveria de falar sempre, de que nunca se separaria, está formada.
Encontramos aqui muitos dos temas que perseguirá toda a vida: a seriedade, e mais do que a seriedade, a solenidade da arte, que deve ser, para Reis, a solenidade da vida dos humildes. Há também já uma ligação à terra pelos valores telúricos e míticos e pelos trabalhadores mais humildes. Em Reis nós sentíamos sempre o respeito pela sacralidade da arte e da vida (em particular pela vida dos humildes) que só é possível em ateus. Reis perseguia um gosto pela primitividade, pelos mitos, pelo que há de cósmico na vida humana.
Resumindo o que não é simples: para Reis tanto a criação artística como a fruição da arte apenas valem a pena, apenas podem existir, se forem feitas com austeridade, rigor e seriedade. E estes valores só podem existir numa vida austera. Percebe-se em Reis a importância da ascese. Só numa vida ascética se consegue perceber e dar atenção ao essencial.
O posicionamento do artista, para além de ético deve também ser político. Para Reis, a grande arte burguesa estava feita, ele dizia-nos com convicção: »o grande cinema burguês está feito, não vale a pena refazê-lo; vocês tem é de formar brigadas de cinema e andar pela cidade com uma câmara como grupos de guerrilha». Dos discípulos, dos cineastas que se reclamam de Reis, só Pedro Costa cumpre, à sua maneira, estes preceitos.
 

3.3. Conclusão.

Encontramos uma ética artística de ascese e despojamento em Robert Bresson, como a encontramos também em Pedro Costa e em António Reis.
Lembro-me de, ainda na Escola de Cinema, Reis dizer que as Notes sur le cinématographe eram o único livro sobre cinema que valia pena ler. Estava lá tudo aquilo que valia a pena saber sobre cinema. Depois compreendi que Bresson, como Reis, tinha uma estética que era uma ética que é um modo de vida. Mais tarde ainda, compreendi que há aqui, em Reis como em Bresson, raízes em filósofos pré-socráticos e estóicos que praticam uma ética do despojamento na procura da essência das coisas, como também há influências da fenomenologia.
Reis insistia connosco na leitura de Focillon, Francastel, Malraux, Faure. Dizia que tínhamos de conhecer a arte contemporânea e os mitos, e que era fundamental o estudo da psicologia infantil com Piaget e Wallon. Mas devíamos, acima de tudo, aprender a ver. Saber ver é uma coisa difícil que se aprende e que é necessário cultivar.
Mais tarde eu soube que Elie Faure foi aluno de Bergson, que Focillon tem também influencias de Bergson. Com Focillon, interessa mais a Reis uma genealogia da formas que a sua iconografia ou contextualização. Como em Wöfflin com a sua análise formalista. A arte é, para Focillon como para Reis, um modo de conhecimento, uma maneira de conhecer o homem e o mundo. Para Focillon, a arquitectura, a pintura, a escultura, são formas do conhecimento.
Para Bresson, o cinematógrafo permite ver para além da visão humana, a câmara é um aparelho de precisão que consegue ver para além das aparências. Ou seja, tem funções cognitivas, e já vimos que também as tem para António Reis. Também para Reis a câmara é um instrumento de conhecimento.
 
Há também em Reis um anti-platonismo (que encontramos em Bresson e em Costa) no sentido em que o cinema e a arte em geral colocam objectos novos no mundo, criam formas. O artista cria, é um demiurgo, um criador que cria com as mãos. O labor do artista é comparado, tanto em Reis como em Bresson como em Costa, ao trabalho de um artífice. Há em todos eles admiração e respeito pelo trabalho manual.
O cineasta cria a partir daquilo que existe já na realidade, mas cria formas novas. Nesse sentido é anti-platónico pois não acredita numa preexistência das formas. Pelo contrário, estas são sempre criadas pelo artistas — é esse o seu labor.

1 Sendo certo que a autoria dos filmes é dupla, vou individualizar aqui a pessoa, as teorias e o modo de vida de António Reis. Foi ele o professor que deixou discípulos, são dele os textos ensaísticos que citarei mais à frente e foi com ele que trabalhei em Ana. António Reis foi o meu mais importante professor na Escola de Cinema. As intervenções de Margarida Cordeiro nas fases de montagem de Ana em que colaborei foram episódicas.

2 In António Reis e Margarida Cordeiro, A Poesia da Terra, organizado por Anabela Moutinho e Maria da Graça Lobo, ed. Cineclube de Faro, 1997, pp. 30-32. Grande parte dos textos conhecidos sobre António Reis e Margarida Cordeiro encontram-se reunidos neste importante catálogo que inclui entrevistas, fotografias, biofilmografia e fichas técnicas dos filmes.

3 Idem, p. 32.