A Ficção como Método: Um Conto de Ficção Científica e a Ontologia Orientada por Objectos

Na tentativa de pensar a técnica como algo vivo e pulsante, como o vírus de Burroughs em «Feedback de Watergate para o Jardim do Éden» (1970), Steven Shaviro usa um conto de ficção científica como método de acesso à Ontologia Orientada por Objectos1 – um contemporâneo movimento metafísico que integra várias linhas de pensamento a convergir para uma crítica geral ao antropocentrismo. «The Universe of Things», de Gwyneth Jones, descreve o encontro entre os seres humanos e uma comunidade extraterrestre, os «Aleutas», cuja presença na Terra se afigura altamente traumática apenas porque detêm uma cultura técnica consideravelmente superior. Sem que tenham infligido qualquer tirania aos terráqueos, rasgam o antropocentrismo entranhado na metafísica e ciência, lançando o início da era pós-humana.

Para os Aleutas, as ferramentas são extensões biológicas deles mesmos: «They built things with bacteria… Bacteria which were themselves traceable to the aliens’ own intestinal flora, infecting everything» – relata o conto. Dotados de uma tecnologia intrinsecamente viva, os Aleutas exteriorizam-se sob todas as formas, trocando informação e gerindo a memória quimicamente. A tão peculiar noção de totalidade destes estranhos colonos é contrastante com nossa herança filosófica, que sublinha a qualidade fática, demasiado alicerçada na cultura, que vê as máquinas como objectos inertes e propriedade de alguém, um utilizador qualquer isolado na sua individualidade. Ademais, é sempre inquietante pensar que um objecto possa ser «animado». Tem tanto de poético como de malicioso, dizia-o Paul Valéry:

«Il me souvient ici d’une féerie que j’ai vue enfant dans un théâtre étranger. Ou que je crois d’avoir vue. Dans le palais de l’Enchanteur, les meubles parlaient, chantaient, prenaient à l’action une part poétique et narquoise. Une porte qui s’ouvrait sonnait une grêle ou pompeuse fanfare. On ne s’asseyait sur un pouf, que le pouf accablé ne gémît quelque politesse. Chaque chose effleurée exhalait une mélodie.»

É essa inquietante presença que se vive nas fantasias de Walt Disney.

No conto de Jones a acção começa com um extraterrestre que vai com o seu automóvel a uma oficina mecânica. Para o ser humano que o recebe, o conserto é tanto uma honra quanto motivo para as maiores inquietações, precisamente porque irá consertar o carro ao mais técnico dos «clientes». E para se mostrar conhecedor da arte do motor, o mecânico resolve reparar o automóvel «à mão», mantendo assim aceso um último reduto do orgulho humano. São claras as suas intenções: é a manualidade que restaura o seu papel enquanto indivíduo técnico, usando aqui as notas simondonianas. Sabemos como antes da era da máquina, enquanto reparava ou construía o «mundo» à mão, o sujeito experienciava-se enquanto indivíduo técnico, um papel que perdeu aquando do surgimento da máquina. É enquanto indivíduo técnico que o homem se reconhece como fazedor de mundos, conhecendo-se a si próprio. Ou melhor, como diz Alexandre Kojève,

«The man who works recognizes his own product in the World that has actually been transformed by his work: he recognizes himself in it, he sees in it his own human reality, in it he discovers and reveals to others the objective reality of his humanity, of the originally abstract and purely subjective idea he has of himself. By this act of finding itself by itself, then the “working” Consciousness becomes its own meaning-or-will; and this happens precisely in work, in which it seemed to be alien meaning-or-will.»

Lembre-se a libertação dos objectos técnicos que Simondon recomendou. É que o trabalho é uma forma de libertação e, tal como o diz Kojève, o trabalho que liberta o homem foi antes o trabalho do escravo. É por isso que que a libertação humana implica libertar a máquina.

Voltemos ao mecânico. Um indivíduo técnico é aquele que opera com ferramentas e tal manualidade requer conhecimento técnico. Daí que o mecânico queira arranjar o carro à mão (sugerimos a leitura de um curioso livro: Shop Class as Soulcraft, de Matthew B. Crawford, filósofo e mecânico norte-americano. Porém, na história de Jones, a manualidade que assegura a desejada posição – a de indivíduo técnico – desencadeia uma experiência terrível. Enquanto conserta o carro, o mecânico sofre uma alucinação e experiencia o mundo perceptivo dos Aleutas: vê a chave inglesa tornar-se numa espécie de músculo, pleno de agenciamentos e vontades que o transcendem. Aterrorizado, o ser humano deseja fervorosamente voltar à solidão e à segurança do mundo a que estava habituado, um mundo no qual os objectos se mantêm a uma certa distância.

Seguindo Steven Shaviro, a história de Gwyneth Jones é um método de entendimento e acesso à ontologia orientada pelos objectos. A ficção evidencia como, por um lado, as coisas, tal como os sujeitos, são actores (actants, segundo Bruno Latour). Por outro lado, sugere que, quando usamos determinados objectos, é necessário que nos aliemos a eles. Aqui chegamos a Harman. Enquanto operadores, esperamos sempre que as coisas se submetam aos nossos desígnios quando, na verdade, não basta usá-las. Com efeito, temos de nos ajustar à natureza das ferramentas de forma a podermos rentabilizá-las ao máximo.

Shaviro invoca Heidegger e seu conceito de Zuhandenheit (manualidade), por considerar que o conceito de tool-being (ser-ferramenta) de Harman deriva do primeiro. Para Graham Harman, autor associado ao realismo especulativo, todas as entidades são tool-beings (seres-ferramenta), o que se aplica a quaisquer equipamentos, desde as ferramentas aos edifícios, e nenhuma pode ser reduzida à sua Vorhandenheit, portanto a ser simplesmente dada. Uma coisa não é uma mera ocorrência nem pode ser reduzida a uma lista de propriedades. Com isto, Harman critica a leitura mais comum do conceito heideggeriano, já que considera estar para além da manipulação prática das coisas porquanto, por mais inúteis que possam parecer, as coisas sempre exercem o seu princípio de realidade dentro da totalidade do sistema das entidades:

«Inevitably, we will have to leave the human world of tools so as to advance on the truth of being itself. But the fact that Heidegger generally aims his tool-analysis only at lamps and tables and other human products is irrelevant. Whatever his own examples may be, we can speak of the readiness-to-hand even of dead moths and of tremors on a distant sun. As “useless” as these things may be, they still exert their reality within the total system of entities.»

Então, e se todas as coisas se encontram dissolvidas na ideia de ser-ferramenta sob a «capa geral» de equipamento, todas essas entidades se fundem num sistema de referência único, que põe em risco a sua singularidade. É isto que nos faz tomar as ferramentas como garantidas, sem termos em conta as suas propriedades enquanto corpos únicos. Ou seja, o ser humano dá como garantido o seu «efeito-equipamento» sem notar como estão intrinsecamente constituídas de redes, alianças, mediações e retransmissões. Mas ao mesmo tempo, e por outro lado, o ser-ferramenta também envolve a ligação inversa.

Quando uma ferramenta falha naquilo que lhe é esperado, então o seu «ser excessivo» é-nos revelado. O que Harman descreve, radicalizando Heidegger, é uma espécie de insurreição de elementos distintos, que nos bombardeiam com a sua energia:

«But for Heidegger, there is already an uprising of distinct elements from this all-devouring context, a surge of minerals and battle flags and tropical cats into the field of life, where each object bears a certain demeanor and seduces us in a specific way, bombarding us with its energies like a miniature neutron star.»

Sabemos como essa libertação de energia em potência aflige Heidegger. Quando isto acontece, a ferramenta está mais-do-que presente, isto é, está demasiado reactiva ou agressiva para se poder manusear em segurança. Lembre-se como o mecânico de automóveis, assombrado pela pavorosa ideia da carne dos equipamentos, é levado a sentir terror e náusea, sufocando perante a opressiva totalidade do ser-ferramenta que abruptamente o asfixia com a sua ostensiva autonomia. Um qualquer equipamento mais-do-que presente revela-se afinal como as ferramentas experimentadas pelo mecânico da história de Gwyneth Jones – daí que a ficção alcance metaforicamente aquilo que a realidade tem de indizível.

É este desvelamento que se torna o fundamento da ontologia orientada pelo objecto, diz Steven Shaviro, para quem a proposta de Harman trata de descrever o esforço «em fazer justiça à erupção de personalidades a partir do império do ser». Concluindo, o ser-ferramenta não se reduz ao uso nem à pura presença: dizê-lo, isso sim, seria uma pura ficção.

Segundo Graham Harman, a relação entre objectos não é teórica ou prática, nem mesmo epistemológica. É antes estética – «aesthetics becomes first philosophy». É a estética que abarca a «singularidade» e a «suplementaridade» das coisas. Por mais que um determinado objecto se gaste ou se consuma, existirá sempre algo que, no limite, não é passível de ser incorporado. Apenas a estética poderá resolver tal relação, desvelando o objecto por si mesmo, em si mesmo, para além do entendimento ou usabilidade que possa servir. A esse «deslumbramento» induzido pelos objectos, Harman chama-lhe allure, isto é, uma fascinação que força o sujeito a reconhecer a sua integridade, a partilhada sensação de que o objecto está para além das suas propriedades:

«We need a general term to cover both the comic and charming ways of encountering the sincerity objects, and the best term I can think of is allure. […] Within the realm of allure, there is a difference between humor, which feels superior to its object, and charm, which feels enchanted by it. Finally, we have given passing descriptions of many different sorts of charm, including metaphor, beauty in general, the hypnotic experience of repetitious drumbeats or machine movements, as well as the cute actions generally undertaken by small animals or children, or by strangers in new contexts who misfire slightly in copying the locals.»

Um objecto é sempre mais do que a soma das suas propriedades, sempre existindo e actuando independentemente da forma particular em que o alcançamos. Harman reconhece em Heidegger uma saída do correlacionismo, traçando a direcção para ontologia orientada pelo objecto. Porém parece-nos altamente duvidoso que Heidegger possa fornecer tal quadro interpretativo2.

 

Notas

1 «The Universe of Things» de 2011, em http://www.shaviro.com/Othertexts/Things.pdf; o conto homónimo de Gwyneth Jones data de 1993: http://www.aqueductpress.com/books/UniverseOfThings.php. O artigo de Shaviro foi apresentado no primeiro simpósio dedicado à Ontologia Orientada por Objectos – Object-Oriented Ontology – que contou ainda com a participação de Ian Bogost, Levi Bryant e Graham Harman, e aconteceu a 23 de Abril de 2010 no Georgia Tech. Para mais, consultar http://ooo.gatech.edu/.

2 Em Heidegger, o perigo acompanhava a técnica moderna porque esta opera na captura do mundo natural. Entender a natureza inteiramente disponível para a Humanidade é uma leitura correlacionista, da qual nos pretendemos distanciar. Para a mecanologia de Simondon, e longe de avaliar a técnica como instaladora de domínio e controlo do homem sobre o mundo natural, a técnica vive na ressonância entre natureza e sujeito, e recompõe-se enquanto mediadora. Simondon atenta sobre a realidade dos processos através da sua teoria da individuação, quebrando a clássica bipolaridade entre sujeito e objecto. Para além disso, reconhecer «o modo de existência dos objectos técnicos» (Du mode d’existence des objets techniques, 1958) passa por libertá-los do regime de escravatura a que estão submetidos, e poder assim descobrir como estes estranhos entes são afinal os reais mediadores da relação humana com o mundo natural. Cf. Catarina Patrício, «Notas sobre a Mecanologia de Gilbert Simondon».