«Enquanto as distinções entre a arte da performance e outros novos media são hoje bastante difusas, requerendo novas terminologias, novas maneiras de descrever «performance» neste contexto de trabalho altamente dramático e performativo, é bem claro que o motor histórico da arte e da estética contemporânea é o da história da performance e que ela começa com os futuristas.»
RoseLee Goldberg, in Art and Performance Live, 2004, p. 108
De todos os movimentos modernistas que podemos encontrar na origem da performance digital, o futurismo foi aquele que teve um papel decisivo na criação desta.
A vasta área interdisciplinar e de colaboração multimedia a que hoje chamamos performance tem na realidade mais de cem anos e pode ser relacionada com o primeiro manifesto futurista de Marinetti saído na imprensa parisiense a 9 de Fevereiro de 1909 e, pouco depois, em Tóquio, Milão e Londres.
Era esta a resposta da arte ao pensamento revolucionário do princípio do século: em 1905 era a publicada a Teoria da Relatividade de Einstein, em 1901 a Teoria Quântica de Planck e um ano antes a Teoria dos Sonhos de Freud era tornada pública. (Goldberg, 2004, p. 177)
Obcecado com as últimas máquinas (automóveis de corrida, aviões, comboios, máquinas industriais) Marinetti exigia uma arte tão inventiva e dinâmica como estas.
Nos sete anos seguintes mais de cinquenta manifestos foram escritos.
Enquanto os cubistas reconfiguravam a perspectiva e desconstruíam o espaço no quadro bidimensional, Marinetti dirigia o entusiasmo para fora do plano pintado e em direcção ao espaço real: social, político, urbano.
O futurismo esteve na base do construtivismo e do suprematismo; alicerçou as performances poéticas dadaístas de Hugo Ball e Richard Huesenbeck em Zurique, chegou aos círculos poéticos de Mayakovsky e Burliuk em Moscovo e São Petersburgo e não se lhe podem negar influências no trabalho sobre o silêncio (4’33’’) desenvolvido por John Cage muitos anos depois (Goldberg, 2004, p. 177).
No princípio do século os futuristas italianos trabalhavam no sentido de uma forma sintética e tecnológica de performance, tal como os performers o fazem hoje em dia através do computador.
Exaltando a máquina, os futuristas procuravam uma convergência de formas de arte e o casamento da arte com a tecnologia. Chegaram a desenvolver uma fórmula quase matemática para o teatro sintético, como se de um código informático se tratasse:
Pintura + escultura + dinamismo plástico + palavras livres + ruído composto (intonarumori) + arquitetura = teatro sintético (Dixon, 2007. p. 47).
Apesar de os manifestos futuristas darem uma atenção especial ao teatro, a história da arte pouco se tem ocupado da sua contribuição para as artes dramáticas em favor das plásticas e da literatura. No entanto, em 1915 o manifesto O Teatro Sintético gritava em capitais «EVERYTHING OF ANY VALUE IS TEATRICAL» e as principais figuras futuristas, tal como o próprio Marinetti, orador inflamado, dedicavam as suas energias à performance.
A filosofia
A frase «O tempo e o espaço morreram ontem», encontrada no primeiro manifesto futurista, demonstra uma perspectiva teórica que encontramos em discussões recentes sobre o ciberespaço. O entusiasmo futurista para a exploração dinâmica do tempo e do espaço, bem como a sua fé na tecnologia, relaciona-o inevitavelmente com os últimos desenvolvimentos na performance digital. Há paralelos artísticos e sintonias entre os dois «movimentos», por exemplo no facto de os escritos e experiências futuristas serem precursores do entendimento contemporâneo do computador como uma máquina de convergência e do ciberespaço como um local de evolução cultural e pessoal. Sendo o futurismo uma apologia da arte como um constante devir, um futurista de hoje seria, sem dúvida, um fã de imagens geradas por computador.
A filosofia central e elementos estilísticos do futurismo, tais como o dinamismo plástico, «a compressão, a simultaneidade e o envolvimento da audiência» (Kirby, 1971, p. 49), ressoam na performance digital de hoje.
Simultaneidade (Simultaneità, 1915) de Marinetti, incluía duas narrativas apresentadas dramaticamente em paralelo, e na partitura de Os Vasos Comunicantes (I Vasi Communicanti, 1916) diferentes acções têm lugar em três locais diferentes.
Em Face ao Infinito (Davantti All’infinito), a personagem tem de escolher niilisticamente entre um menu de alternativas como ler o jornal ou suicidar-se, acabando por escolher a última.
Esta justaposição de elementos artísticos divergentes e jogo de narrativas oposicionais simultâneas continuaria mais tarde com a anti-arte dos dadaístas e a performance surrealista.
Marinetti, no manifesto O Teatro de Variedades (1913) descreve uma filosofia próxima da sensibilidade pós-moderna, propondo um teatro moderno e desconstrutivo.
Encontramos um paralelo para este teatro no Novo Espectáculo pós-moderno dos anos 90 (Rush, 1999, p. 64) nos trabalhos de, por exemplo, Wooster Group, Fura dels Baús, Robert Lepage ou Robert Wilson (Rush, 1999, p. 64).
Divisionismo
Também o divisionismo futurista, ou as técnicas de retratar a acção em relação ao tempo, tem paralelo com a binaridade e com a capacidade do computador de fazer várias tarefas ao mesmo tempo bem como com os efeitos de motion capture e multi-imaging usados em trabalhos de dance-tech (dança tecnologia).
No quadro de Giacomo Balla Cão à Trela (1912) o movimento é dividido nos seus diferentes estádios para criar uma imagem de acção.
Na cronofotografia ou no dinamismo fotográfico os futuristas tentavam capturar as linhas de força do movimento à medida que ocorriam no tempo, por exemplo expondo o negativo durante alguns segundos para capturar o começo e o final de um gesto humano, nublando a acção entre os dois.
É o que se obtém hoje com os efeitos estroboscópicos em muitas performances digitais, como na peça de dança-teatro Les Entrailles de Narcise (2001), de Bud Blumenthal, em que existem efeitos prismáticos de uma corpo dividindo-se e espalhando-se.
Manifestos: Ecrãs e Avatares
Nunca foi feito um manifesto para a performance digital, mas os manifestos futuristas de entre 1909 e 1920 poderiam sê-lo apenas com a troca da palavra «eléctrico» pela palavra «digital», segundo afirma o académico e performer Steve Dixon (2007, p. 53).
Teatro Excêntrico, de 1915, apela ao actor para esquecer as emoções e celebrar a máquina, propondo um teatro mecanicamente exacto onde o autor é inventor e improvisador e o actor é movimento mecanizado (Kozintsov, 1921, p. 95).
Nestes manifestos os cenários deixam de ser um painel pintado e propõem-se palcos luminosos e corpos virtuais como aqueles que viríamos a ter na performance digital a partir dos anos 90.
Enrico Prampolini no manifesto de 1915 Cenografia Futurista propõe: «O palco não será mais um cenário pintado mas uma arquitetura electro-mecânica sem cor, potentemente viralizada por emanações cromáticas vindas de uma fonte luminosa… vibrações, formas luminosas (produzidas por correntes eléctricas e gases coloridos) retorcem-se e contorcem-se dinamicamente e estes autênticos actores-gases de um teatro desconhecido terão de substituir os actores reais.» (p. 206)
Prampolini antevia assim um projecto de performance digital. A ideia de um teatro luminoso está presente no ecrã do computador — o palco/interface para a performance online — e é manifesta nos brilhantes ecrãs que rodeiam os actores no teatro e dança digital, em instalações imersivas, nos pequenos ecrãs dos capacetes de 3D usados na Realidade Virtual, nos cenários ultra interactivos dos mundos virtuais.
Também o actor-gás de Prampolini é uma antevisão das formas humanas digitalmente manipuladas, tais como as figuras geradas por computador e avatares.
Tanto o avatar Cabeça Prostética de Stelarc (2009) como Jeremiah, o avatar usado na peça de Susan Broadhurst Blue Bloodshot Flowers (2001) — entidades independentes que aprendem com a interacção — se podem considerar projecções daquilo que os futuristas divisavam no seu teatro de marionetas ou no teatro sem actores.
Jeremiah, por exemplo, sendo um avatar de inteligência artificial, reage à actriz em palco através de um sistema de motion tracking e dos seus olhos e responde de forma sempre diferente em cada representação, uma vez que evolui e aprende com a interacção.
«Na síntese final os actores humanos não serão tolerados», dizia Prampolini do citado Cenografia Futurista, um eco dos performers humanos criados digitalmente para o cinema, os synthespians, e dos avatares-performers de mundos virtuais como o Second Life, como por exemplo os criados pelo grupo Second Front ou pelos artistas Eva e Franko Mattes do colectivo 0100101110101101.ORG.
Interactividade
Os futuristas foram também precursores de um dos bastiões da performance digital, a interactividade. No referido escrito, Prampolini sugere que «talvez o público se torne no próprio actor», ecoando Marinetti em O Teatro de Variedades: «o teatro futurista está só na busca da colaboração do público. Não permanece estático como um voyeur estúpido, junta-se ruidosamente à acção… comunicando com os actores.» (1913, p. 181)
Nos seus serões e sintesis os futuristas exigiam o envolvimento físico do público. Por exemplo, em Luce! de Cangiullo (1919) os performers eram pessoas da audiência que reclamavam que as luzes se acendessem para a peça começar. Só quando todo o público clamava pelas luzes se iluminava o palco para cair a cortina significando o fim da peça.
Adrian Henri apresenta uma acção desenvolvida por um futurista que descreve apenas como «amigo de Bragaglia» como um dos primeiros happenings interactivos. Aquele construiu uma grande tenda dentro da qual perseguia o público pelo meio de objectos pendurados e peças de «material» (citado por Dixon, 2007, p. 58).
O abuso, agressão e violência desses serões não se encontra talvez na performance digital dos nossos dias mas alguns grupos da net.art como os hacktivistas e «terroristas culturais» italianos 0100101110101101.ORG. ou o duo de artistas JODI, focam-se em ofender o público. Estes últimos construíram um CD ROM, OSS/****, que faz o desktop ter uma síncope e de cada vez que nos tentamos livrar do vírus as coisas pioram, como se o sistema operativo nos estivesse a atacar (Dixon, 2007, p. 60).
A Máquina e o Cyborg
A máquina tão central à filosofia futurista está também presente na performance digital, não só em obras que utilizam grande maquinaria no seu cenário mas também na presença do próprio computador como máquina automática, movendo-se fora do controlo humano, de que Zulu Time (1999) de Robert Lepage é uma alegoria.
Nesta obra, um scanner ou fotocopiadora gigante funciona ininterruptamente por cima dos actores e público, esmagando-os, como se a sua presença não fosse autónoma mas só existisse integrada na máquina.
Muitas das performances actuais que usam sons de metal contra metal, por vezes em frenesis robóticos, ecoam outro trabalho futurista seminal, A Arte do Ruído de Luigi Russolo (1913) que concebe uma nova forma musical constituída por ruído produzido por máquinas e objectos. Este manifesto influenciou a teoria e prática da música durante todo o século XX, incluindo a obra de John Cage.
Declamação Dinâmica e Sinóptica (1914), proclamava que as técnicas declamatórias vocais tinham de ser mecanizadas, o movimento tinha que ser staccato e a gesticulação geométrica; performances como Máquina Tipográfica (1914), de Balla, representavam personificações humanas de máquinas; e os bailados mecânicos de Depero e Ivo Pannaggi punham em palco bailarinos com fatos robóticos assustadores. Foram estas as primeiras concepções de sempre do cyborg.
Em 1918 Fedele Azari voava com um avião modificado para aumentar o seu ruído como se fosse a sua voz e no seu manifesto comparava o avião a uma extensão do homem «devido à absoluta identificação entre o homem e o seu avião que se torna uma extensão do seu corpo: os seus ossos, tendões, músculos e nervos estendem-se em longarinas e fio metálico» (Azari, p. 219).
Futurismo versus Revolução Digital
O período futurista emergiu como um período comparável à revolução digital em termos de mudança tecnológica e transformação social e cultural. O futurismo nasceu da fé e do fascínio pelas «novas tecnologias» que emergiram e convergiram na mesma altura: cinema, automóveis, aviões, electricidade. Estas mudanças transformaram a vida do dia a dia, de uma forma extremamente visível, enquanto a mudança digital nos afecta de uma forma mais interna, levando a nossa atenção para um pequeno ecrã e para fora do mundo. Talvez essa introversão do paradigma informático ofereça uma pista para o motivo por que não existem manifestos para a performance digital. É verdade que os artistas digitais são menos aguerridos mas não deixa de ser verdade que uma época realizou o que foi predito na outra: os artistas da performance digital concretizaram uma visão futurista estabelecida há um século e quase esquecida.
Bibliografia
Azari, Fedele, «Futurist Aerial Theatre», 1919, in Michael Kirby, Futurist Performance, Nova Iorque, PAJ Publications, 1975, pp. 218-221.
Dixon, Steve, Digital Performance: A History of New Media in Theatre, Dance, Performance Art, and Instalation, Cambridge, The MIT Press, 2007.
Goldberg, RoseLee, Performance Art: From Futurism to the Present, Londres, Thames and Hudson, 2001.
Goldberg, RoseLee, Art and Performance Live, org. por Adrian Heathfield, Londres, Tate Publishing, 2004.
Kirby, Michael, Futuristic Performance, Nova Iorque, PAJ Publications, 1971.
Konzintzov, Georgy, «Eccentrism», 1921, TDR: The Drama Review, vol. 19, n.º 4, 1975, pp. 95-98.
Prampolini, Enrico, «Futurist Scenography», 1915, in Michael Kirby, Futurist Performance, Nova Iorque, PAJ Publications, 1971, pp. 203-206.
Rush, Michael, New Media in Late 20th Century Art, Londres, Thames and Hudson, 1999.