A Luta contra o Obsoleto entre Moda e Tecnologia

A moda nasce como fenómeno com o significado central da celebração do novo, contrariamente a algumas definições que fazem do vestuário um construtor de identidade, fazendo confusão entre moda e traje, ou ainda entre moda e subculturas juvenis.

Segundo Ted Polhemus1, através da contaminação e da imitação na moda, acontece o extraordinário evento em que o indivíduo, de repente, deseja a mudança, sente que através dela o seu próprio corpo poderia viver melhor porque o novo iria representar o que há de melhor. A repentina mudança do gosto acompanha portanto o desenvolvimento da moda e vice-versa, num jogo em que o look descontextualiza o vestuário actuando uma ruptura entre significante e significado.

A Fashion Theory refere-se a um âmbito interdisciplinar que contempla a moda como um sistema de significados em que se produzem as representações culturais e estéticas do corpo revestido. O sistema moda é entendido como uma dimensão especial da cultura material, da história do corpo, da teoria do sensível. O acto do vestir é uma forma de linguagem não verbal que se manifesta através do corpo e a moda é o seu sistema de signos.

A teoria do corpo revestido, desenvolvida por Patrizia Calefato2, analisa o «revestimento» nos casos em que este comunique algo de interessante sobre a cultura, social e pessoal, do próprio corpo. Nos dias de hoje podemos afirmar que o corpo revestido é totalmente comunicável, como a interface de um computador, pois (re)veste-se com objectos que não são só fatos ou acessórios convencionais mas também telemóveis, leitores MP3, pequenas webcam, relógios com funções especiais… Juntos, fazem com que o corpo passe de um corpo natural revestido a um corpo artificial revestido.

De facto, a indumentária tem de se adequar às novas fronteiras que dilatam, no espaço e no tempo, a função e as possibilidades do ser humano.
As tecnologias da comunicação prolongaram os limites do corpo, aumentando, de dentro para fora, a capacidade de este transmitir a informação. A tecnologia cresceu progressivamente na vizinhança do corpo, aproximando-se primeiro às roupas, que se tornaram roupas de tecidos sintéticos até se  transformaram em smart fabric (tecidos inteligentes), computadores de vestir, jóias que contêm máquinas tecnológicas.

O conceito de obsoleto na moda está estreitamente ligado ao conceito de obsolescência do corpo, no sentido em que a moda também pode nascer para o auxiliar nas suas necessidades, físicas ou estéticas. Podemos criar uma primeira distinção entre as necessidades estéticas, que vêm das mudanças da moda, e as necessidades corporais, que vem das descobertas científicas em relação às novas funcionalidades do corpo. Quais são as necessidades estéticas do corpo que, em luta contra a sua própria obsolescência, tenta aumentar e prolongar as suas características físicas?

 

Stelarc e Lipovetsky e a representação fantástica do corpo tecnológico

Um claro exemplo da luta do corpo contra a obsolescência pode ser o trabalho do artista performativo australiano Stelarc, que está focado na criação de tecnologia para fazer o que o corpo (obsoleto) não consegue realizar.

Ele declara a insuficiência da anatomia humana e a consequente e necessária implantação de próteses artificiais que dão vida ao que chama «corpo híbrido».

Por outro lado, o desenvolvimento teórico de Gilles Lipovetsky mostra como a rápida obsolescência dos bens é devida ao facto de que o efémero é uma obsessão para o novo (Lipovetsky, 1987). De facto a obsolescência física (do corpo) como também a obsolescência estética (dos bens) convergem no desenvolvimento da tecnologia juntamente com o corpo e com o seu revestimento.
O corpo pensa a sua própria imagem nos termos das categorias espaciais que o definem: alto/baixo, direita/esquerda, superficial/profundo, perto/longe. A dimensão do cibercorpo reexamina de uma forma diferente a categoria perto/longe porque as TIC (Tecnologias da Informação e da Comunicação) aboliram as distâncias e erigiram, em lugar delas, uma proximidade universal, virtual e semiótica.

Se no início as tecnologias só se aproximaram do corpo, agora invadiram-no na sua totalidade, e esta transição criou e continua a criar um conflito não só ao nível social e estético do próprio corpo mas também ao nível estético da roupa.

 

O Cyborg no Cinema

A história da representação da invasão da tecnologia no corpo tem raízes muito antigas se pensarmos que o primeiro cyborg, se assim se poderá chamar, surge no cinema através da adaptação do romance de 1818 Frankenstein, de Mary Shelley.

http://www.youtube.com/watch?v=d1lVXqOncFw

O homem, ao contrário da mulher, não pode criar dentro de si uma vida humana, e o robot, ou cyborg, encarna o sonho masculino de usar conhecimentos científicos para criar a vida.

Ultrapassando o limite masculino da posse de um objecto para moldar (Frankenstein, os replicantes de Blade Runner…), a teoria do corpo híbrido inaugura a era do sujeito que se molda  a si próprio em função das suas necessidades egoístas.

 

Os Objectos de Moda «Incorporados»

Resulta emblemática a imagem do terceiro braço de Stelarc porque a luta contra a obsolescência do corpo começa sempre pelos braços e passa pelos ouvidos.
Um dos acessórios que nos últimos dez anos uniu braço e ouvido é sem dúvida o telemóvel que de um simples telefone portátil tornou-se num objecto indispensável: envia mensagens, faz fotografias e vídeos, acede rapidamente ao e-mail e é também um leitor de musica. Substituindo outros acessórios que não cabiam dentro da mala no dia-a-dia, o telemóvel transformou-se no verdadeiro terceiro braço do ser humano. É um objecto que trabalha como extensão do presente dentro do futuro, como resultado de uma necessidade cada vez mais urgente de comunicar, sendo que através dele se mudou também a forma de comunicar, enquanto as necessidades também resultam diferentes, todas governadas pela velocidade.

O conceito de obsolescência também mudou porque, mudando a forma do acessório (que cada vez mais se parece com a face de um computador), tem de mudar o contentor: mala, carteira, bolsos, dobradiças… Se antigamente, para ouvir música durante um passeio, era preciso levar às costas um estéreo, agora o que se vê são phones com cabos dos mais invisíveis que se ocultam nas dobras do casaco: a roupa tradicional começa a ter novas funções, começa a ser hi-tech.

O casaco e o colete representam os revestimentos do corpo que mais alterações sofreram em relação à tecnologia: os bolsos, indispensáveis para a comunicação planetária, multiplicaram-se.

As malas e as calças foram reinventadas com bolsos secretos especiais do tamanho adequado para guardar os telemóveis, e a mesma coisa aconteceu às pastas que, além de terem um lugar sempre mais pequeno para documentos de papel, juntaram bolsinhos interiores para telemóvel, pen USB e computador.

 

O Corpo Revestido de Tecnologia: O Caso das Subculturas Juvenis

«A comunicação cola-se ao corpo e aí trabalha ao mesmo tempo como transformadora e transformada.»

(Calefato, 2003: 163)

Gilles Lipovetsky bem tinha avisado que o poder da moda e do efémero não tem conteúdo nenhum: trata-se só de um dispositivo social definido pela breve temporalidade e pelas bruscas mudanças de direcção que envolvem diferentes âmbitos da vida colectiva. Na realidade, continua o filósofo, a aparente neutralidade doutrinal da moda esconde uma escolha ideológica muito precisa, uma espécie de «ideologia minimal» derivada do mito do «Progresso»: a irracional convicção de que o novo é sempre preferível ao velho e por isso tem de ser procurado com ansiedade. Com a moda, a novidade torna-se um signo de superioridade social.
Muitas vezes, por exemplo, possuir um telemóvel de última geração para um adolescente não representa uma necessidade real mas é uma maneira de fazer parte de um grupo: não é só um objecto prático com que se comunica mas também um objecto com um significado simbólico que constrói a identidade pessoal.

As subculturas juvenis resultam interessantes num contexto social porque fashion e luta contra o obsoleto vão de mão dada com a expressão do corpo e a identidade do indivíduo, como já dito na introdução deste artigo. A um primeiro nível existe o uso da roupa na expressão das intenções pessoais como auxiliar na definição da identidade através do suporte de acessórios e símbolos que se categorizam dentro de uma determinada cultura.
Um segundo nível é representado pela interacção entre o indivíduo e quem olha para ele, sendo que a expressão que a roupa comunica é sempre uma interpretação do olhar. De acordo com Georg Simmel, descobrimos duas principais tendências dentro da moda: a necessidade da união, por um lado, e a necessidade do isolamento por outro (Simmel, 1971).

Entre os jovens há sempre uma procura da identidade em colaboração com a necessidade de marcar a diferença, em particular com as outras gerações mas também com os outros grupos de jovens através do acessório novo, do mais moderno, do que ainda ninguém tem. O sujeito mostra com um orgulho (superficial) os objectos que colou à sua pessoa através do revestimento com que os guarda: o revestimento será adequado às regras da moda com o resultado de tornar a tecnologia um signo de luxo, em vez de uma ajuda ao desenvolvimento corporal humano. Este caso é emblemático de como o novo, num ambiente juvenil, adquire o particular significado de construtor de identidade. Se do ponto de vista da moda um acessório de última geração não significa nada senão a sede do indivíduo de trocar o velho pelo novo, o normal pelo melhor, do ponto de vista dos jovens isto representa uma forma de integração num determinado grupo. O elemento fashion pode ter um lugar dominador quando ao acessório e ao seu contentor se adicionam elementos, como a cor, que diferenciam as várias correntes (dark, pop, punk, emo…).

Se as culturas juvenis pareciam nunca ter uma grande mudança pois trata-se de grupos que, ao longo dos anos, possuíram sempre os mesmos pontos de referência, agora, com o rápido desenvolvimento da tecnologia, começam a vacilar. O simples facto de não possuir um telemóvel ultima geração faz com que o jovem se possa sentir excluído de um grupo, porém a escolha de não estar a passo com os tempos também é uma forma de adquirir uma distinta personalidade.
Hoje em dia tudo tem a ver com a luta à obsolescência: também a sua ausência.

Se o vestuário irá assumir as funções de um computador, por um lado tornar-se-á mais fácil a luta contra a obsolescência do corpo, mas por outro lado será mais difícil manter separados os progressos da tecnologia, dos desejos fashion do corpo revestido e por consequência a mistura entre conceitos de puro luxo e identidade irão englobar a moda num processo de decadência da personalidade.

Será que o conceito de obsoleto nos permitirá chegar a um novo significado de beleza?

 

Bibliografia Essencial

Calefato P., Il Corpo Rivestito, Bari, Edizioni del sud, 1986.

Capucci P., Il Corpo Tecnologico, Bolonha, Baskerville, 1994.

Cerini G., Grandi R. (orgs.), Moda: Regole e Rappresentazioni. Il Cambiamento, il Sistema, la Comunicazione, Milão, Franco Angeli ed., 1993.

Fortunati L., Katz J. E., Riccini R. (orgs.), Mediating the Human Body: Technology, Communication, and Fashion, Lawrence Erlbaum Associates publishers, 2003.

Lipovetsky G., L’Empire de l’éphémère: la mode et son destin dans les sociétés modernes, Paris, Gallimard, 1987.

Simmel G., On Individuality and Social Forms, Chicago, Levine, 1971.

 

Notas

1 No texto de G. Cerani, o ensaio «Sampling & Mixing» explica detalhadamente esta teoria de Polhemus.

2 Calefato fala pela primeira vez de «corpo revestido» no livro de 1986.