O Mundo Interior e Exterior das Metamorfoses Flutuantes

1.1

Numa compilação de múltiplas efectivações e figurações do corpo ao longo da cultura contemporânea surge um conjunto de considerações transdisciplinares que o assumem como um objecto sobejamente preponderante mas que, paralelamente, questionam a crescente assumpção da sua possível obsolescência. No que podemos designar por corpo-matéria, é sempre permitida ao sujeito uma espécie de nova fabricação de si, seja por via do elogio ou pela recusa do seu corpo orgânico próprio, mas tendo sempre presente a iminência das inúmeras possibilidades por ele desencadeadas. Esta refabricação (ou reestruturação) nem sempre é realizada de forma apaziguadora: muitas vezes, os limites corpóreos são esticados ao máximo, perpetrando-se no corpo verdadeiras agressões premeditadas na tentativa de uma real apropriação e/ou efectivação. Parece-nos que é neste ponto que encontramos a suma da problemática em torno do corpo predominante mas aparentemente obsoleto – a de o artista assumir a sua verdadeira e inequívoca apropriação.

Considerando esta grande possibilidade para o corpo na arte, podemos lê-lo de duas formas distintas: por um lado, apresentando-o sobretudo como compósito plástico inegável e espelho dos mais intrínsecos desejos, consequentemente medium absoluto na criação; por outro lado, colocando-o em plena crise, sendo esta mesma responsável pela elaboração de formulações demasiadamente catastróficas acerca do seu inevitável final. De qualquer das formas, parece claro que o corpo é sempre entendido como um palco onde se completam todos os encontros.

Tentaremos então traçar duas linhas condutoras distintas a partir desta possibilidade – o corpo como força de apropriação do eu:

  • A enfatização da forte materialidade dos fluidos corporais, esboço em si próprio de uma espécie de eu obra carnal/visceral, um eu matéria expresso a partir do próprio corpo de carne2; manifesto lavrado (muitas vezes a sangue) para uma cultura real do eu; reflexo da mente, do desejo, exultando ser espelho ou estandarte;

«I started realizing I could use any material I want, fire, water, and the body. The moment when I started using the body, it was such an enormous satisfaction that I had and that I can communicate with the public that I could never do anything else.» (Marina Abramović)

  •  O cingir do corpo «apenas» a um ponto de partida à obra propriamente dita, renegando os fluidos pelos fluidos e adoptando sempre a concepção de um corpo que só fará verdadeiramente sentido quando melhorado (?); um eu cobaia rendido aos milagres de uma tecnologia cada vez mais invasiva, numa espécie de tecno-humanismo (ou trans-humanismo); mecanismo, prisão sufocante, trampolim ao uso de inevitáveis melhoramentos.

«It is no longer meaningful to see the body as a site for the psyche or the social, but rather as a structure to be monitored and modified.» (Stelarc)

2.

2.1

É incontornável pensar-se sobre o corpo na arte sem nos debruçarmos muito particularmente sobre a Body Art, que pode ser genericamente interpretada como uma espécie de extensão ou resposta do/ao psiquismo, através de trabalhos preocupados com as questões de género e de identidade individual, que viajam sobretudo pelos limites do corpo e pelas determinações da mente. Cremos ser fundamental não esquecer a importância de manter estes dois factores – corpo e mente – em constante paralelismo. A contemporaneidade acaba por apresentar formas de expressão artística que propõem uma convivência uníssona mas no entanto, aparentemente antagónica de uma determinada impossibilidade de composição sincronizada corporal/espiritual, onde a oposição acaba por ser fundada na designada «apologia ao corpo» divulgada por David Le Breton3. Se, tal como o autor indica, o corpo poderá ser analisado sem a implicação do conceito de indivíduo, o contrário, a análise do individuo sem levar em consideração o conceito de corpo seria também, em última instância, possível. No entanto, parecer-nos-ia verdadeiramente lamentável conseguir-se a real efectivação dessa separação — pensar num indivíduo é pensá-lo de corpo e mente.

 

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Marina Abramović em Rhythm 2 trabalha de forma experimental esta dualidade, esticando-se ela própria ao limite pleno, chegando mesmo a afirmar, na sequência de outras performances-limite, físicas e mentais: «I was very angry because I understood there is a physical limit: when you lose consciousness you can’t be present; you can’t perform.»4 Mas apesar desta constatação do evidente, Marina Abramović continua a eleger o corpo — mesmo sendo portador comprovado de todas estas limitações — como um material plástico insubstituível, como o derradeiro medium capaz de catapultar para primeira instância as suas próprias vontades enquanto artista ou indivíduo. Assiste-se desta forma à beleza de um jogo de forças, em que o corpo é simultaneamente caçador e presa. Caçador dos seus desejos íntimos; presa das suas próprias limitações.

Marina Abramovic, Rhyhtm2

Marina Abramovic, Rhyhtm2

A arte parece então servir de trampolim para a afirmação indubitável de querer. O corpo do artista assume-se como protagonista preponderante, encarnando várias personagens, habitado por todos os outros corpos capazes de serem realizados pelo desejo. E o que deseja afinal o desejo para o corpo humano senão apropriar-se efectivamente dele?… Esta arte centrada no corpo serve também de purga de devaneios. A purificação parece ser adquirida unicamente através da expiação e do sofrimento. Ao exibir o corpo infligido, o artista parece conseguir alcançar o simples direito de ser. A qualidade mais gestual explode em múltiplas direcções e o visceral acaba por ganhar forma concreta numa expressividade maioritariamente agressiva. Através da ruptura dos seus fluidos, adquire-se um certo carácter catártico do próprio sujeito, sendo por isso mesmo impossível renegá-los combatendo dessa forma o corpo próprio.

2.2

Para Stelarc, cuja obra pode ser compreendida dentro da Bio-Art (que pretende primeiramente ampliar as funções biológicas do ser humano), o corpo não é «apenas» um medium de expressão plástica, mas sobretudo um amplo meio de experimentação. Partindo da arquitectura biológica do corpo, e acrescentando-lhe tecnologia, é possível aumentar-lhe as capacidades operacionais. O corpo do sujeito é então tratado como um elemento em constante evolução, nunca conformado com as suas limitações. Pode ser estabelecida uma linha sinuosa entre a Body Art e a Bio-Art, uma vez que ambas partilham, de forma sistemática e recorrente, a expressão máxima no corpo próprio (seu ou dos outros). Contrariando, no entanto, o elogio que a Body Art faz ao corpo, Stelarc afirma a sua obsolescência – precisamente porque as limitações corporais são efectivamente condicionantes.

 

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Num dos seus últimos trabalhos, Ear on Arm, a vontade espelhada é muito claramente a da superação, de criar novas funções e prolongar largamente as existentes neste corpo «fragilizado» pela questão biológica. «Ganhou possibilidades, o corpo, com a tecnologia, perdeu pois existência, espaço no Mundo, capacidade de competir com os outros; isso mesmo: capacidade de competir com o Mundo.»5 Stelarc afirma que não existem implicações de ordem metafísica no seu trabalho, que apenas consiste em assumir o corpo como mais uma escultura inserida num determinado espaço, interligado a todas as outras esculturas existentes; declara desta forma o enorme interesse pelo cariz mais comunicacional do corpo.

Stelarc, Ear on Arm

Stelarc, Ear on Arm

O corpo é assim assumido antes de mais como meio de comunicação circunscrito ao conceito de simples coisa tangível, susceptível de ser ligado ou desligado:

«Certainly what becomes important now is not merely the body’s identity, but its connectivity – not its mobility or location, but its interface. […] The body becomes a nexus or a node of collaborating agents that are not simply separated or excluded because of the boundary of our skin, or of having to be in proximity. So we can experience remote bodies, and we can have these remote bodies invading, inhabiting and emanating from the architecture of our bodies, expressed by the movements and sounds prompted by remote agents.»6

Este meio comunicacional é por ele considerado desactualizado face às contingências do contemporâneo, mesmo continuando a ser o suporte experimental por excelência, e em nosso entender, portador único de identidades: «Hoje, para o bem e para o mal, estamos a aprender a recriar a natureza – por nossa conta e risco.»7 E esta recriação, mesmo sendo mais «ficcional» no campo da arte, acaba por ter implicações demasiado reais. Propor novas vidas (ou novos tipos de vida) é, no limite, o papel maior que esta arte científica se propõe assumir. Novos paradigmas são criados, novas normas instauradas. Entendemos, dessa forma, a actual rede comunicacional interdisciplinar como veículo para escapar a apropriações complexas e muitas vezes não totalmente definidas do próprio conceito de Vida. Enquanto atravessa diversos territórios disciplinares (ciência, arte, ética, lei, etc.), a vida vai escapando subtilmente a cada um deles.

 

3.

«A lógica da máquina emerge enquanto articulação possível de “alteridade múltipla”»8, permitindo ao homem idealizar, entre complexas ligações, desligações e extensões, aquela que será talvez a intervenção mais extrema no corpo – a que um dia será capaz de lhe conferir corporeidade dentro da virtualidade, atribuindo-lhe por fim a ambicionada perfeição. Este desejo de criação incomensurável levará, provavelmente, à fabricação mais íntima dos fantasmas da própria humanidade. Mas estaremos nós preparados para habitarmos o mundo com os espectros no nosso ser? O corpo converte-se, portanto, num estreito universo portador de rebeliões, mutações e desígnios, passando a ser encarado «como uma posse, um atributo, um outro, um alter-ego»9] catalisador de relações e afecções entre sujeitos, objectos, conceitos ou imagens. Enquanto estandarte de opiniões, o corpo é utilizado, reutilizado e, por vezes, abusado; como forma de contestação, é literalmente ofendido ou maltratado.

O corpo próprio, que aparentemente se desvanece aos poucos, acaba dessa forma por renascer, por se reerguer na pele e na carne de um outro, não deixando nunca de estar presente. E esta passagem entre personae expõe o sujeito contemporâneo que deambula entre estádios, acabando por se encontrar numa encruzilhada de sensações e experienciações mais ou menos radicais, mas capazes de catapultarem para primeiro plano tudo o que é constituinte da sua humanidade. Pela matéria própria de que é feito, e pelo facto de se situar num permanente estado intermédio, o sujeito, o seu corpo e as suas relações são livres de expansão para qualquer direcção. Dilatam-se. Contraem-se. Torcem-se. Fragmentam-se. A identidade surge assim como uma «coincidência incerta» entre o global e o fragmentado, entre o todo e os vários pedaços que o compõem. O dado adquirido já não encontra lugar numa cultura especulativa que produz a cada instante novas configurações de ser e de estar.

Num contínuo desenraizar, assiste-se ao deslocar de propriedades características ao humano, que passam a ser partilhadas com todas as outras propriedades criadas e entregues aos monstros, freaks e cyborgs que realizam finalmente o desejo. Ao submeter o corpo a alterações mais ou menos significativas, o sujeito desliga-se do território físico que possuía (o corpo «normal») e torna-se o agente de motorização de mudanças fundamentais (através do corpo alterado). O corpo e o paradigma da imagem por ele reflectida percorrem um trilho inquietante que fundamenta a proposição da superação do humano e dos seus limites e enveredam pelo caminho do desejo de «partir e deixar». «O desejo faz constantemente a ligação de fluxos contínuos e de objectos parciais essencialmente fragmentários e fragmentados.»10] É dessa forma que o corpo se apresenta actualmente – um aglomerado fragmentário e por isso mesmo repleto de possíveis estruturações. O desejo parece ser então apresentado como um elemento uno ao corpo, conceito fulcral para a determinação de objectivações e subjectivações do indivíduo, permitindo-lhe ligar-se e desligar-se mais facilmente.

Considerar as transformações/manipulações a que o corpo é constantemente sujeito predispõe um entendimento para pensar as diferenças entre todos estes corpos vários, assentes sobretudo em tensões incontornáveis. Uma vez que o corpo elemento orgânico é possuidor de características simultaneamente comuns ao corpo-criador, ao corpo-obra e ao corpo-espectador, parece-nos ser linear percebê-lo como factor efectivamente desestabilizador. Ele comunica permanentemente, mas a forma como o faz é por vezes demasiado indecifrável11]. O corpo é então rasgado, traduzido em carne viva, desprovido de pele, como se das suas entranhas rompessem essas tão desejadas personae etéreas nascidas de uma automutilação largamente necessária e muito consciente. Estes outros parecem ganhar uma autonomia tornada visível12] através da agressão formal ao corpo próprio, da transposição da fronteira daquilo que é habitualmente designado por normalidade. Pode desta forma considerar-se uma qualquer metamorfose do corpo físico como parte evidente da vontade expressa. Uma consciência evocativa de um querer tornar-se outro.

 

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Glorificar o corpo ou recusá-lo, mas assumi-lo sempre como sendo próprio, como motor de apropriação de vontades. Cremos ser então possível apontar uma metamorfose, no sentido de intervenção, como uma espécie de desdobramento ou forma de desligação, e sugeri-la assim como uma imagem de protecção, na medida em que liberta. É nesse momento que se dá a verdadeira apropriação. As relações que o sujeito e o seu corpo mantêm com outros sujeitos e outros corpos funcionam em uníssono com as que estabelece consigo mesmo, com a sua própria carne. O corpo sendo um «estranho esquecido» é efectivamente afirmação, intenção, apropriação. É nesse momento que a carne (re)emerge, ultrapassando, em parte, os limites do corpo próprio. A suposta obsolescência do corpo de carne não é então mais do que a desmedida vontade da sua própria superação.

 

Bibliografia

Abramović, Marina, «Quotes», s.d. (acedido em Julho de 2011)
Abramović, Marina, “The grandmother of performance art returns to the UK” em http://i-donline.com/2010/10/marina-abramovic/, 2010 (acedido em Julho de 2011).
Deleuze, Gilles e Guatari, Félix, O Anti-Édipo: Capitalismo e Esquizofrenia 1, Lisboa, Assírio & Alvim, 2004.
Dias, Rui, «Um Duplo muito Especial: Anotações sobre o Futuro dos Objectos Artificiais», in Monteiro, Pedro C. (org.), ArLíquido, n.º 1, Lisboa, Universidade Lusíada Portuguesa, 2005.
Kerckhove, Derrick de, A Pele da Cultura, Lisboa, Relógio d’Água, 1997.
Kristeva, Julia, Powers of Horror: An Essay on Abjection, Nova Iorque, Columbia University Press, 1982.
Le Breton, David, A Sociologia do Corpo, Petrópolis, Vozes, 2006.
Llansol, Maria Gabriela, O Raio Sobre o Lápis, Lisboa, Assírio & Alvim, 2004.
Stelarc, «Ear on Arm: Engineering Internet Organ», in http://stelarc.org/?catID=20242, s.d. (acedido em Julho de 2011)
Stelarc, «Prosthetics, Robotics & Remote Existence: Post-Evolutionary Strategies», in http://www.streettech.com/bcp/BCPgraf/CyberCulture/stelarc.htm , s.d. (acedido em Julho 2011)
Tavaraes, Gonçalo M., «A Paixão segundo Clarice Lispector», in Guarda, D. e Urbano, J. (orgs.), Corpo Fast Forward (Número Magazine), 2001.

 

Notas

1 O título deste artigo recupera uma passagem de Maria Gabriela Llansol em O Raio sobre o Lápis, p. 40.

2 Esta visão de trabalho é iminentemente associada ao que podemos designar por Arte Abjecta. Este tema foi amplamente trabalhado por Julia Kristeva e está inteiramente ligado ao «informe» de Georges Bataille. Trata-se de trazer para primeiro plano teorias que se centram nas questões da atracção e da repulsão e do especial fascínio que temos pelo que (muito) nos repele.

3 David Le Breton, A Sociologia do Corpo, p. 10. O autor refere uma dualidade entre corpo e indivíduo: «A apologia ao corpo é, sem que se tenha consciência, profundamente dualista, opõe o indivíduo ao corpo e, de maneira abstracta, supõe uma existência para corpo que poderia ser analisada fora do homem concreto.»

4 Marina Abramovic em http://i-donline.com/2010/10/marina-abramovic/

5 Gonçalo M. Tavares, «A Paixão segundo Clarice Lispector», in Corpo Fast Forward, p. 174.

6 Stelarc em http://stelarc.org/?catID=20242

7 Derrick de Kerckhove, A Pele da Cultura, p. 164.

8 Rui Dias, «Um Duplo muito Especial: Anotações sobre o Futuro dos Objectos Artificiais», ArLíquido, n.º1, p. 70.

9 David Le Breton, A Sociologia do Corpo, p.10.

10 Gilles Deleuze e Félix Guattari, O Anti-Édipo: Capitalismo e Esquizofrenia 1, p. 11.

11 A comunicação parece assim perder-se algures entre sangue, suor ou microchips, e a mensagem que acaba por chegar ao espectador não habita de todo as suas memórias mais íntimas, chegando por vezes a ser considerada uma ofensa.

12 Tornar visível – mostrar, algo que se dá a ver, do latim «monstrare», do qual deriva «monstrum» (monstro). Os artistas têm utilizado o conceito de monstro como metáfora centrada numa certa ansiedade relativamente às mais diversas temáticas. As imagens que ao longo dos séculos servem de reflexo ao monstro, apresentam de facto o poder destes na representação de múltiplas dualidades. Podemos então considerá-los mensageiros ou reveladores, e pensar-se neles como uma espécie de alter ego do humano, deambulando incertamente entre o anjo e o demónio.

Nota biográfica

Filipa Cerveira Pinto (n. 1978). Licenciatura em Design de Equipamento (ESAD – Escola Superior de Artes e Design, 2002). Mestrado em Ciências da Comunicação – Área da Cultura Contemporânea e Novas Tecnologias com a dissertação Os outros do corpo próprio – As representações da monstruosidade corporal nas artes (Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 2008).

Este trabalho contém passagens adaptadas da dissertação Os Outros do Corpo Próprio: As Representações da Monstruosidade Corporal nas Artes, Lisboa, FCSH-UNL 2008.