«Aquele Lugar fora do Mundo»: Geografia, História, Ficção

Os viajantes são consabidos mentirosos. Não foram, contudo, as suas mentiras que motivaram o interesse das áreas dos estudos literários e culturais ao longo das últimas três décadas, mas sim as fronteiras frágeis e ambíguas que demarcam o território habitual da literatura de viagens: verdade e mentira, facto e ficção, Geografia, História e Literatura, todas parecem fundir-se ali num discurso consensualmente híbrido.

A atenção que tem sido votada a este discurso está entretanto longe de ser uma mera coincidência. As festividades associadas ao 500.º aniversário da «Descoberta» da América a par das comemorações de diversas outras viagens que deram ao mundo mais ou menos a forma cartográfica que actualmente tem (Gama, Cabral, Magalhães) poderiam explicar este novo interesse. Mas essa seria uma explicação não só parcial como relativamente pobre. De facto, muito mais do que uma mudança de interesses motivada por eventos públicos, académicos e/ou institucionais, a atenção que a literatura de viagens tem despertado decorre de uma mudança de perspectiva que tem vindo a transformar – quer dizer, também a trans-formar – as Humanidades desde finais dos anos 60.

Em certo sentido dir-se-ia que quanto mais as Humanidades mudavam ao longo das últimas décadas do século XX, mais a literatura de viagens se via no centro dos seus interesses.

A (Teoria da) Literatura, por exemplo, (re-)descobre em meados dos anos 60 o «espaço», a «descrição» e a «representação», i. e., formas narrativas consideradas menores para a maioria dos movimentos literários do século XIX (Valéry, Goodman); sensivelmente ao mesmo tempo, o estudo da Linguagem parece mais interessado nas questões da formação e produção de sentido, e tende a debruçar-se filosoficamente sobre o modo como a linguagem falha, por exemplo, na «descrição» ou «representação» de objectos simples como um coelho num prado verde ou uma mesa (Quine, Searle); o mesmo tipo de questões leva a História ou a Antropologia a reponderarem conceitos centrais como «verdade», «facto histórico» ou «autenticidade» e a descobrir similitudes, até ali pouco exploradas ou para muitos mesmo insuspeitas, entre o seu discurso e o discurso habitualmente tido por literário (White, Clifford); finalmente as Humanidades dos anos 80 são varridas pela «viragem cultural» que descobre novos temas e objectos de interesse e, com eles também, novos métodos e novas perspectivas de análise que se tornam particularmente produtivas no conglomerado de disciplinas que formavam as até aí ortodoxas e novecentistas Geisteswissenschaften.

Num quadro deste género a questão de saber se um poema ou um romance é dulce et utile (para utilizar a expressão que Horácio tornou clássica) já só se pode colocar muito lateral e secundariamente. Interessa antes perceber como são possíveis poemas e romances, como produzem sentido? Como fazem os mundos que fazem? Como tornam esses mundos explícitos, se a linguagem que usam, e de que também são feitos, falha na descrição de um objecto tão simples como uma mesa? Qual e como é a diferença, quais e como são as fronteiras entre «verdade» e «mentira», «facto» e «ficção»?

Estas são em grande medida as questões que estão subjacentes à centralidade que a literatura de viagens foi adquirindo nas teorias contemporâneas.

Não são questões novas, naturalmente. Da História Verídica de Luciano (cujo narrador é significativamente um viajante!) até ao radicalismo de Nietzsche no final do século XIX («não há factos, apenas interpretações») este conjunto de questões esteve, mais ou menos explicitamente, sempre presente na história do pensamento humano e a literatura de viagens constituiu desde sempre, também, um palco privilegiado de reflexão (disputa, controvérsia, argumentação) sobre estas matérias.

Uma passagem do prefácio das Viagens Patrióticas de Carl, em Cartas a Eduard [Carls vaterländischen Reisen in Briefen an Eduard], obra publicada sob anonimato em Leipzig no ano de 1793, mostra-o de uma forma exemplar:

 


 

a) Por exemplo sou eu,

b) é o Senhor Crítico,

c) é o meu ponto de vista: diga-se a propósito que é um ponto grande porque eu raramente erro.

d) é o ponto de vista do Senhor Crítico; é um ponto muitíssimo pequeno e por isso ele consegue ver coisas que eu nem sou capaz de distinguir.

e) é um arbusto, e

f) uma casa.

Ora eu digo por exemplo ao Senhor Crítico que o arbusto está à direita e a casa à esquerda; «Não», responde este, «a casa está à direita e o arbusto à esquerda»: agora, se o leitor se dignar a olhar para o meu desenho e se além disso souber o que é a esquerda e a direita, verificará que eu e o Senhor Crítico, quero dizer, o senhor Crítico e eu, ambos temos razão, e que discutiremos e seremos injustos um para com o outro até que o Senhor Crítico me consiga fazer ver o seu ponto de vista ou eu, o meu, a ele. […] Portanto meu caros senhores, o ponto de vista certo e com isto ponto, final.

O estilo humorístico e descontraído do autor anónimo alemão não deve desviar o leitor do papel crucial que a literatura de viagens então detinha para a escrita da História e, de uma forma geral, como base da filosofia iluminista. De facto, como sublinhara já Reichard no prefácio do seu Guia para Viajantes de todas as Classes, publicado na mesma cidade de Leipzig em 1784:

O viajante é para o filósofo o que o farmacêutico é para o médico; as notícias do primeiro constituem a base do sistema do filósofo, as drogas medicinais do farmacêutico a base das prescrições do último. Se o farmacêutico troca as drogas o paciente morre, se o viajante mente o filósofo erra. O papel do viajante é pois mais importante do que alguns pensam.

A discussão que aqui apenas se toca superficialmente, mas que marcou de uma forma bem mais profunda a reflexão sobre as condições de produção do conhecimento durante o século XVIII, estabeleceu importantes pontos de referência para a construção de uma epistemologia assim como de uma estética modernas.

Em certo sentido a questão da «verdade» no e do conhecimento emerge em virtude da ambiguidade que a Literatura – e aí sobretudo o romance – introduz no discurso. E valerá decerto a pena notar que a própria Literatura, assim como muitos dos seus autores e leitores foram também vítimas – e note-se que o termo «vítima» não é aqui usado num sentido metafórico – dessa nova ambiguidade.

Com efeito, recorde-se que Goethe foi obrigado a incluir um motto (que é na realidade uma advertência ao leitor) na segunda edição do seu Werther em função dos suicídios que a primeira edição do livro parecia ter provocado e o caso de Daniel Defoe e do seu Robinson Crusoe constitui outro caso paradigmático dessa nova zona de indefinição produzida pela literatura.

Publicado em dois volumes em 1719, o romance tornou-se rapidamente um sucesso entre o público, mas não… entre a crítica literária da época. Fustigado justamente por essa crítica, Defoe publica em 1720 um terceiro volume que intitula Serious Reflections during the Life and Surprising Adventures of Robinson Crusoe: with his vision of the angelick world.

O prefácio, decerto uma das importantes obras-primas da Literatura e da Teoria da Literatura da época, termina com esta solene declaração de … Robinson Crusoe:

I have heard, that the envious and ill-disposed Part of the World have rais’d some Objections against the two first Volumes, on Pretence, for want of a better Reason; That (as they say) the Story is feign’d, that the Names are borrow’d, and that it is all a Romance; that there never were any such Man or Place, or circunstances in any Mans Life; That it is all form’d and embellish’d by Invention to impose upon the World.
I Robinson Crusoe being at this Time in perfect and sound Mind and Memory, Thanks be to God therefore; do hereby declare, their Objection is an Invention scandalous in Design and false in Fact; and do affirm, that the Story, though Allegorical, is also Historical; and that it is the beautiful Representation of a Life of unexampled Misfortunes, and of a Variety not to be met with in the World, sincerely adapted to, and intended for the common Good of Mankind, and designed at first, as it is now farther apply’d, to the most serious Uses possible.

 


 

Se bem que as marcas do classicismo ortodoxo estejam ainda aqui presentes (por exemplo na apregoada «séria» utilidade da obra), o facto é que o discurso ficcional assim projectado não se configura como «verdade» nem como «mentira», ou configura-se modernamente como ambas, enquanto «representação da vida» simultaneamente alegórica e histórica. Mas porventura mais importante do que este modo ambíguo de ser é a clara viragem epistemológica que, quando considerado no contexto setecentista em que se inscreve, este discurso ficcional introduz: ao assumir a forma da literatura de viagens, e trabalhando por conseguinte com as bases «que constituem o sistema do filósofo», este discurso estava a intervir directamente na área do conhecimento, da filosofia e da ciência.

Estava aberto o caminho para que o conhecimento fosse olhado como ficção (Berkeley) e a Ciência, por seu turno, fosse ficcionada. Tinha sido encontrado «aquele lugar fora do mundo» (para dizer como Novalis) que haveria de transformar, e tantas vezes antecipar, o próprio mundo.