A Viagem Imóvel: Fotografia e Experiência do Deslocamento

No conto «O Aleph», Jorge Luís Borges revela-nos a escrita de um poema intitulado Terra, constituído por uma extensão interminável de estrofes que aspiram a descrever a totalidade do planeta. Na sua elaboração, o poeta (Daneri) utiliza o aleph, um objecto privado que corresponde a um ponto no espaço onde se vêm todos os outros pontos, o único sítio onde todos os outros sítios podem ser vistos.

James Nasmyth e James Carpenter, «Back of Hand and Wrinkled Apple»

James Nasmyth e James Carpenter, «Back of Hand and Wrinkled Apple», in The Moon Considered as a Planet, a World and a Satellite, 1874.||«To illustrate the origin of certain mountain ranges by shrinkage of the globe.»|(James Nasmyth, James Nasmyth Engineer: An Autobiography, 1883)||© National Museum of Photography, Film & Television/Science & Society Picture Library

Aleph é um dispositivo especular a partir do qual se vê e pode transcrever o mundo e que nos faz aceder simultaneamente a uma experiência alucinatória, uma viagem imagética que inclui a própria narrativa, o narrador e o leitor:

«cada coisa era infinitas coisas, porque eu a via claramente de todos os pontos do universo. Vi o populoso mar, vi a aurora da tarde, vi as multidões da América, vi uma prateada teia de aranha no centro da negra pirâmide, vi um quebrado labirinto (era Londres), vi intermináveis olhos próximos perscrutando em mim como num espelho, vi todos os espelhos do planeta e nenhum me reflectiu.»1

Elemento ficcional a partir do qual Borges miniaturiza o mundo, numa mise en abîme que ensaia a transgressão e limite do próprio texto, o seu poder reside na capacidade de reflectir imagens infinitas, olhos e espelhos que operam na contínua duplicação e reflexão de imagens.

Perfeitamente inscrito no seio da modernidade, aleph é uma máquina de imagens que afirma o múltiplo e potencia o conhecimento do mundo pela sua imagem, numa analogia com a técnica moderna que a fotografia e o cinema protagonizaram.

A vertigem da contemplação retratada por Borges, forma de deambulação aleatória e de abandono à pulsão das imagens, parece corresponder à caracterização que Walter Benjamin realiza da experiência do flâneur de Baudelaire em «Über einige Motive bei Baudelaire» (1939):

«Mover-se por entre esse tráfego envolve o indivíduo numa série de choques e colisões. […] Baudelaire fala de um homem que mergulha na multidão como se ela fosse um reservatório de energia eléctrica. Para circunscrever a experiência do choque, ele chama a este homem “um caleidoscópio equipado de consciência”.»2

Mesmo quando essas imagens parecem, como as fotografias de Paris de Eugène Atget, «limpar e purificar a atmosfera»3 como escreve Benjamin, a sua contingência temporal e a impossibilidade de as fixar a um momento único conferem-lhes uma dimensão nostálgica que se torna inerente a sua existência.

Eugene Atget, «Carousel», 1923

Eugene Atget, «Carousel», 1923||«“Did the French people appreciate his work? “No, only young foreigners.”»|
Berenice Abbott, The World of Atget, 1964.||© George Eastman House

Com maior evidência do que noutras imagens, a fotografia reflecte essa propensão em atravessar os indícios do presente em direcção a um conhecimento de pré-representação do lugar, uma viagem fenomenológica entre a sua existência física, a virtualidade da imagem e o que depois dela se torna ausente.

 

As imagens não têm um lugar fixo. São migrantes por excelência e representam a sua relação com o mundo através da inscrição da sua temporalidade. Perante a perenidade da imagem, como nos diz Georges Didi-Huberman, «temos de reconhecer humildemente que ela nos vai provavelmente sobreviver, que somos perante ela o elemento frágil, o elemento de passagem e que ela é perante nós o elemento de futuro, o elemento de duração»4.

É esse modo de se constituírem simultaneamente intemporais e móveis que nos permite adicionar-lhes travessias imaginárias, actualizações ou projecções da nossa própria existência, do nosso lugar.

A imagem fotográfica em particular, pelo seu vínculo com a realidade e pela multiplicação de vistas que sobre ela realiza, permite-nos ainda descobrir um outro lugar, que figura apenas no interior da própria imagem. Um lugar de fragmentação, que pertence a uma dimensão fotográfica, a partir do qual o espectador se evade, como escreve Christian Metz, «para uma longa e imóvel viagem sem retorno»5.

 

Primeira Viagem

 
A nostalgia quase aurática que associamos hoje às imagens fotográficas de um passado distante nada tem a ver com os modelos de recepção com que a sua invenção foi efectivamente investida. Um entusiasmo direccionado pelo pensamento positivista, que encontrou na exactidão técnica da reprodutibilidade fotográfica uma forma de transferir e portabilizar a experiência do lugar, alterando o modo de o olhar e conhecer.

Foi como novo instrumento de experimentação, que a ciência da época não podia continuar a evitar, que a sua invenção foi proclamada por François Arago, em 1839, na Academia das Ciências Francesa:

«Enquanto estas imagens vos são exibidas, qualquer um imaginará as extraordinárias vantagens que poderiam ter sido retiradas de um meio de reprodução tão exacto e tão rápido durante a expedição ao Egipto; qualquer um será abalado por esta reflexão, que se tivéssemos tido a fotografia em 1798, possuiríamos hoje imagens fiéis de alguns quadros emblemáticos, dos quais a cupidez dos árabes e o vandalismo de certos viajantes privaram para sempre o mundo do saber. Para copiar os milhões e milhões de hieróglifos que cobrem, mesmo no exterior, os grandes monumentos de Tebas, de Mênfis, de Karnak, etc., seria preciso dezenas de anos e legiões de desenhadores. Com o daguerreótipo, apenas um homem pode levar a cabo este imenso trabalho.»6

Francis Frith, «View of Lisbon», c. 1860.

Francis Frith, «View of Lisbon», c. 1860.||© Colecção Particular

Numa alusão à Campanha do Egipto (1798-1801) empreendida por Napoleão Bonaparte, Arago defende a substituição do modelo descritivo e pictórico, incapaz de reproduzir fielmente as maravilhas do Oriente, pela replicação e salvaguarda patrimonial e, de forma menos explícita, por uma alteração das dinâmicas económicas e políticas que a imagem fotográfica passa a introduzir.

Fazendo coincidir a prática fotográfica com uma cultura de viagem marcada pelo desejo expansionista europeu, assiste-se, neste período, a uma crescente explosão visual da representação geográfica, por uma série de fotógrafos que se deslocam, com distintas intenções, para o Oriente.

Francis Frith, Maxime du Camp acompanhado de Gustave Flaubert, Louis de Clercq ou Auguste Salsmann, entre tantos outros, ensaiam a eficácia do registo fotográfico, realizando um extenso e rigoroso levantamento — as Vistas do Oriente, que posteriormente publicam e comercializam um pouco por toda a Europa.

A mediatização fotográfica do lugar representa, nesse sentido, uma profunda alteração no modo como se promove a sua percepção e conhecimento, a um público frequentemente desinteressado em se relacionar com o discurso e a experiência da diferença, mas simultaneamente curioso pelo distante, o estranho e o exótico.

Francis Frith, «The Great Pyramid and the Sphinx», Gizé, Egipto, 1858.

Francis Frith, «The Great Pyramid and the Sphinx», Gizé, Egipto, 1858.||«(Travel is) the very best thing that a young man of means and leisure can do, if he has not yet found a better destiny.»|Francis Frith||© Victoria and Albert Museum

Num período em que as dinâmicas de circulação entre Ocidente e Oriente se agilizam, o interesse por estas imagens fotográficas começa por servir pretextos comerciais de incentivo à viagem — num apelo a uma experiência imediata do lugar —, que contribuem para um alargamento e dinamização do fenómeno do turismo.

Por outro lado, as Vistas do Oriente representavam para os espectadores mais sedentários a declaração de uma monumentalidade distante e uma aculturação de lugares de eleição, imposta pela rigidez do enquadramento fotográfico. Uma espécie de turismo mediado — interpretação visual do contexto social, político e religioso — e uma miniaturização geográfica e temporal, que substitui a experiência da viagem e do lugar pela imagem da sua definição histórica. Como refere Douglas Nickel, na extensa análise que faz sobre Francis Frith,

«o conhecimento ocidental é usado para desnaturar as fronteiras nacionais e identidades culturais do Médio Oriente Moderno e para fazer reivindicações ao património trans-histórico. Uma das razões para analisar a cruzada fotográfica de Frith é para observar o modo como o poder sócio-religioso é construído como conhecimento. Não podemos deixar de notar que a mesma estrutura epistemológica continua a operar hoje, informando a política internacional e a cobertura mediática desta perenemente contestada parte do mundo.»7

 

A fotografia realizada em Lisboa por Francis Frith «View of Lisbon»8, ou mais provavelmente pela sua empresa Frith Co., por volta de 1860, já depois das três expedições que o inglês realizou entre 1856 e 1860 ao Médio Oriente, revela esse sentido da viagem como alargamento e reconhecimento fotográfico do território.

Num período marcado pelo desenvolvimento de uma economia da imagem fundada no princípio de mobilidade e na crescente legitimação visual da monumentalidade do lugar, as vistas sobre a cidade de Lisboa arquivam a sua geografia, planificam a sua arquitectura e descrevem o seu espaço urbano, mas fazem-no sem a purificação atmosférica com que se pode iluminar a cidade.

 

Segunda Viagem

Auguste Léon, Gizé, Egipto, 6 de Janeiro de 1914.

Auguste Léon, Gizé, Egipto, 6 de Janeiro de 1914.| Provavelmente o primeiro autochrome das Pirâmides de Gizé e da Esfinge.||«Les jeunes gens devront voyager isolément ou deux à deux, sans mission officielle, employer se contenter de renseignements tout faits... La vie, il faut aller saisir la vie là où elle est, à l’étranger, dans la rue, partout.»|Albert Khan sobre «Les Bourses autour du Monde», 1898.||© Museu Albert Khan

Ao longo do século XX, a ideia de portabilidade e condensação temporal do lugar é reforçada pela circulação da imagem fotográfica em álbuns, monografias e indistintos guias de viagem, que procuram responder a uma vontade enciclopédica — colectiva e individual, de compilar imagens do mundo.

Assiste-se por isso a uma crescente proliferação de arquivos do planeta, públicos e privados, que privilegiam o formato do livro para entrecruzar uma cultura de mobilidade e a sua representação fotográfica, oscilando entre a constituição da identidade do lugar e a singularidade dos que nele habitam.

No final da década de 1950, esta tendência desenvolve-se de forma significativa com abordagens que exploram o photobook para reflectir a experiência itinerante individual. A publicação de American Photographs (1938) de Walker Evans ou Les Américains (1958) de Robert Frank, entre tantos outros, onde a fotografia encontra o seu espaço de exposição primordial, permitem observar a transcrição, como defende Daniéle Meaux em Voyages de Photographes (2009), «da experiência errante e uma tematização da itinerância»9.

No jogo de proximidade e distanciamento que se pratica pelo confronto cultural e a condição de passagem de fotógrafos-viajantes a lugares que lhe são estranhos, desenvolvem-se evocações temporárias de exílio, tal como Edward Said o descreve: «qualquer pessoa impedida de voltar a casa está em exílio».10

Registando a sobreposição e pluralidade de identidades, que o carácter ocasional e provisório do deslocamento implica, trata-se — pelas escolhas de observação e registo adoptadas — de dar visibilidade a uma condição que é, como escreve Peter Osborne, mais «existencial do que óptica»11.

Luigi Ghirri, «Amsterdam», 1980.

Luigi Ghirri, «Amsterdam», 1980.||«And look at “Amsterdam”. Just about everything is interesting about this work (…) the strange plant (I guess it’s a plant) juxtaposed with the Sphinx and the pyramid and more clouds. I’ve always liked the idea of collage.|William Eggleston, It’s Beautiful Here, isn’t it, 2008||© Luigi Ghirri

Robert Frank sublima essa condição na viagem fotográfica que realiza pela América do pós-guerra, fazendo coincidir as vivências desarticuladas dos que nela habitam com o seu próprio distanciamento voluntário. Frank define uma geografia privada a partir do lugar que se caracteriza por acomodar formas de deslocamento e que, em certo sentido, se assume como uma república de exílios.

Ao registar a indeterminação de nómadas e sedentários, passa a expor a singularidade e individualidade da sociedade americana sem se preocupar com a sua unidade e, de certo modo, afirmando o seu exacto oposto, que essa unidade — ao contrário do que Edward Steichen defende na exposição The Family of Man (1955) —, não existe.

O retrato que elaborou da América e a cumplicidade com Walker Evans e outros fotógrafos do departamento fotográfico da Farm Security Administration marca posteriormente a obra de Stephen Shore (American Surfaces, 1972; Uncommon Places, 1981) ou William Eggleston (William Eggleston’s Guide, 1974) que prosseguem o registo fotográfico sobre a desertificação original da paisagem americana e a sobreposição das suas vivências momentâneas.

A geração que se interessou por inscrever fotograficamente a cor no olhar fotográfico sobre a América e que Kevin Moore examina em Starburst: Color Photography in America 1970–1980 (2010), explora temporalidades distintas na sua relação com a paisagem, ensaiando uma espécie de alheamento fotográfico que privilegia a banalização dos detalhes e recusa a procura de monumentalidade. Como sintetiza Danièle Meaux, «alguns que não saíem do seu país ou região optam por se colocar em “estado de viagem”, e observam as realidades banais com o olhar do viajante»12.

Richard Misrach, Série «White Man Contemplating Pyramids», 1989.

Richard Misrach, Série «White Man Contemplating Pyramids», 1989.||«Since 1968 I have had five Volkswagen campers which I’ve used to travel the West for 2 to 3 weeks at a time. I throw in my camera, food, film and some coolers with film holders, and head off without any destination in mind. If it’s hot, I stay north, cold, I head to southern deserts.»|Richard Misrach,
American Suburb X, 2009.||© Richard Misrach

Para estes fotógrafos a viagem nada tem de cronológico ou linear. Os lugares de culto para os quais a fotografia foi inicialmente convocada são substituídos por evocações do espaço doméstico e privado. Interpretadas pela crítica da época como snapshots artísticas, nas suas séries fotográficas a escala altera-se para uma dimensão humana, de proximidade com os objectos, que parece sacralizar apenas o quotidiano, sem glamour.

Assimilando a técnica à paisagem e explorando o registo do vazio urbano — do terrain vague —, este modo de errar e fotografar a paisagem encena a instabilidade e a incapacidade de fixação, propondo-a como reflexão.

Indecidível e inclassificável, como caracteriza Madan Sarup em Home and Identity (1993), «um estranho é alguém que está fisicamente perto, enquanto culturalmente distante, suspenso num espaço vazio entre a tradição de que já se afastou e um modo de vida novo, que teimosamente lhe nega entrada»13.

O estado de viagem em que estes fotógrafos se colocam é, nesse sentido, uma forma de auto-retrato e o seu modo de incluir e domesticar o estranho.

 

Terceira Viagem

Martin Parr, «The Pyramids», Gizé, Egipto, 1992.

Martin Parr, «The Pyramids», Gizé, Egipto, 1992.||Série Small World: A Global Photographic Project 1987-1994.||© Martin Parr

Salientando a representação fotográfica da viagem como protagonista do acelerado processo de mediatização que marca a modernidade, Peter Osborne afirma que «da mesma forma que as sociedades contemporâneas seriam inimagináveis sem a fotografia, seriam igualmente irreconhecíveis sem o turismo»14.

Martin Parr, «The Sphinx», Gizé, Egipto, 1992.

Martin Parr, «The Sphinx», Gizé, Egipto, 1992.||Série Small World: A Global Photographic Project 1987-1994.||© Martin Parr

Tornando-se parcialmente responsável pela reformulação das definições de portabilidade e propriedade do lugar, a imagem fotográfica sistematiza e magnifica a sua contemplação e torna-o apropriável, dentro ou fora do contexto cultural que o envolve. A mediatização e a respectiva construção cultural dos destinos da viagem acentuam uma efectiva tendência para a sua tipificação, ou como critica Guy Debord, para a sua espectacularização.

A série Small World: A Global Photographic Project 1987-199415, de Martin Parr, onde a fotografia souvenir é convertida em sátira do arquiturismo16, é um ensaio explícito sobre o cruzamento entre a imagem fotográfica e o turismo de massas, onde o aparelho fotográfico se torna o instrumento simbólico na experiência de apropriação do lugar.

Centrada no conhecimento do lugar pela imagem desse lugar, a série Small World representa o ciclo vicioso que se cria na dependência com a imagem técnica e no papel mediador que esta assume. A leitura que Peter Osborne faz da série de Parr explicita esse círculo aludindo inevitavelmente à noção de simulacro proposta por Jean Baudrillard:

«as atracções turísticas existem para ser fotografadas; efectivamente são fotografadas por forma a sustentar a sua existência. (…) Os turistas procuram autenticidade, um objecto, uma verdade que de alguma forma preceda todas as representações. A modulação entre a esperança de um encontro com o autêntico e a efectiva imersão na pluralidade de representações é uma constante no turismo.»17

Para o consumidor comum, espectador por natureza, esta apropriação sistemática do lugar — para uso próprio e afirmação colectiva — é um modo de concretizar desejos e de corresponder a uma produção aliciante de souvenirs. A importância da salvaguarda do património é suprimida pela necessidade em registar uma memória individual e a itinerância errática é substituída pelo comprovativo técnico de presença no lugar.

Como indica Barry Curtis, para o consumidor comum, «o turismo não é uma falsa consciência, é uma interface negociável, a garantia de uma certa superficialidade em relação aos países e culturas visitadas», em que «a distância necessária é preservada pela manutenção de uma relação visual primária com a realidade»18.

As imagens fotográficas privadas de viajantes e turistas, paradoxalmente opostas às de Martin Parr, são orientadas pela vontade inconsciente de um momento original e guiadas pela repetição compulsiva em conformidade com o propósito de uma economia do desejo, onde efectivamente assenta o longo e próspero desenvolvimento da indústria fotográfica.

A pertinência política dessas imagens é exemplarmente manifestada por Jean-Luc Godard numa entrevista a Jean-Pierre Gorin, em 1972: «Se um trabalhador compra uma pequena câmara de filmar ou uma pequena máquina fotográfica e filma as suas férias, faz um filme político — é o que chamo um filme político. Ele não pode fazer outro filme. Tem o direito de filmar as suas férias, mas não tem o direito de filmar o seu trabalho.»19

Hossam El-Hamalawy, «Graffiti on One of the Buildings in Tahrir Square», 2011.

Hossam El-Hamalawy, «Graffiti on One of the Buildings in Tahrir Square: Twitter, Al-Jazeera, Facebook...», Cairo, Egipto
3 de Fevereiro de 2011.||© Hossam El-Hamalawy

As fotografias de Martin Parr não são, nesse sentido, imagens políticas, mas fazem uma oportuna análise desse triângulo operativo onde a imagem fotográfica se encaixa, com tanta veemência, desde a sua invenção, e que Jonathan Crary sintetiza em Techniques of the Observer (1990): «a fotografia e o dinheiro tornaram-se, no século XIX, formas homólogas de poder social. São sistemas totalizadores equivalentes, de ligação e unificação de todos os objectos, dentro de uma mesma rede global de avaliação e desejo.»20

 

A mudança de paradigma que se opera a partir da reprodutibilidade fotográfica do lugar evolui para uma ampliação dialéctica da imagem, como escreve Walter Benjamin, numa total habituação pela apropriação do conhecimento imagético do mundo e dos que nele habitam, da portabilidade da guerra e da precariedade, mas especialmente da sua circulação e exposição pública.

Se situarmos a representação fotográfica da viagem na alternância de suportes e espaços de circulação a que é posteriormente sujeita, percebemos que a fotografia foi lentamente perdendo o seu papel protagonista nesse processo e, apesar de continuar a ser garante de presença e possibilidade de denúncia, a sua circulação partilha as consequências desse protagonismo.

A 3 de Fevereio de 2011, o jornalista egípcio Hossam El-Hamalawy fotografa uma agência de viagens, de portas fechadas, na praça Tahrir, no Cairo, e divulga-a no Flickr, com a seguinte legenda: «Graffiti on one of the buildings in Tahrir Square: Twitter, Al-Jazeera, Facebook…»

Nesta e noutras imagens fotográficas dos recentes acontecimentos no Egipto ou na Tunísia, surgem frequentes referências a essa consciência da circulação em si, pela utilização política dos meios de comunicação de massas, que se tornam o tema central da própria imagem fotográfica.

Depois de uma vasta operação de apropriação e manipulação fotográfica do lugar, que disfarça e reduz o próprio acto de apropriação, é com ironia e admiração que reconhecemos a importância dessa inteligente disposição em gerir o anonimato no acesso aos instrumentos de mediatização e circulação e em implicar o interminável arquivo de imagens de uma operatividade de mudança política.

 

Susana Lourenço Marques, Março de 2011

 

Notas

1 Borges, Jorge Luís, O Aleph (1949). Lisboa: Editorial Estampa, 1988, p. 174-175.

2 Benjamin, Walter, «Über einige Motive bei Baudelaire» (1939), in Illuminations. Nova Iorque: Schocken Books, 1969, p. 175.

3 Walter Benjamin considerava Eugène Atget um «virtuoso precursor», que passou despercebido ao seu próprio tempo, caracterizando-o como um fotógrafo que «procurava o desaparecido e o escondido», e caracteriza as suas fotografias como modelos de libertação da aura dos objectos e implicitamente o meio fotográfico do peso da representação fiel da realidade. Walter Benjamin, «Pequena História da Fotografia» (1931), in A Modernidade. Lisboa: Assírio & Alvim, 2006 (trad. de João Barrento), p. 254.

4 Didi-Huberman, Georges, Devant le temps, Histoire de l’art et anachronisme des images. Paris: Les Éditions Minuit, 2000, p. 10.

5 Metz, Christian, «Photography and Fetish», October, Vol. 34 (Outono de 1985). Wells, Liz, The Photography Reader. Londres: Routledge, 2003, p. 140.

6 Arago, François, «Compte Rendu des Séances de l’Académie des Sciences» (1839), in Eder, Josef Maria, History of Photography. Nova Iorque: Dover Publications Inc., 1978, p. 234.

7 Nickel, Douglas R., Francis Frith in Egypt and Palestine, A Victorian Photographer Abroad. Princeton e Oxford: Princeton University Press, 2003, p. 19.

8 A fotografia «View of Lisbon», de Francis Frith, aparece no catálogo Um ano depois/ One year later 1989-1990, como pertencente à Colecção Nacional de Fotografia, aquando da primeira aquisição em 1989-1990 realizada por Jorge Calado. Tal como confirma Douglas Nickel, «Frith contratou operadores para viajar por Inglaterra e pela Europa à procura de vistas, e organizou uma rede de distribuição internacional para mercantilizar os seus produtos, vendendo esse trabalho a turistas e outros através de casas comerciais de fotografia.» (Idem, p. 30).

9 Meaux, Danièle, Voyages de photographes. Saint-Étienne: Publications de l’Université de Saint-Étienne, 2009. p. 11.

10 Said, Edward W., Reflections on Exile (1984), p. 143.
Disponível em http://www.dartmouth.edu/~germ43/pdfs/said_reflections.pdf.

11 Osborne, Peter, Travelling Light, Photography, Travel and Visual Culture. Manchester: Manchester University Press, 2000, p. 126.

12 Meaux, Op. Cit., p. 11.

13 Sarup, Madan, «Home and Identity», in George Robertson, Melinda Mash Lisa Tickner, John Bird, Barry Curtis e Tim Putman (orgs.), Travellers Tales: Narratives of Home and Displacement. Londres: Routledge, 1994. p. 102.

14. Osborne, Op. Cit., p. 72.

15 Parr, Martin, Small World, A Global Photographic Project 1987-1994. Amesterdão: Dewi Lewis Publishing, 1995.

16 O termo arquiturismo é retirado do estudo sobre a arquitectura como prática de mobilização turística editado por Joan Ockman e Salomon Frausto: Architourism (Prestel, 2005).

17 Osborne, Op. Cit., p. 72.

18 Curtis, Barry e Pajaczkowska, Claire, «Getting There: Travel, Time and Narrative», in Robertson et al., op. cit., p. 209.

19 Entrevista de Jean-Luc Godard a Jean-Pierre Gorin, realizada em 1972. Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=dRIxYdq_CAk&playnext=1&list=PL5650B2ED5E4644A0.

20 Crary, Jonathan, Techniques of the Observer: On Vision and Modernity in the Nineteenth Century. Cambridge (Massachusetts) e Londres: The MIT Press, 1990, p. 13.