A Emoção é um Músculo Atrofiado

«Clement of Alexandria says in the Paedagogus (III, I): “Therefore, as it seems, it is the greatest of all disciplines to know oneself; for when a man knows himself, he knows God.”»1

Este aspecto de confronto entre uma totalidade e as partes que a constituem é um exercício sobre o qual desde sempre a humanidade e o homem em privado se bateram. A noção de vir de um ponto qualquer no espaço que se fragmenta e se confunde na inversa proporção das tentativas de o captar e compreender são a grande aventura. Perceber o amor, o ódio, a emoção e o pensar, o sopro e a palavra são aventuras que nos atiram para dentro e para fora de nós. Por um lado procura-se perceber as arquitecturas que nos sustentam interiormente e em simultâneo regressamos ao exterior para partilhar, relacionar e devolver ao mundo o que trouxemos do fundo do mar em que existimos. Essa aventura tem por isso dois movimentos que se conjugam e se confrontam. Um ir e um vir. Um viver e um falar de. Um pensar e um sentir. Uma luz e a sua sombra inevitável. Sem se dividir a totalidade e a separar em dois e em múltiplos não somos. Não existimos fora dessa totalidade e dessa fragmentação. Desse modo é possível intuir que a mente é um músculo. Que os músculos pensam. Que a emoção também deverá estar na carne, no músculo, no osso.

«Monoimos, in his letter to Theophrastus, writes: “Seek him from out thyself, and learn who it is that take the possession of everything in thee, saying: my god, my spirit, my understanding, my soul, my body; and learn whence is sorrow and joy, and love and hate, and waking though one would not, and sleeping though one would not, and getting angry though one would not, and falling in love though one would not. And if thou should closely investigate these things, thou wilt find Him in thyself, the One and the Many, like to that little point [keraian] for in thyself thou wilt find the starting-point of thy transition and of thy deliverance.”»2

Partindo do título da peça The Mind is a Muscle (1966) de Yvonne Rainer em Nova Iorque e da sua declaração de princípios onde revela o seu mal-estar em relação a uma sociedade que é cada vez mais «do espectáculo» e dos media, proponho seguir o seu raciocínio e proposta de pensar na «mente», ou no espírito, enquanto «músculo atrofiado» que pode ser estimulado. Sendo o meu campo de investigação o corpo e o inconsciente, utilizo o mesmo tipo de relação indeterminada de Yvonne Rainer entre o que se diz e aquilo que se entrevê para elaborar um conjunto de linhas e experiências que desenvolvam o conceito de que também a emoção é um músculo. Estas relações de indeterminação entre a emoção e o músculo, ou entre a mente e o músculo, só são possíveis quando o observador e o observado confluem num mesmo objecto perturbando-se. E é disso mesmo que se trata. Da dificuldade de separar duas coisas que são necessariamente juntas. Refiro-me ao corpo e à emoção, à mente e ao músculo, à consciência e ao inconsciente. O caminho de ir e vir entre estes dois lados da mesma coisa levou a que aquilo que funciona como uma coisa só se fosse fragmentando em múltiplos e numa dualidade a cada movimento mais definida. Utilizo neste artigo experimental para o Laboratório da Interact um conjunto de autores que me são caros. Muitos destes textos são apropriações e digestões sucessivas das suas propostas, que por sua vez já sofreram inúmeras apropriações anteriores. Assim, e para evitar inúmeras notas de rodapé e citações, e porque é um trabalho de cariz artístico este que aqui apresento, farei a devida citação no final do exposto. Deixo no entanto as citações referenciadas nos casos em que sejam transcrições literais.

A disputa entre a unidade e o múltiplo é reveladora também da incerteza e ou indeterminação que levanta o corpo e a sua constituição. Exercitar a mente através da prática performativa artística ou, no caso que proponho, exercitar e compreender os mecanismos da emoção é modificar o valor dos objectos de arte. Afirmo e pergunto: se temos o músculo da mente atrofiado, como parece propor Yvonne Rainer, tal deve-se a que razões? Será importante contrariar esse atrofio? Ou ele faz parte de um processo mais vasto e amplo do desenvolvimento da humanidade enquanto tal? Qual é o papel das artes e dos artistas neste exercício contra o atrofio muscular da mente e das emoções? Estas questões remetem para o conhecer-nos a nós próprios que mencionava a citação inicial. Também na Índia e nos seus textos antigos o conhecimento do mundo interior — ou daquilo que o fazia mover — era interrogado e definido como uma qualidade.

In the Indian idea of the Self as Brahman and Atman, we can read for instance in Kena Upanishad:
1. By whom willed and directed does the mind fly forth? By whom commanded does the first breath move? Who sends forth the speech we utter here? What god is it that stirs the eye and ear?
2. The hearing of the ear, the thinking of the mind, the speaking of the speech…
3. That which speech cannot express, by which speech is expressed…
4. Which the mind cannot think, by which the mind thinks.
Know that as Brahman.3

Pensar performativamente está conectado com a produção de emoções e a investigação do sentir e mapear do corpo. Produzir pensamento ligado às práticas performativas tem a sua raiz no corpo e é através da abertura da expressão e da posterior análise que se estabelecem relações entre quem faz e quem vê fazer, mecanismo exaltado pelo performer: ele faz e dá-se a ver fazendo. No caminho que cruza o inconsciente e o corpo, encontro fontes de desenvolvimento do pensamento nas obras que realizo. O que proponho para este artigo é uma colecção de experiências performativas para vir a fazer. Cada experiência proposta é um mapa do inconsciente e do corpo. Dessa forma proponho coligir um conjunto de «experiências mapa». É um projecto acerca da intuição e da sua coerência interior. Através de vários suportes e discursos cruzados dou aqui início a uma viagem sobre relações entre coisas. Entre palavras e emoção, corpo e respiração, imagens e sons. É uma primeira abordagem que carece de ser continuada e ampliada. Agora proponho um guião para a construção de um laboratório de experiências performativas imaginárias. Uma listagem de experiências a realizar que funcionam como uma partitura incidental em busca do desenvolvimento da intuição. Este é um primeiro estágio de trabalho que busca o músculo da flor, ou lugar do pensamento performativo que contém em si um erotismo enquanto abertura ao outro e à aventura do corpo que se entrega.

Yâjnavalkya defines it in indirect form in the Brihadâranyaka-Upanishad:
«He who dwells in all beings, yet is apart from all beings, whom no beings know, whose body is all beings, who controls all beings from within, he is your Self, the inner controller, the immortal. There is no other seer but he, no other hearer but he, no other perceiver but he, no other knower but he. He is your Self, the inner controller, the immortal. All else is of sorrow.»4

Parti dessa intuição de um ponto indeterminado e incerto que se move dentro. Lá bem no fundo. Tão distante que o dentro perde o sentido e acaba por ser uma saída para fora. Procurei afastar-me e perceber. A emoção e essa relação antinómica entre a consciência e o inconsciente. A observação do inconsciente, se for de algum modo possível, só o é através de processos da consciência, que é em si uma tentação de construir uma totalidade sempre frustrada e indeterminada também em si. Tenho procurado em objectos, nos corpos dos outros, nas relações das palavras e dos sons essa unidade que é uma sintonia. No sentido em que arrebata como uma nota musical. Ou um conjunto de notas, melhor dizendo. A percepção de alguma coisa nunca vem sem lastro, sem mais outras coisas coladas. Agarradas de forma a confundir e a esclarecer. Assim este laboratório é um projecto artístico de análise intuitiva das emoções e de como as fabricar, de como fortalecer o atrofio do sentir em que o corpo se enreda sempre que tenta perceber de fora do sentir. Por isso é um projecto sem fim nem começo. As propostas aqui listadas e construídas são um começo de algo que já teve inicio indeterminado. Necessitam de contínua e permanente actualização. Alteração e contradição de forma a poderem sobreviver. O segredo das coisas protege-se a si mesmo e apenas encontra revelação na prática e espírito do fazer acontecer as obras. A emoção em si tem de ser experimentada e exercitada em permanência. Continuadamente. Para não desparecer atrofiada. Como um músculo. E não depende a emoção em exclusivo das obras e formas artísticas, mas do impacto da vida e das suas coisas sobre a vida.

 

Listagem de experiências laboratoriais performativas

EXPERIÊNCIA 1

Acção | RESPIRAÇÃO À CÃO Pensar testemunhal | RELEMBRAR
Deitado no chão respirar como um cão durante o tempo que for possível. Lançar o ar pelo nariz com força para fora. Deixar o corpo fazer o resto. Fazer esta respiração durante o tempo que seja possível. Intercalar com respiração profunda durante uns minutos. Voltar à respiração à cão. Repetir o processo durante cerca de quarenta minutos. Ocupados com o alimento, embriagados com a vida dentro do tempo, esquecemo-nos de fazer viver a parte de nós que observa. Insistir na testemunha do que somos.

 

EXPERIÊNCIA 2

Acção | COMIDA DE PEIXE Pensar testemunhal | COMER É SER COMIDO
Inventar memórias esquecidas. Reinventar memórias a partir de acontecimentos impossíveis. Alterar as memórias do passado de forma a modificar o próprio passado e as imagens herdadas. Engendrar histórias acerca de acontecimentos que forjem personagens e situações. Viver vidas estrangeiras e estranhas. Misturar animais e vegetais com restos de lugares que façam parte do interior da humanidade. […] há o perigo de existir apenas dentro do tempo. Dar especial atenção aos períodos que antecedem o adormecer e o acordar. Forçar o pensamento a divagar nesses períodos. Aprender uma qualidade de guardar fantasias e imagens produzidas nesses instantes que duram apenas escassos segundos.

 

EXPERIÊNCIA 3

Acção | RESPIRAÇÃO DO OLHAR IMÓVEL Pensar testemunhal | SOMBRA
Sentir-se observado por esta outra parte de si próprio (a parte que está como que fora do tempo) dá-nos outra dimensão. Há uma forma angélica, um fantasma, uma visão que se levanta de um qualquer lugar. Essa iluminação é segundo Eu é quase uma imagem de um corpo virtual; não é um — em si — olhar dos outros, nem qualquer julgamento; é como um olhar imóvel: uma presença silenciosa, como o sol que ilumina as coisas — e é apenas isto. Morri como matéria inerte e fiz-me musgo primeiro e depois planta. Como planta morri e depois de ser comido fiz-me animal. Morri também como animal e fiz-me homem. Assim sendo se aprendi a nascer e a morrer, porque tenho medo? Porque terei medo de perder a qualidade de ser humano? Posso morrer como homem e erguer-me de novo como outra coisa, visão, eletricidade, anjo…

 

EXPERIÊNCIA 4

Acção | SENTIR CRIAR ESPAÇO Pensar testemunhal | DOIS UM
— sentir criar espaço onde caiba vazio
— sentir criar espaço onde caiba mente
— sentir criar músculo
— sentir criar um buraco
— sentir criar emoção
— sentir criar um fio
— sentir criar o lugar
— sentir criar um fio no buraco
— sentir criar um fio no músculo
O processo é emoção que se agarra ao músculo. O processo é recusa da emoção do músculo. O processo é vaivém. O processo apenas pode ser conseguido somente no contexto da presença constante. UM DOIS na experiência, DOIS UM o duplo não aparece separado, UM UM mas como uma unidade, única.

 

EXPERIÊNCIA 5

Acção | DOIS PÁSSAROS Pensar testemunhal | UM MORRERÁ, UM VIVERÁ
Nós somos dois pássaros feitos de MUITOS olhos. Olhos nas mãos, olhos nos pés, olhos nas asas. Somos feitos do resto de um tecido de olho de pássaro que se espalha na pele e que nos cobre o corpo. Somos feitos de outro olho de pássaro que se situa fora do corpo, que sobrevoa e vê de longe tudo o que fazemos. A mão é cúmplice do olho. Somos dois cúmplices um do outro. Um é o pássaro que debica comida no chão e o outro o pássaro que observa de longe. Ter sempre em conta que o olhar é uma forma de matar e de morrer.

 

EXPERIÊNCIA 6

Acção | FAZER MAPAS E CRIAR ESPAÇO DEBAIXO Pensar testemunhal | DESENHAR O MERGULHO
Fazer um mapa com o corpo de encontro ao chão. Desenhar com o corpo um mapa na terra. Explorar o corpo de encontro a árvores. Pedras. Arbustos. Esfregar e distorcer o corpo dando-lhe mordidas. Fazer mapas é criar espaço dentro da pele, por cima da pele, por debaixo da pele.
Criar raízes no corpo é abrir buracos por debaixo do mapa e fazer crescer novas áreas geográficas. Criar raízes com o corpo é lançar os olhos para cima de uma árvore e ver o passado misturado com o futuro.
Manter desperto o corpo durante a curva descendente. Manter o olhar aberto durante o gesto.

 

EXPERIÊNCIA 7

Acção | PELE E ÁGUA, SENTIMENTO ÁGUA Pensar testemunhal | VISÕES CEGAS
Atirar-se para dentro de água como se nunca tivesse visto ou sentido o que é água. Vendar os olhos e atirar-se para dentro de uma piscina. Sentir a água de encontro ao corpo, de encontro à pele. Retirar a venda e guardar a imagem do sentir a água contra o corpo. Sentir a água em cima da pele e o seu peso contra o corpo. Sentir como o corpo se modifica pelo efeito de ter água em cima, a toda a volta. Ver através da cegueira. Forçar o olhar. Ver-se no escuro.

 

EXPERIÊNCIA 8

Acção | ALMA EMBRIAGADA Pensar testemunhal | DEIXAR CAIR
Sair anonimamente com amigos despido de nomes e planos para noite com garrafas de vinho e outros adereços similares. Beber e falar até cair da voz. Deixar entrar e sair tudo e todos os demónios. Chegar a casa de quatro, entrar naquela sala conhecida como um fruto amadurecido, sozinho. Ficar atento e alheio. Não fazer esforço nenhum. Rastejar. Ficar alheio ao som dos canos, dos vizinhos e dos carros na rua rangendo os dentes e metal. Pôr-se de pé na banheira, bebendo água, fazendo todas as necessidades que surjam. Abandonar, no meio da noite, todo e qualquer fragmento de esperança negra de ser repreendido por ser um preguiçoso. Dispersar os sentidos e a vontade. Resistir à gravidade e às forças que impelem ao fechar, à queda, ao olhar para o lado. Procurar o centro e a margem. Tomar consciência dos músculos que resistem à dureza do chão. Deixar cair. Abrir a consciência à indeterminação. Fazer um duplo movimento entre o estar e o sair. Resistir ao ficar de pé. Deixar-se cair. Deixar cair o copo. Escutar o choque do corpo contra a parede. Contra o chão. Escutar o riso e alimentar o músculo como o peixe que vive dentro da gruta.

 

EXPERIÊNCIA 9

Acção | LÁBIOS SILENCIOSOS Pensar testemunhal | SOPRAR
Usar o nosso corpo como uma tela através da qual passa a vontade e o abandono da vontade. Começar e suspender o gesto. Interromper e parar a vontade até chegar à fonte. Perceber o ponto de partida. O local do jorro. O importante é tomar consciência da localização do pensamento emotivo. Um meio de reconhecimento possível é flectir o olhar para dentro e localizar o esforço. Descer pela tensão até ao ponto onde se apoia o impulso. O buraco no músculo de onde se levanta a força. É no esforço físico — no seu duplo enquanto imagem — que se pode perceber a emoção. A emoção é física. É através do reconhecimento do esforço ou da tensão que ele provoca. Os mesmos pontos que alavancam o esforço físico são também os lugares de onde se levantam os sopros do pensamento emotivo. O esforço e o sopro. Desses pontos emana a força e desse indeterminado lugar se levanta igualmente a emoção. Silenciar as palavras, pressionando os lábios num sopro ou assobio permite perceber a força e a emoção. A fisicalidade que as irmana. Esses pontos servem como um trampolim para a emanação da emoção. Na emoção se levanta o animal e o músculo.

EXPERIÊNCIA 10

Acção | CENAS INTERROMPIDAS Pensar testemunhal | EXPERIÊNCIAS INDETERMINADAS
Não começar. Começar e parar. Duvidar. Existir. Fazer de novo um movimento. Começar uma palavra. Outra palavra. Outra ainda. Falar palavras sem que entre elas existam nexos prévios. Soltar as amarras internas da coerência consciente e deixar subir a consciência intuitiva. Funcionar por ritmos. Equilíbrios de cores. Numeração. Construir nexos a partir de séries de rimas. Deixar de fazer funcionar parte do cérebro e dos seus filtros de estabilização do corpo. Caminhar em linhas oblíquas. Linhas curvas. Fazer crescer partes animais e vegetais no corpo. Na cabeça nasce um cão. Nas pernas nascem heras e folhas de videira. Abrir e fechar a boca como se fosse um peixe a respirar. Mudar o lugar da emoção. Sentir no pescoço o que se sente no fundo das costas. Transferir emoções femininas para expressões masculinas.

 

Bibliografia

Cusack, Carole, «An Enlightened Life in Text and Image: G. I. Gurdjieff‟s Meetings With Remarkable Men (1963) and Peter Brook‟s Meetings With Remarkable Men (1979)», Literature & Aesthetics 21 (1), 2011, p. 72.

Greenberg, Chetan, «Gurdjieff Movements: The Radiance of Presence» (entrevista a Amiyo Devienne), Gurdjieff Movements, s.d.

Grotowski, Jerzy, The Grotowski Sourcebook, coord. Richard Schechner e Lisa Wolford. Londres e Nova Iorque: Routledge, 1997.

Jung, Carl G., Aion: Researches into the Phenomenology of the Self. Nova Iorque: Pantheon Books, 1959, trad. bras Aion: Estudo sobre o Simbolismo do Si-Mesmo. Petrópolis: Vozes, 2017.

Lambert-Beatty, Carrie, Being Watched: Yvonne Rainer and the 1960s. Cambridge (MA): The MIT Press/An October Book, 2008.

McGee, Chris, «Criminal Dance: The Early Films of Butoh Master Tatsumi Hijikata», MIdnight Eye, Setembro de 2010.

Polzer, Elena, «Hijikata Tatsumi’s From Being Jealous of a Dog’s Vein», tese de mestrado em Fach Japanologie, Humboldt-Universität zu Berlin, Philosophische Fakultät, Institut für Japanologie.

Shah, Idries, Os Sufis. São Paulo: Cultrix, s.d.

Fotografias de João Garcia Miguel [2012 | 2018]

 

Notas

1 Hipólito, Elenchos, V, 7-8 (p. 80) apud Jung, C. G., 2017, p. 264.

2 Idem, ibidem.

3 Idem, p. 265.

4 Idem, p. 265.