No livro-sátira de Voltaire publicado em 1759, Cândido, no final de muitas peripécias numa viagem à volta do mundo e em resposta ao seu tutor, Pangloss, que persistia na ideia de que vivemos no melhor dos mundos, disse-lhe que sim, talvez ele tivesse razão, mas devemos cultivar o nosso jardim, a nossa horta. Nessa viagem passaram por Lisboa e no exato momento em que Pangloss insistia, mais uma vez, no seu optimismo, a terra tremeu, sem que isso fizesse vacilar as convicções do personagem. Seguiram-se as subidas das águas e as destruições pelo fogo que, sabemos nós da História, submergiram toda a cidade de Lisboa e a costa sudoeste e sul de Portugal, arrastando com elas parte dos alicerces de toda uma estrutura económica que se queria global desde pelo menos o início da chamada época das grandes navegações. Esta estrutura económica tinha como um dos centros a cidade de Lisboa — a par de outras, como a cidade de Lagos, primeiro epicentro daquele que foi, durante séculos, um contínuo terramoto físico e metafísico: o mercado esclavagista global. As certezas de um mundo e de um sistema de mercado construído com as riquezas materiais trazidas pelos processos de colonização e de ocupação nos vários territórios africanos, asiáticos e americanos, antes disso habitados por outras comunidades com configurações culturais, éticas e modos de relação com a Terra distintas, começaram a esboroar-se neste pequeno território geográfico. No entanto, o tipo de economia baseado em práticas de extração — da terra, de pessoas dos seus lugares e dos seus afetos e de modos de configurar mundos — para o qual contribuíamos perpetuou-se, reconfigurando-se e desenvolvendo-se noutras geografias, com outras tecnologias, outros impulsionadores. Cultivar travestiu-se assim — e de forma acelerada no passado recente e no presente — em desenvolvimento sem cuidado, predador, numa relação limitada da qual se extraem produtos. Como se não houvesse mais nada que a relação com este sistema vivo ao qual chamamos Terra nos pudesse trazer.
Aquelas foram águas que chegaram sem anúncio, resultado da respiração agitada da Terra e do movimento das suas placas tectónicas. As águas que agora ameaçam a nossa estrutura social são há muito anunciadas e são também o produto do tipo de relação que temos estabelecido com a Terra. É nela e com ela que vivemos, tecendo relações de reciprocidade das quais não nos demos conta vezes demais. Conhecendo isto, e aceitando a premissa de que essa relação se exprime nos comportamentos concretos de cada um de nós, será ainda válida a prescrição de Cândido, de que devemos é cuidar do nosso jardim, esperando ainda travar esta nova subida das águas em nome da nossa própria sobrevivência? Conseguiremos resgatar da memória, ou inventar, os gestos de cuidado que nos permitirão fazê-lo?
A nossa horta é agora do tamanho da Terra, nave espacial, na expressão de engenheiro de Buckminster Fuller (1968), dentro da qual, melhor ou pior, temos todos de viver ou, na pior das hipóteses, sobreviver. O que nos cabe é só uma parcela que nos é concedida, mesmo quando dela achamos deter direitos de propriedade. É a partir dessa posição que podemos tomar consciência do modo como as nossas ações influenciam a forma que vai tomando a nossa vida em comum, uns com os outros, e com o nicho ecológico — a casa-Terra — que habitamos. É a partir daí que esse hiperobjeto1 a que chamamos alterações climáticas, o qual, mesmo se nos atravessa, por vezes nos parece tão longe da realidade, se aproxima, revelando as relações que existem entre as nossas acções e comportamentos e a nossa cultura (ou seja, a forma como nos organizamos socialmente, a percepção que temos do ambiente e o seu estado).
Hortas em Relação
Foi a inter-relação entre ações privadas, organização social e ambiente que pautou a conceção de um ciclo temático para o qual contribuí, realizado no Teatro Maria Matos em 2016, desenvolvendo uma proposta da coreógrafa Vera Mantero, que nos trouxe um texto do pensador e psiquiatra francês Félix Guattari, intitulado «As 3 Ecologias», publicado em 1989, ao qual o ciclo foi buscar o título. Reunindo artistas que pensam estas questões no seu trabalho — the vacum cleaner, Vera Mantero e Sarah Vanhee –, com pessoas que pensam a relação entre as práticas artísticas e todo o ecossistema social, económico e ambiental — Sacha Kagan, David Abram –, outras que desenvolvem saberes muito práticos relativos a um comportamento ecológico consciente, que passa tanto pela alimentação, pela mobilidade urbana, pela origem da energia que utilizamos nas nossas casas, e vão até à economia e ao repensar do fazer político.
Subjacente a esta partilha de práticas no ciclo As 3 Ecologias estava a perspetiva de que é possível, como se escreveu na altura na brochura de textos que acompanhava o ciclo, «olhar para práticas e valores que apontem caminhos que vão para além de uma situação na qual cada um de nós se limita a ser consumidor dos recursos existentes, sejam eles sociais ou naturais. Numa natureza onde descobrimos a fonte de todas as possibilidades de uma relação mais justa e criativa com os outros e com o ambiente do qual fazemos parte, cuidar de nós, do outro e do mundo, são gestos recíprocos.» O cuidado da horta tem lugar nesta dinâmica de reciprocidades.
A inter-relação entre estes três estratos da experiência, a forma como quebra as dicotomias entre espaços públicos e acções privadas, afetos e gestos individuais e os seus efeitos numa existência comum, leva-nos a refletir sobre esta questão na sua dimensão sistémica, ou seja, no modo como ela está implicada em toda a extensão da nossa ação em sociedade, da forma como se vai configurando a cultura na qual vivemos. O termo «ecologia política» exprime estas inter-relações, ou, como refere Catherine Larrère:
«A ecologia política não existe como um corpo de doutrina constituído […]. Falar de ecologia politica equivale a falar de uma cultura emergente, que se forma a partir de questões concretas, movimentos sociais, e diversas correntes de reflexão. Todos são movidos por um projeto comum: recompor ao mesmo tempo as relações sociais e a relação dos homens com a natureza.»2
Uma outra definição dada por T. J. Demos volta a sublinhar este caráter relacional e sistémico da ecologia política:
«O termo “ecologia política” […] reconhece aproximações ao ambiente que, mesmo se potencialmente divergentes, insistem no entanto em questões de material ambiental como sendo inextricáveis de forças sociais, políticas e económicas […] a ecologia política reconhece que os modos de olhar a natureza carregam implicações profundas, e, muitas vezes, ramificações não reconhecidas sobre a forma como organizamos a sociedade, atribuímos responsabilidade pela mudança ambiental e avaliamos o impacto social.»3
Olharmos — cada um de nós — para a terra e vermos que ela é limitada, que os seus recursos se esgotam, olhar sob o ponto de vista da escassez, é estarmos a ver mais os nossos comportamentos em relação a ela do que o seu potencial de relação. Que comportamentos? Extrativismo, exploração, o entendimento de que somos possuidores da terra e que essa posse, em vez de ser para cuidar, é para explorar, extrair para fazer o que achamos que podemos fazer com ela, segundo valores que criámos na sua ausência. Este sistema espelha-se num tipo de economia baseada na prática da exploração e é por isso que, perante o conceito forjado para exprimir a intervenção do humano nas esferas geológicas, autores como Françoise Vergés ou Nicholas Mirzoeff4 referem a não universalidade da responsabilidade de todos os povos no que diz respeito aos efeitos nefastos a que faz referência o termo antropoceno (termo que se refere à época na qual a ação do homem é capaz de transformar o sistema geológico). Considerando aqui que a política se relaciona com o viver em comum, revelam também um mundo que foi construído a par com uma cultura colonial que instituiu comportamentos, hierarquias de expressão e de conhecimentos que acabaram com mundos para fazer emergir um mundo. Muitos desses mundos e suas comunidades, algumas sobreviventes ainda, conservam os gestos e os saberes do cuidado da terra e da reciprocidade entre todos os viventes que poderão fazê-los parte de uma narrativa menos destruidora da ação dos seres humanos no sistema geológico.
Hortas Económicas e Políticas
Perceber a natureza (e coloco em itálico este termo pela consciência de que, se considerarmos a forma como o construímos no passado como distinta da cultura, é usado como uma convenção da linguagem) como fonte de todas as possibilidades, pode conduzir-nos a considerá-la sob um ângulo diferente daquele que nos levaria a considerá-la sob o do esgotamento de recursos. A percepção de escassez que existe em relação ao que a Terra nos pode prover (raras vezes nos temos perguntado acerca do que podemos dar-lhe a ela), é também a expressão do tipo de economia — palavra que etimologicamente nos aponta para a de gestão da casa comum — que temos posto em prática, tanto no mundo ocidental como, por expansão e apropriação, globalmente. Esta cultura, olhando para a que se formou com as primeiras viagens globais, o iluminismo — no seio do qual escreveu Voltaire –, a modernidade, construiu uma série de valores e de instrumentos epistemológicos, mas deu-nos também séculos de exploração do ecossistema, de pessoas, da terra que vê as suas fontes transformadas em meros recursos sem restituição que, na prática, vão até contra os próprios valores e direitos que erigiu.
Como já nos referimos com Catherine Larrère, é possível recompor – o equilíbrio da relação, e é também a esse processo que T. J. Demos se refere quando escreve que,
«Concordo com o leque de ativistas ambientais e políticos que defendem que a ameaça das mudanças climáticas é a melhor motivação para uma “Grande Transição”, a qual vai requerer uma mudança sistémica na reorganização da vida social, política e económica, de forma a conduzir-nos a uma maior harmonia com o mundo à nossa volta, incluindo com as suas formas humanas e não humanas. Por outras palavras, nós não podemos lidar com a justiça climática de forma adequada sem também abordarmos a corrupção da prática da democracia pelo lobbying coorporativo, ou o subfinanciamento e falhanço dos sistemas de transportes públicos, ou as violações dos direitos indígenas pelo extrativismo ambiental, ou a violência policial e a militarização das fronteiras. De uma forma ou de outra, estas são áreas que se encontram relacionadas enquanto linhas interconetadas da ecologia política.»5
Estar à altura de lidar com as alterações climáticas exigirá então uma reformulação dos modos como temos funcionado em democracia, da forma como encaramos e acolhemos os processos migratórios, as culturas e modos de sociabilização diferentes dos que foram impostos pelas culturas coloniais que marcam a nossa vivência atual nos lugares aparentemente mais insuspeitos. Vejamos a forma como Demos, ao referir a necessidade de se distinguir uma economia verde, do «verde» na economia, aponta para a relação que existe entre economia e prática colonial:
«Ora, quando os agentes do “capitalismo verde” […] compram zonas da floresta húmida na Amazónia brasileira para plantar monoculturas de eucalipto (desertos verdes que não contêm vida) para a produção de combustíveis biológicos, que forçam a saída de comunidades indígenas e quilombolas (antigos escravos afrobrasileiros) das suas terras anteriormente biodiversas, tratadas de forma nativa. O que são casos como estes senão formas de colonialismo corporativo contemporâneo?»6
Haverá, portanto, uma ligação entre a plantação de eucaliptos e uma continuação do colonialismo, uma continuação inusitada, uma analogia comportamental profunda que afeta não só as terras da «Amazónia brasileira» mas também os nossos terrenos vizinhos. Uma perspetiva ecológica que inclua as atividades e comportamentos dos seres humanos e que procure, como refere Larrère, recompor ao mesmo tempo as relações sociais e a relação dos homens com a natureza leva-nos para um terreno complexo (mas não forçosamente complicado) no qual se está a operar uma mudança de sistema cultural em sentido lato. Nesta viragem são questionadas formas do fazer social, em particular aquelas que pressupõem a legitimidade do domínio que alguns seres vivos estabelecem em relação aos outros, com todos os debates que vão emergindo acerca de questões indígenas e de processos de descolonização de comportamentos e de estruturas de compreensão, de questionamento de dicotomias (de género, de separação natureza-cultura, entre outros) e economias (a predominância de certas formas do capitalismo ou da «feitiçaria» do capitalismo em si), entre outras. Para conservar e recuperar uma relação rica, não destruidora (a não ser na medida em que a destruição, a morte e o fim fazem também parte das dinâmicas da vida), é então preciso interrogar a utilidade prática e moral de todo um sistema sob o qual nos últimos séculos construímos as nossas estruturas de saber e de comportamento e que tem dominado também a nossa imaginação.
Então, neste momento, cultivar o nosso próprio jardim, horta, floresta, implica também cuidar de uma transformação no sistema cultural ao nível global, através do qual se possam resgatar, escutar, vozes e saberes indígenas — saber «gerado dentro da terra que lhe é própria» –, se desmonte as formas que os aprisionaram, repensar formas de considerar a relação de propriedade com o que é de direito comum; economias que reconheçam os vários pilares, as várias dimensões, da sua sustentabilidade — que não só a financeira; imaginar modos de estar com os outros, com o ambiente social, cultural, de escuta e construção criativa, que deixem crescer e emergir também o que temos deixado passar ao lado ou o que ainda não conhecemos.
Bibliografia
Buckminster Fuller. Richard. Operating Manual for Spaceship Earth. Zurique: Lars Müller, 2008.
Demos, T. J. em>Decolonizing Nature: Contemporary Art and Politics of Ecology. Berlim, Stenberg Press, 2017.
Larrère, Catherine. «Príncipios de uma Ecologia Política». In As 3 Ecologias. Lisboa: Teatro Maria Matos, 2016, p. 7.
Morton, Timothy. «Art in the Age of Asymmetry: Hegel, Objects, Aesthetics». Evental Aesthetics, 1(1), 2012, pp. 121-142.
Morton, Timothy. Hyperobjects: Philosophy and Ecology after the End of the World. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2013.
Mirzoeff, Nicholas. «Não é o Antropoceno, é a Cena da Supremacia Branca ou a Linha Divisória Geológica da Cor». In Buala, 2017, trad. Rita Natálio (orig. «It’s Not The Anthropocene, It’s The White Supremacy Scene; or, The Geological Color Line». In After Extinction, Minnesota: University of Minnesota Press, 1996.
Pignarre, Philippe e Isabelle Stengers. Capitalist Sorcery: Breaking the Spell. Nova Iorque: Palgrave Macmillan, 2011, trad. Goffrey Andrew.
Viveiros de Castro, Eduardo, «Os Involuntários da Pátria». In Arquipélago Verde. Lisboa: Teatro Maria Matos, 2016, pp. 31-38 (disponível em )
Voltaire. Cândido ou o Optimismo. Guimarães: Guimarães Editores, 2009.
Notas
1 Timothy Morton, no livro Hyperobjects: Philosophy and Ecology after the End of the World (University of Minnesota Press, 2013), define as alterações climáticas como um hiperobjecto, não um elemento localizado facilmente no espaço ou no tempo mas composto de relações, interações, ativo em níveis de existência que ultrapassam a perceção humana e por isso por vezes difícil de perceber mas que também nos permeia. Cf. também http://eventalaesthetics.net/aesthetics-after-hegel-vol-1-no-1-2012/timothy-morton-art-in-the-age-of-asymmetry/.
2 Catherine Larrère, «Princípios de uma Ecologia Política», p. 7, publicado no caderno de textos que acompanhou as actividades do ciclo As 3 Ecologias, que decorreu em 2016 no Teatro Maria Matos, disponível em http://www.teatromariamatos.pt/explorar/as-3-ecologias/.
3 «The term “political ecology” […] acknowledges approaches to the environment that, although potentially divergent, nevertheless insist on environmental matters of concern as inextricable from social, political and economical forces […] political ecology recognizes that the ways we regard nature carry deep implications and often unacknowledged ramifications for how we organize society, assign responsibility for environmental change, and assess social impact.» (T. J. Demos, «Introduction», in, Decolonizing Nature: Contemporary Art and Politics of Ecology, Berlim, Stenberg Press, 2017, pp. 7-8.)
4 «It’s Not The Anthropocene, It’s The White Supremacy Scene; or, The Geological Color Line» (in After Extinction, University of Minnesota Press, 1996), traduzido para português por Rita Natálio, no contexto da Oficina de Imaginação Política, 32ª Bienal de Artes de São Paulo, e publicado no portal Buala.
5 «I agree with a range of environmental and political activists who contend that the threat of climate change is the best motivation for a “Great Transition,” which will require a systemic shift in reorganizing social, political, and economic life, in order to bring us into greater harmony with the word around us, including its human and nonhuman life-forms. In other words, we cannot address climate justice adequately without also targeting the corruption of democratic practice by corporate lobbying, or the underfunding and failure of public transportation systems, or Indigenous rights violations by industrial extractivism, or police violence and the militarization of borders. For these areas all link up in one way or another as interconnected strands of political ecology.» (T. J. Demos, «Introduction», in, Decolonizing Nature: Contemporary Art and Politics of Ecology, Berlim, Stenberg Press, 2017, p. 12.)
6 «Or when agents of “green capitalism” […] buy tracts of rainforest in the Brazilian Amazon in order to plant eucalipt monocultures (green deserts that contain no life) for biofuel that forces indigenous and Quilombola (Afro-Brazilian former slave) communities from their once-biodiverse, natively managed land. What are these cases if not contemporary corporate colonialism?» (T. J. Demos, «Introduction», in, Decolonizing Nature: Contemporary Art and Politics of Ecology, Berlim, Stenberg Press, 2017, p. 17.)