O Regresso do Religioso e a Questão Política

«Qu’importe ce que peut être la réalité placée hors de moi si elle ne m’a pas aidé à vivre, à sentir que je suis ce que je suis.»

Charles Baudelaire

«Fraternité: Hommage à Claude Prolemée

«Je suis homme: ma durée est courte et la nuit immense. Mais je regarde vers le haut: les étoiles écrivent. Sans comprendre je saisis: je suis aussi écriture et
en ce moment même quelqu’un m’épelle.»

Octavio Paz

«Não há terra de promissão fora do corpo ou da palavra.»

Eugénio de Andrade

 

Eclipse do sagrado (Greish), ruptura instauradora (Certeau)? A expressão «regresso do religioso» não designa mais do que uma nebulosa espessa, de contornos vagos, como as fórmulas encantatórias. Rénan, no seu L’Avenir de la Science, de 1848, falava já de «regresso do religioso». Ora, falar de «regresso» é evocar um processo em que algo, um epifenómeno, desapareceu e de novo reaparece. Como quem diz: o horizonte da nossa sociedade era «habitado» pelo religioso; o religioso ligava tudo, com toda a espécie de mediações: anjos, santos, padres, instituições, hierarquias, cenários litúrgicos, celebrações, tudo isso se eclipsou, desapareceu. Sob que figuras «isso» agora volta? Que conteúdos atribuir a esta prefiguração, que pertinência?

 

1. Diagnósticos, figuras.

Há quem fale do fim da religião, como há quem fale do seu regresso um pouco por toda a parte. Que quer dizer fim? É que o fim do papel social da religião não significa o fim da crença religiosa, omnipresente ainda no nosso horizonte. O que há é crentes que vivem para além da religião ou para além da organização religiosa da cidade. Se a religião deixou de organizar a sociedade, subsiste ainda uma religiosidade latente, um sagrado «selvagem» que se exprime polimorficamente. Deixou-se o grande Templo para se aderir à pequena seita, ao pequeno circulo ou à literatura esotérica sobre o fim da religião.

Enganou-se o positivismo do século XIX, enganou-se, entre nós, Afonso Costa, enganaram-se quantos faziam da religião uma ideia curta. Como se o religioso não fosse uma dimensão fundamental da experiência humana e não apenas um estádio (a ultrapassar) da história do desenvolvimento humano, ou um epifenómeno das sociedades de abundância, contra a evidência que em vários países do terceiro mundo a religião é a principal frente de resistência e de combate pela libertação do homem. A ideia de uma civilização ateia é insólita (Octavio Paz). Hoje, só uma certa Direita cristã, que Harold Bloom identifica com a «American Religion», pretende reivindicar-se da sua fé para legitimar a pena de morte, a condenação penal de quem pratica o aborto, a abolição das políticas sociais. De forma geral, as religiões reconhecem que os campos da ética e a da política são autónomos. Conhecem-se as precauções tidas na elaboração da Declaração em prol de uma ética mundial. Hans Küng expôs as questões hermenêuticas e metodológicas que encontrou para redigir este projecto subscrito por numerosos e destacados representantes religiosos. Começando pela definição negativa: esta Declaração não devia ser uma duplicação da Declaração dos Direitos do Homem, nem uma declaração politica, nem uma prédica casuística, nem um tratado filosófico; devia antes, fundada religiosamente, discutir os valores vinculantes, as atitudes internas fundamentais, devendo ser apta para o consenso, sendo autocrítica e tendo em conta o sentido da realidade(1).

Há vários diagnósticos acerca do «regresso do religioso» em que o «sagrado» se afirma como uma dimensão humana fundamental, irredutível à ética, ao político ou mesmo à estética. Se há falência do sagrado, essa falência é a do sagrado instituído que se pulverizou, que se secularizou. Quem se apropria hoje do corpo outrora intangível que era a Escritura para, a partir dela, produzir fragmentos de cultura, de certo modo parodísticos, aberrantes. O Grande Código é manipulado pela publicidade, pela literatura, pelo cinema, como se de um acreditável disponível se tratasse, de uma iconicidade sujeita à pilhagem e a todas as distorções. Não há secularização no sentido objectivo sem secularização no sentido subjectivo. Perdeu-se não apenas o sentido do sagrado, mas também o próprio sentido da religião. Regresso do recalcado? Tratar-se-á de uma vaga de fundo («la mer toujours recommencée», Valery) que ciclicamente faz dobra sobre si mesma? Será a modernidade o filho (pródigo) que se afastou da casa paterna para se autonomizar? Marcel Gauchet, ao detectar no fenómeno cristão uma afinidade oculta com o mais moderno do moderno, prefere dizer que o Ocidente ganhou em todos os espíritos. Reunir num mesmo prato o «regresso do Islão», a «Religião Americana», o ocultismo, a vaga da astrologia ou da reincarnação parece tudo amalgamar, não permitindo o concluir de um regresso da religião. Sinais contrários indiciam o esfarelamento da principal religião secular, o comunismo escatológico. Não se trata de uma recristianização para lá da secularização dos modernos(2).

 

2. A questão do sentido.

A questão do sentido deixou de pertencer a uma formação social determinada, obrigando a situação de vazio em que vivemos a partilhar as vozes na parte que a cada um cabe de se pronunciar sobre essa questão. Löwith mostra como o síndroma do declínio, de que testemunha toda a literatura que vem de Hegel e Nietzsche e se perpetua no projecto heideggeriano da desconstrução, vai direito ao fascismo que aproveitou sempre a degradação do statu quo para recuperar as nostalgias que trabalhassem em proveito das forças crescentes da própria dissolução(3). O poder corrosivo do «niilismo integral» abriu as portas à hemorragia de sentido de que se alimenta ainda hoje aquilo a que desajeitadamente se chama o pós-modernismo e que constitui o caldo da nossa cultura polilógica. Nesta partilha de vozes o Cristianismo ocupa um sítio ilocutório importante, não fosse ele a «religião da saída da religião» (M. Gauchet). Porque o cristianismo é, paradoxalmente, a religião da «desmundanização» do mundo e da sua inculturação. Gerou um mundo que pode viver sem ele, permanecendo todavia em convivência com ele, aculturando-se, quer dizer, abraçando e transformando a cultura em que se implanta. Não sem precauções: a cultura ocidental afecta a maior parte da humanidade, mas exclui-a da sua terra prometida. Vende a toda a gente uma televisão para que possam ver o paraíso e depois proíbe-os de entrar nele (T. Radcliffe). É da relação interlocutiva que procede a palavra, e só quando os interlocutores forem capazes desta relação é que mutuamente se compreendem, apesar da disparidade inicial dos códigos. Se não há essa prática interdiscursiva, pode concluir-se que não há encontro. O que explica quer a inovação semântica quer os conflitos.

 

3. Público/privado.

«A César o que é de César, a Deus o que a Deus pertence» (Mc, 12: 17). Ao político, o espaço público; ao religioso, a esfera privada: esta distinção pacificou, na Europa pelo menos, relações outrora conflituais. «A Igreja livre num estado livre» (Montalembert). Esta fórmula, no contexto oitocentista, caiu mal aos ouvidos da Igreja Católica Romana. Não se entendia ainda que a síntese do político e do religioso era uma síntese perigosa. Não se entendia que a religião pode transformar-se na legitimação sagrada da desordem estabelecida, ou como escreve Bento Domingues: «a tentação da ordem perfeita a promover e a defender por mandato divino só pode ter por resultado a intolerância e o fanatismo, perversões da religião»(4). Estamos diante de uma evidência: a soberania do Estado, não a partir do papado, mas a partir da comunidade dos Estados. O princípio da separação da Igreja e do Estado é um princípio constitucional que deve formalmente ser mantido. Que na prática o respeito pelas tradições cristãs, a complementaridade das formas de solidariedade social venham a indicar uma relação menos distante daquela que o princípio (da laicidade) enuncia, também daí não virá mal algum ao mundo. Não deve, de resto, esta distinção ser posta em questão? Reaproximadas pela sua crise comum, na era das crenças relativizadas e privatizadas, mas também da irrupção de outras tradições, não deveriam a religião e a politica redefinir as suas relações? Rousseau falava de «religião civil» no seu Contrato Social. Há um sagrado que não é religioso e um religioso que não é sagrado. Na sua definição funcional, o sagrado é aquilo que legitima o sacrifício ou aquilo que proíbe o sacrilégio (Poulat). Há uma expressão de uma doutrina geralmente atribuída aos jesuítas, obediência de cadáver, que tem origem na exegese canónica sobre o voto (votum) e que define o amor político como sacrifício da vontade própria (voluntas propria mactatur): qualquer que seja a sua marca, a posição militante é daí que procede. Ora, há sacrifícios (destes) fora das Igrejas. O político pede sacrifícios, o militar e a escola também, e não consta que o façam em nome duma Igreja. Por outro lado, de sacrilégios está o mundo cheio (vejam-se os cartazes publicitários). Não toques nas minhas crenças (das bandeiras aos mortos ou aos clubes). Ninguém faz apelo ao sacrifício sem fazer vibrar uma corda do sagrado. Não há dúvida de que o recuo do sagrado deixa inteira a questão que renasce sempre: uma sociedade deve
produzir ou reproduzir elementos que sustentem a unidade do social? Como sublinha Guy Coq, «se a sociedade não sabe dizer, já não sabe comunicar e fazer amar aquilo que a mantém viva, regressam então as substituições inumanas de um laço social desfeito»(5). O vazio do sagrado corre o risco de deixar proliferar sacralidades bárbaras de substituição. O Exército não sobrevive sem sacralização. A República também só sobrevive sendo ao mesmo tempo laica e mística. A questão que regressa sempre e que Régis Débray formula com nitidez é esta: como incorporar espiritual na Cidade terrestre, continuando a lutar contra a confusão do espiritual e do temporal? Como lutar contra o jugo clerical sem o recurso a uma religião cívica?(6). Parece haver um cristianismo para a laicidade, sem qualquer regresso, qualquer restauração da Cristandade. Não há é solução de continuidade entre o sagrado social e o Evangelho. A secularização do social só é salutar para o crente, cristão ou outro, se ele colocar a lucidez da sua fé ao serviço de uma atenção crítica que recuse o regresso do religioso em política e se for capaz de denunciar os riscos de uma aliança entre a teologia e a política. É natural que se justifique o apelo à religião quando a hybris política parece ter invadido tudo, na medida em que a religião é evocada como abrigo contra essa desmesura. Os Estados teocráticos puros (teocracia tem aqui uma acepção metapolítica), como o são hoje o Irão e a Arábia Saudita, que proíbem o culto de qualquer fé que não seja a religião estatal, são intolerantes, porque se autoconsideram divinos e universais. O Ocidente e a Índia gozam de uma secularidade que nada deve à Tora judaica, à doutrina católica ou à shari’a muçulmana. Afinal, a teocracia não fez menos vítimas do que os totalitarismos iluminados.

A ideia do supra-ético, da economia do dom, permite passar a fronteira comum à moral e à religião. Mas não saímos ainda da «poética do religioso». A atestação (interior) e o testemunho (exterior) exigem-se mutuamente, como o ritmo da sístole e da diástole num coração que bate. A diversidade emergente do espiritual não é domesticável por nenhuma analítica. O regresso do religioso pode aparecer como uma fórmula em forma de slogan, como pode aparecer como uma nebulosa, dificilmente discretizável, de figuras inumeráveis. Talvez não seja de retorno que se trata, mas tão somente de reempregos, refigurações do religioso tal como a modernidade o deixou: desfigurado, em pedaços. Há, evidentemente a emergência de novos grupos, não apenas as seitas, os adeptos do budismo, do hinduísmo, do zen, do yoga, da teosofia ou da astrologia, mas também os grupos de oração, os grupos neocatecumenais, os carismáticos, como há no interior das grandes igrejas distintas sensibilidades relativamente à questão política. Há uma presença mediática do religioso como não havia há uns anos atrás. Há livrarias com escaparates inteiramente reservados à «religião» e ao «esoterismo». Estes factos não eliminam algumas questões inquietantes: trata-se de uma verdadeira renovação religiosa ou tudo isso não passa da banalização da religião transformada em produto psicológico e cultural? Trata-se de uma emergência no próprio seio da modernidade? Trata se de uma reactivação da escatologia e da apocalíptica cristãs nas mãos de pagãos e fundamentalistas?
Trata-se de uma reacção emotiva, imóvel, ao naufrágio ideológico e ético do
pós-modernismo? E se este movimento centrípeto fosse apenas um sintoma mais do
auge do individualismo, da privatização da religião? Só nas seitas autoritárias
reina o antigo dualismo e o absolutismo dos valores, a distinção abrupta entre
Bem e Mal. Não exsudam alguns destes grupos um conservadorismo virulento,
devastador? «Regressão irracional»? Crítica da realidade presente, reexame da
modernidade? Fracasso das sociedades secularizadas? O primado da experiência que
marca estes grupos não é a destruição do dogma e da própria ética? Que esconde a
movência «místico-esotérica»?

 

4. Confrontos úteis.

A discussão moderna em torno do religioso reveste-se ainda das cores do
paradigma platónico que coloca o mundo cavernoso, obscurantista da doxa, num
lado, e o mundo solar, iluminista, das coisas reais e da epistêmê, noutro lado.
Se não parece que se possa discutir o futuro da sociedade sem nos interrogarmos
sobre a sua dimensão religiosa, em especial sobre o futuro das Igrejas, para lá
das etiquetas epistemológicas, também não é óbvio que a crise fundamentalista em
que vivemos se reduza a ser a emergência da crise do religioso. Trate-se de
ciência ou trate-se de política, desde Maquiavel e Galileu, o espírito da
modernidade definiu-se e impôs-se contra o espírito de religião. O Syllabus
dá-nos o mapa desse dissenso. O carácter militante do racionalismo anticlerical,
através de um fenómeno de mimetismo clássico em política, modelou-se a partir do
seu adversário, tendendo a produzir uma religião da razão. A Igreja perdeu, mas
continua. O espírito moderno triunfou, mas sem ter conseguido eliminar os restos
que resistem sempre a qualquer empresa de totalização. Há uma questão que se tem
de pôr: que deve a modernidade ao cristianismo? Que resta desse combate
antiquíssimo? A tradição. O que tipificou a modernidade foi o movimento de saída
da organização religiosa do mundo, deixando aberta a questão religiosa. O que
agora se desliga é esse elo desde muito feito entre o céu e a terra, o visível e
o invisível. O que advém dessa ruptura é a constituição prática de uma ordem da
autonomia humana. Pode dizer-se que tanto o projecto das Luzes como o projecto
da teologia continuam inacabados porque ambos se encontram sob a suspeita de ter
contribuído para a emergência de uma situação crítica, devendo por isso ser
confrontados para poderem ser continuados. Autonomia não quer dizer sociedade na
posse dos fins e do sentido último do mundo, mas sociedade articulada em torno
da própria deliberação. O que está em jogo é o conflito entre a recusa ou a
aceitação da deliberação colectiva e a sua abertura. As tentativas de uma
«teologia política», de «teologia da libertação» e de «teologia da vida pública»
vão no sentido de desenvolver o potencial critico da religião no campo da
própria teologia(7). A critica moderna da religião presta-se à suspeita de ter
escondido e de ter impedido a verdadeira realização da condição humana. A Aufklärung mutila-se se ignorar os desafios lançados pelas tradições religiosas
da humanidade.

A crítica da idade religiosa passa hoje pela percepção weberiana da modernidade,
desencantada que é, excluída toda a forma de figurativo e de imaginário. Após o
encantamento religioso, tornar-se-ia o mundo totalmente desprovido de encanto? A
ideia de um mundo completamente «desencantado», abandonado ao acaso ou às leis
do mercado, repugna ao «elementar cristão», seja o do chamado cristianismo
primitivo, seja o do cristianismo institucionalizado, convertido com Teodósio em
religião do Estado e religião obrigatória para os habitantes do Império. O que
obriga a rever o dispositivo enunciativo/pragmático do paradigma que pretendeu
ocupar o lugar antes detido por uma visão teológica do mundo.

A crítica da modernidade das Luzes (da ciência) provém não apenas dos cultores
das velhas humanidades ou da Naturphilosophie mas também do interior do
paradigma científico, quando o culto da ciência se transformara em cientismo.
Antes da crítica contracultural da ciência contemporânea (Th. Roszak, R. D.
Laing, I. Ilich), já Goethe, juntamente com William Blake, aparece como a figura
mais notável nesta crítica: «Se me tirais as metáforas, que me fica?». Emil du
Bois-Reymond é o autor do primeiro discurso crítico do conhecimento cientifico,
conhecido como o discurso do Ignorabimus, dentro da própria ciência. A primeira
limitação do conhecimento científico vem-lhe do seu esquema atomista, mecanista.
A segunda limitação ressalta de que a consciência não pode ser explicada a
partir de considerações materiais. Outros argumentos se acrescentaram depois à
critica da ciência como tecnociência ou como ideologia. Essa autocrítica ainda
não terminou. O século XVIII é, de facto, a época do triunfo da racionalidade
científica aliada à ideia de progresso, enquanto o século XIX constitui a idade
da ciência institucionalizada. A imagem da ciência do século XVIII tende a
identificar a cientificidade com a racionalidade, situação que só é alterada
quando se substituiu o seu enquadramento epistemológico e justificacionista por
uma perspectiva retórica e descritivista (T. S. Kuhn). A critica agnóstica de du
Bois-Reymond acerca dos limites gnoseológicos da ciência era herdeira da crítica
agnóstica de Hume ao empirismo racionalista, que com a sua defesa da «crença»
abriu o caminho às primeiras correntes do irracionalismo filosófico alemão que
dão a primazia à antiga «crença religiosa» em detrimento de qualquer outro tipo
de conhecimento. É sintomático que na mesma altura em que se vive um dos
momentos mais eufóricos da ciência moderna (a época de Einstein) uma parte da
filosofia entende que se entrou na fase da crítica do conhecimento científico. A
crise das ciências europeias, de Edmund Husserl, dava o tom a essa crítica que
outros antes, Martin Heidegger e Karl Jaspers, tinham começado.

A estrutura da ciência varria do seu adro as superstições antigas, os dogmas
morais e religiosos, as crenças tradicionais, criando um pensamento crítico e
sistemático, uma emancipação da mente, um método lógico para julgar na base de
dados de observação fiáveis. Com o regresso dos «novos dionisíacos» (Gerald Holton),
também a religião regressa.

 

5. Que religião?

Precisamos de tipificar o tipo de religião que ora regressa. O que é afinal a
religião? A «soma do acreditável – disponível»? À univocidade do conceito de
religião, Pierre Legendre substituiu uma trilogia de noções, segundo a doutrina das
«Três Portas». Eis então:

Primeira Porta: o primado da ritualidade e das traduções emblemáticas da
referência;

Segunda Porta: a capacidade de fundar um sistema de filiação e de assumir as
suas práticas sociais;

Terceira Porta: a disponibilidade política, no sentido da capacidade de
autentificar práticas sociais(8).

Estas portas são acessos para repensar um velho vocábulo usado, mal-amado, para
ultrapassar o círculo vicioso dos ciclos indefinidos fé/anti-fé, sendo ainda
difíceis os tempos para o fazer. O Ocidente concebe com dificuldade que haja
zonas vagas, objectos vagos que escapem à sua vontade gestionária de tudo nomear
(dominar). Du Bois-Reymond praticou no interior dos bastiões empiristas, que
admitiam apenas um tipo de racionalidade, um discurso arriscado: Ignorabimus. Há
uma disponibilidade política na religião a que nenhuma formação política é
alheia: os casamentos da democracia cristã ou do fundamentalismo islâmico provam
a eficácia dessa aliança.

Há uma concepção autoritária da religião. Quanto mais o indivíduo se
individualiza, tanto mais se dessacraliza e se emancipa, tornando-se ainda mais
livre. A humanidade, aos olhos da modernidade, foi-se progressivamente
libertando do jugo da dependência até então encarnada pelas religiões.

Pode
interpretar-se o fenómeno cristão como uma estrutura «romana»(9).
A Igreja teria convertido em governo espiritual a expectativa messiânica (o fim
do profetismo, substituído pela adivinhação) e Roma teria transformado a
preocupação com a justiça e a verdade dos Gregos em administração, tecnologia
(banhos, esgotos, urbanismo, máquinas de guerra) e moral (processo que culmina
na ética do estoicismo e o nascimento de uma versão estóica do cristianismo,
oposta à interpretação neoplatónica de Dinis).

O cristianismo romano seria caracterizado, deste ponto de vista, como a
interpretação autoritária do messianismo, num quadro administrativo e jurídico .
Seria pertinente distinguir uma história santa governada pelo topos da
recapitulação (uma ideia com algo de hegeliano) e uma história profana, com os
seus ritmos, as suas durações, as suas aporias.

A Igreja vive dilacerada entre cismas, Renascenças e nascimentos (do
capitalismo), tornando-se por isso tanto fermento de dissidência como de
unidade. Ela separou-se, de facto, do Oriente e da Modernidade. O Syllabus
antimoderno (antiliberal) de Pio IX tem de ser reinterpretado à luz da história
da Europa. Conseguiu a ortodoxia abrigar-se do niilismo? A «crise» de que falam
Husserl, Heidegger e Cassirer é uma crise da razão objectivante. A resolução
dessa «crise» passa, para estes autores, pela renovação da concepção recebida da
racionalidade, pela crítica fundamentalmente negativa do «logocentrismo» ou pela
crítica da cultura que é a filosofia das formas simbólicas. Não será necessário
falar, como Foucault, da multiplicidade das epistemai no interior da razão
humana, em vez de olhar como «irracionais» estruturas de pensamento como a
ciência e a linguagem, a arte, o mito e a religião, que constituem modos
distintos de objectividade?

Não será necessário dizer, como Cassirer, que «destruir os mitos políticos
ultrapassa o único poder da filosofia»?(11). Ao tempo das guerras da religião, a
Europa teve de prescindir da religião para não sucumbir. A reconciliação do
reino de Deus com o ideal humano nem sempre produziu bons resultados. O
Manifesto dos intelectuais, assinado por Harnack e uns outros 92 em 1914, e que
marca a adesão à política belicista do Kaiser Guilherme II, não podia ser mais
desastroso para a teologia liberal. Bem depressa e um pouco por toda a parte se
chegou à conclusão de que se pode viver sem religião, mas não sem ética e que,
por isso, era também necessário separar a ética da religião. Razões de boa
distância, afinal. Nenhuma tradição religiosa pode ser reduzida à sua ética.
Tomás de Aquino reivindica a autonomia da ética deste modo: «não temos
necessidade de Deus como fundamento imediato do nosso comportamento ético. No
coração da moral autónoma trata-se do valor humano de cada um — etsi Deus non
daretur»(12). A separação Igreja/Estado é geralmente reconhecida como salutar e
desejável. Mas não é possível recalcar uma ou outra das diferentes formas
simbólicas, dado o seu sistema orgânico. A espiritualidade da ética dos cristãos
está na vida teologal, celebrada na liturgia, meditada com espírito crítico na
contemplação e praticada no quotidiano. Quer dizer, o ponto de partida da ética,
na perspectiva crítica cristã, não é a «razão moral» universal, mas a fé em
Deus.

 

6. Concluindo.

A razão comunicacional promete a liberdade e a reconciliação: «A perspectiva
utópica de reconciliação e de liberdade está engajada nas condições de uma
socialização comunicacional dos indivíduos, estando já edificada no mecanismo
linguageiro da reprodução da espécie.»(13). Terão caído, a religião e a teologia, na
suspeita de estarem de fora da razão comunicacional, tomando esta o lugar
daquelas? A religião consolava, enquanto «ilusão que cura» (Kristeva,
Drewermann); pode a razão comunicacional, pelo facto da sua força transcendente,
suprir a religião? Pode a teologia deixar de ser um discurso da «solidariedade
de todos os seres “finitos”», como queria Horkheimer? Pode ela evacuar a questão
da teodiceia ou abdicar da responsabilidade em proveito de governos
intramundanos, estáticos ou religiosos?

O «cuidado de si» é talvez a componente maior do individualismo contemporâneo
que marca também o «regresso do religioso». Mas o nosso tempo está cansado do
«cuidado de si». O apogeu do individualismo, rapace, narcisista, não coincide
com a personnalis ultima solitudo de Escoto, bastando-se com uma ética mínima,
definida pela negativa, pouco sensível aos argumentos da solicitação, da prática
interlocutiva, da ordem de justiça. O niilismo é um luxo de ricos (E. Jünger) e
a negatividade absoluta é previsível e já não surpreende ninguém (Adorno). Se há
uma crise do sagrado, não é porque ele tenha desaparecido, mas porque as suas
instituições, os seus rituais, entraram em crise. Neste processo, nem o Estado,
novo gestor do sagrado, está ao abrigo da degenerescência. Os media
apropriaram-se entretanto da gestão deste capital simbólico que caiu à rua e de
que qualquer um, a seu modo, se pode apropriar. O tempo é de vigilância critica,
sem que a proclamação do fim do imaginário (P. Král), ou do fim da História
(Fukuyama) sirvam para unificar um diverso, entenda-se a multiplicidade das
posições do sujeito, as epistemai em que assentam as várias formas simbólicas
que organizam a nossa semiose. Os surrealistas sobrestimaram-se: o imaginário
não transformou o mundo. Desde os finais do século XVII que a ciência parecia
proclamar o fim de todas as religiões históricas. Afinal, a ciência e a técnica
acabaram por segregar maior fatalidade e servidão de que alguma vez a religião
foi capaz. A relação Igreja/política há-de ser tensiva, interlocutiva. Porque,
de facto, o «elementar cristão» ligou sempre, de forma inseparável, tanto a
dimensão mística como a sua dimensão politica. A carta «A Diagoneto», de um
anónimo do século II, é o melhor comentário que se pode fazer sobre o estatuto
paradoxal do cristão que simultaneamente é do mundo e não é do mundo: «Toda a
terra estranha é pátria sua e toda a pátria uma terra estranha… Passam a vida
sobre a terra, mas são cidadãos dos céus…». O cristão deve combinar o espírito
do Evangelho com a sabedoria política, honrando deste modo a verdade que em
ambos se encontra. Edward Schillebeeckx di-lo de um modo inultrapassável: «se os
cristãos não reconhecem a autonomia da razão política, rapidamente se espetam
por um clericalismo autoritário e pedante adentro, mostrando à história quanto
isso foi funesto e o é ainda, tanto para um governo civil eficaz como para a
liberdade da Igreja.»(14). Porque a política não é tudo. A razão de Estado não pode
ser infinitamente mais forte do que a razão prática ou do que os Dez
Mandamentos. A neutralização contemporânea da pragmática cristã do amor
(Poulain) é uma operação perversa. Incumbe à natureza e ao dever da fé cristã,
logo também à Igreja oficial, promover a verdade e a justiça no mundo,
intervindo apenas em situações políticas de urgência. Como fazê-lo? À maneira de
uma potência espiritual, crítica, ética, «uma potência que tem por missão manter
viva no coração do homem a vontade de fazer da sociedade humana uma polis, uma
cidade, um lugar em que para cada um seja bom habitar e viver»(15). Há um dado
insofismável: a humanidade tomou, do século XVII a esta parte, uma viragem
histórica que nada parece inverter. A grande heresia do nosso tempo foi ter
substituído Deus pela História. Na perspectiva de Jan Patocka, a história não é
senão a derrocada da certeza que representa o sentido dado(16). Em O Labirinto da
Solidão e O Arco e a Lira, Octavio Paz dialoga com a sua identidade de mexicano
e a religião: «não sou crente, mas dialogo com essa parte de mim próprio que é
mais do que o homem que eu sou, porque aberta ao infinito»(17). «Alguém nos chama
pelo nome», isso supõe uma estrutura da interlocução, um diálogo connosco mesmos
ou a parte de nós que não se reduz nem à razão, nem à tribo, nem à História, nem
à Ciência, mas que responde ao horizonte da nossa própria expectativa.

 

 

(1) Hans Küng, «Historia, sentido y método de la Declaración en pro de uma
ética mundial», trad. de Agustín Serrano de Haro, in Isegoria, n.° 10, 1994, pp.
22-42.

(2)
«La religion de la sortie de la religion», entrevista com Marcel Gauchet,
Autrement, n.° 75, 1985.

(3)
Karl Löwith, De Hegel à Nietzsche, trad. de Rémi Laureillard, Paris, Gallimard,
1969, 1981.

(4)
Frei Bento Domingues, «Converter a religião», Público, 20 de Setembro de 1994.

(5)
Guy Coq, «Un État laïc sans sacré est-il possible?», Raison Présente, n.° 101,
1992, p. 111.

(6)
Regis Débray, Que vive la République, Paris, Odile Jacob, 1992, p. 120.

(7)
Cfr. D. Tracy, Plurality and Ambiguity: Hermeneutics, Religion, Hope, San
Francisco, 1987.

(8)
Pierre Legendre, «Qu’est-ce donc la religion?», Le débat, n.° 66,
Setembro-Outubro de 1991, p. 40.

(9)
Remi Brague, L’Europe, la voie romaine, Critérion, col. «Idées», 1992.

(10)
Frédéric Nef, «L’Europe est-elle romaine?», Critique, n.° 548-549, p. 80.

(11)
E. Cassirer, Le mythe de l’État, trad. do inglês por B. Vergeley, Paris,
Gallimard, 1993, p. 399.

(12)
Tomás de Aquino, Summa Theologiae, I-II, Q. 107, a. 4.

(13)
Jürgen Habermas, Théorie de l’agir communicationnel, vol. I, Paris, Cerf, 401.

(14)
Edward Schillebeeckx, La politique n’est pas tout, Paris, Cerf, 1991.

(15)
Idem, p. 90.

(16)
Jan Patocka, Essais hérétiques sur la philosophie de l’histoire, Verdier, 1981,
p. 126.

(17)
Octavio Paz, «Quelqu’un m’épelle», entrevista, Autrement, n.° 127, 1992, p. 17.