Da Intratextualidade: Citação e Comentário nas Viagens de Almeida Garrett

«Neste despropositado e inclassificável livro das minhas viagens, não é que se quebre, mas enreda-se o fio das histórias e das observações por tal modo que, bem vejo e sinto, só com muita paciência se pode deslindar e seguir tão
embaraçada meada.»

Almeida Garrett, Viagens…, cap. XXXII

 

«Dans le commentaire, il ne s’agit pas de désigner les signifiés d’un texte, mais de “transformer” un discours.»

Louis Panier

 

1. Introdução.

Quando se olha um texto, não como um sistema autárcico, ensimesmado, mas como um espaço radicalmente heterogéneo e de conflito, é a interacção discursiva que ressalta para primeiro plano. De resto, donde vem ao texto a sua impropriedade senão do facto de que as fronteiras que o (de)limitam são continuamente invadidas por textos estranhos, os quais, apagando esses limites, ao mesmo tempo os conservam no estado de traço?

Não há texto que não seja simultaneamente um contexto. Isto porque todo o texto implica uma diferença que desloca a sua própria identidade. Não há texto em si – um texto é um acontecimento relacional. É esta irredutível relatividade que constitui qualquer texto como intertexto. O tecido em que se entrelaçam os textos não tem começo nem fim, não havendo por isso qualquer originalidade textual – todo o texto pressupõe outros textos. O tecido/tecelagem da intertextualidade mostra que os textos se cruzam, se entrecruzam, num perpétuo movimento de entretecer. Sabendo-o ou não aquele que o lê e/ou escreve.

Falaremos das Viagens de Garrett como um discurso polifónico, nas vozes, mas insistindo fundamentalmente na sua componente didáctica, antes de mais porque nele se traduz, transforma e manipula saber e porque a persuasão nele ocupa uma função dominante. É dentro deste dispositivo que encontramos o fenómeno da citação. O discurso do narrador das Viagens faz apelo a vários enunciados: bíblicos, literários, históricos, fazendo dele um discurso a várias vozes e leituras. Consideraremos o discurso didáctico como constituindo um campo
intertextual – interacções e transformações do já-dito, já-lido, já-escrito,
reescrito algures. Mas o que se diz na Escritura, na história ou na literatura, na própria tradição popular, é um saber comunicado de que é preciso falar – e aí deparamo-nos com o problema do discurso interpretativo, do comentário, portanto. O que é dito na Escritura ou o que diz o povo sob a forma de provérbio, por exemplo, tanto pode confirmar como infirmar o que diz o discurso didáctico a que se faz referência para a encenação do saber e da sua veridicção.

O conjunto de fenómenos da citação e do comentário inscreve-se nas fases da manipulação (persuade-se) e da sanção (interpreta-se) do algoritmo narrativo, organização lógica dos elementos definidos uns em relação aos outros. Não vamos, evidentemente, dar conta da lógica do funcionamento de todos os enunciados narrativos e discursivos reconhecidos neste livro, e deixaremos de lado a análise de duas outras componentes do algoritmo narrativo, como sejam a competência e a performance. Nem todos os casos de citação e de comentário serão
aqui analisados. Alguns apenas servirão para caracterizar as posições teóricas que muito rapidamente iremos expor sobre estes dois casos de intertextualidade.

Deixemos de lado a história da paisagem intertextual, os seus lugares de visita obrigatórios (Bakhtine, Kristeva, Beaugrande e Dressler, Genette, Riffaterre, entre outros) e passemos em revista alguns aspectos teóricos e um quadro – fundamentalmente, um autor da Escola de Paris, Louis Panier, em que nos apoiaremos no estudo que vamos intentar. A opção é sobretudo de ordem metodológica. Mas será útil enunciar, limitando-nos aos fenómenos da citação e do comentário, algumas premissas teóricas que este autor tem vindo a desenvolver1.

 

2. Quadro teórico.

A intertextualidade aparece como uma forma dinâmica da língua: a operação dos textos consistiria antes de mais em reunir num espaço original e segundo um percurso novo o «já-escrito», enunciados que vêm de outros lugares e que carreiam com eles referentes novos, contribuindo para a formação do puzzle denotativo através da introdução de fragmentos conotativos. O trabalho aqui é o da reconstrução das diferentes vozes que são convocadas no interior do texto e que «se falam», se formam e deformam através dele.

A designação de intratextualidade abarca textos que produzem ou reproduzem outros textos no interior deles mesmos de maneira explícita, acompanhados por vezes da encenação da sua enunciação – os casos da citação e do comentário.

 

2.1. A citação.

Citar é convocar, no discurso, um texto outro. A heterogeneidade do discurso é o fenómeno de base mais típico para descrever a citação. A referência à língua como código de interpretação é sempre mediatizada por uma referência a discursos, a textos. O estudo da citação leva a considerar que qualquer texto manifesta concretizações de vozes que lhe asseguram a sua própria legibilidade.

A definição da citação no quadro da teoria literária é muito geral e vaga.
Empréstimo textual, a citação consistiria em «citar» palavras, frases, parágrafos, extraídos de um outro corpus, evidenciados pelas aspas, o uso de verbos declarativos, etc. Pela nossa parte, consideraremos a citação, na sua heterogeneidade, como uma condição de estruturação da significação: a citação nega a diferença mantendo-a. O seu funcionamento é o do elo entre duas zonas: a da identidade e a da diferença interactuantes, donde resulta o efeito de sentido.

A introdução de uma citação produz transformações interpretativas – implícitas ou explícitas. O texto (citante) pode comportar-se como um comentário da citação e manifestar as operações de modificação e de selecção que efectua sobre TI (texto citado) para o integrar na sua rede, mas TII pode igualmente ocultar essas operações. A interpretação aparecerá, em qualquer caso, como uma expansão possível.

TI pode integrar-se a três níveis de estruturação em TII:

  • Nível narrativo: a citação recobre um fragmento do esquema narrativo que, por sua vez, se pode integrar num esquema mais vasto;
  • Nível figurativo: a citação representa um percurso que pode inserir-se numa rede figurativa, quer prolongando o percurso de TI no TII, quer articulando-o com outros percursos contrários ou homólogos;
  • Nível lógico-semântico: os papéis temáticos e os valores sémicos que veiculam estes percursos figurativos formam um sistema com outros valores na base dum código ou dum modelo.

Há, pois, várias expansões possíveis para um dado enunciado que se pode instalar em contextos muito diversos. Por outro lado, a expansão é correlativa da selecção, quer dizer, a citação é contextualizada em função dum papel, duma isotopia, dum valor sémico. Pode dizer-se que a citação só fornece ao discurso uma das suas virtualidades de sentido. O elemento pertencente ao TII poderá pertencer a um dos três níveis citados. A citação poderá ser:

  • Um percurso figurativo;
  • Uma operação narrativa;
  • Um papel temático.

Por aqui se vê que integração da citação num discurso não é somente um fenómeno lexical da superfície do texto, mas um fenómeno mais profundo. A citação é introduzida em nome dum elemento seleccionado pelo código específico de TII. A integração da citação nas redes do TI e a selecção dum elemento pertinente «dentro» e «através» dessa integração seriam, portanto, os dois eixos do fenómeno interpretativo2.

Uma última anotação: na citação, o texto é citado e mantido em frente do TII (ex.: o uso das aspas), que pode designá-lo (relação de metalinguagem) e que pode introduzi-lo como uma dada função (relação enunciação-enunciado). TII denomina o que é definido pela citação – esta é a «denominação» escolhida. Nesta perspectiva, o texto fonte da citação funciona como uma reserva de significantes, motivos figurativos onde TII vai seleccionar o papel temático.

Considerando que a citação se situa ao mesmo nível que o TII, frente a frente, ela funciona como uma veridicção ou verificação no discurso. O que é dito é verificável pelo valor elocutório da citação. Donde o carácter por vezes redundante dos TII que dão a impressão de que a citação se encontra descodificada antes mesmo de ter sido citada. Há de facto continuidade de sinónimos que não têm, no entanto, a mesma função3.

 

2.2. O comentário.

O comentário não é a tradução, mais ou menos fiel, dos conteúdos do sentido dos textos comentados. Essa é a hipótese do comentário-espelho reduzida ao inventário dos processos de paráfrase e de denominação do sentido do texto comentado e à avaliação da adequação de tais paráfrases e denominações4 – hipótese a que não aderimos. O comentário vive entre a clausura e a transgressão, o uso e o sistema, o discurso e a língua. Há comentário porque há clausura do texto. Quando em semiótica se analisa um comentário, é importante ver como é delimitado o texto-primeiro, que tipo de unidades são consideradas: um acto de enunciação, um relato, um acontecimento, uma personagem… Se, portanto, o comentário realiza uma clausura do texto-primeiro (ou de alguns dos seus elementos) é para, a seguir, transgredir esta clausura. Por exemplo, quando o comentário delimita no texto primeiro uma sequência narrativa é para integrar esta sequência dentro de um relato mais vasto, englobante; quando delimita uma palavra ou um percurso figurativo, é para o integrar dentro de uma
configuração discursiva que o engloba. Podemos chamar expansão à integração de elementos em conjuntos mais vastos. Observa-se, então, que esta expansão fornece um contexto aos elementos delimitados. A contextualização dos elementos do texto primeiro corresponde a uma relacionação com outros elementos – o que produz articulações significantes e uma selecção de valores semânticos. A forma desta contextualização pode ser de dois tipos:

  • Expansão paradigmática: quando o comentário separa um elemento (palavra, percurso, …), e o integra dentro de uma classe paradigmática, sendo possíveis comparações entre os elementos desta classe;
  • Expansão sintagmática: quando o comentário separa um elemento e o integra a seguir, combinando-o com outros. Trata-se quer de prolongar um percurso figurativo do texto-primeiro e de convocar assim novas figuras, quer de prolongar um relato em que o texto primeiro fornece um «episódio». É muito importante esta última forma de expansão no comentário. No relato interpretante, os elementos do texto primeiro têm uma função narrativa, uma isotopia e um valor semântico. O «trabalho» do relato interpretante permite dar um contexto e seleccionar uma significação aos elementos do texto-primeiro5.

Encontram-se no comentário, como em qualquer «discurso» do saber, processos de organização, de comunicações e de persuasão, relativos ao saber. O comentário produz um sentido para o texto-primeiro, comunica e persuade da «verdade» do sentido produzido. Reencontramos aqui os três planos de funcionamento do discurso didáctico:

  • O discurso cognitivo encena operações de aquisição ou de comunicação de saber realizadas por um sujeito operador cognitivo (busca, reconhecimento, convocação das «fontes», …);
  • O discurso objectivo manifesta o objecto de saber realizado através das operações do discurso cognitivo. O relato interpretante pode pertencer a este nível em que o comentário visa a formação narrativa do texto primeiro. Mas o discurso objectivo do comentário pode ser projectado em diferentes registos de pertinência: o que dá os comentários «históricos», «filológicos», «psicológicos», «teológicos», etc.
  • O discurso referencial comporta os enunciados a que se faz apelo para autorizar, confirmar, sancionar as operações cognitivas e, portanto, para persuadir da verificação do discurso objectivo.

O comentário pode pôr em cena os actores da sua própria enunciação: o narrador e o narratário são, no texto, as figuras do enunciador (comentador) e do receptor. Muitas vezes estes dois actores são manifestados pelo mesmo deíctico «nós».

Com base nos papéis actanciais do narratário e do objecto (saber) comunicado é possível considerar os seguintes tipos de comentário:

  • Comentário-manipulação: o objecto-saber transmitido corresponde ao saber sobre o ser dos valores a atingir no termo de um programa narrativo em que o receptor do comentário é o sujeito operador. O comentário participa na comunicação de um querer fazer ou/e dever fazer;
  • Comentário-informação: o objecto-saber transmitido corresponde, neste caso, ao objecto valor principal para adquirir de tipo cognitivo, onde o receptor desempenha o papel de destinatário;
  • Comentário-reconhecimento: a manifestação do saber no comentário participa duma performance de reconhecimento do «herói» cujo relato interpretante do comentário encena. O comentário é uma narrativa de reconhecimento: o narrador
    (que é também destinatário no relato interpretante) conta as performances do «herói» e diz a sua «verdade»6.

 

3. Aplicação ao texto.*

3.1. Citação e relação fiduciária.

A propósito da descrição da estalagem – cf. p. 26 –, o enunciador que não quer «caluniar a boa gente de Azambuja» nem iludir o enunciatário com quem mantém uma relação fiduciária, isto é, um acordo sobre o valor dos objectos comunicados, ao fazer a sua «profissão de fé» literária, cita Boileau. A relação de implicação que liga o verdadeiro ao belo supõe, por outro lado, uma operação de interpretação. É sobre esta operação que intervém a relação fiduciária que é a relação entre o /ser/ e o /parecer/e que pressupõe uma relação entre /ser X/ e /parecer Y/ – manifestação e imanência. A descrição da estalagem entra, pois, num programa narrativo em que o objecto de valor proposto está definido ao lado da verdade e não da mentira. Boileau, no domínio da arte literária, enquanto poeta e crítico, representa desde logo uma «autoridade» credível para o sujeito da operação interpretativa, que mantém perante a fonte do enunciado citado uma relação que a semiótica define como sendo da ordem do crer. A evocação deste autor para assertar a verdade do que é dito da beleza e da verdade como objectos de «fé» por parte do sujeito da enunciação deve ligar-se aqui à interpretação que reveste este «imortal» e «evangélico» hemistíquio funcionando como significantes da verdade. Um texto «bíblico» terá autoridade ao nível deôntico (da ordem do obrigatório) para o sujeito operador que tem em vista a performance anunciada.

Veja-se a citação como recategorização discursiva dos enunciados citados e uma procura de conformidade entre o relato de X e o de Y.

Um caso de interpretação sustentada pela citação (cf. p. 103: «toma a tua cruz e segue-me») – esta citação é contextualizada em função de um papel temático (o do seguidor) e sob a forma de comentário-reconhecimento – o objecto-saber transmitido (o perdão) corresponde ao saber-fazer, comunicado ao narratário. O narrador, que é também o destinatário no relato interpretante, relata as performances do «herói» e diz a sua «verdade». O princípio da equivalência ou da conformidade entre os dois relatos/enunciados tem aqui como resultante que o enunciado citado é utilizado anagogicamente como exploração cognitiva de um fazer pragmático, estabelecendo-se a mesma circularidade entre estes dois tipos de fazer. «Deus», definido pragmaticamente («vê/ouve») e cognitivamente («bem sabe») é convocado diante da operação reflexa do sujeito enunciador como testemunha (sujeito operador da sanção) e como sujeito operador de uma performance a realizar («perdoar»). Trata-se, no plano narrativo, da constituição da competência (poder-fazer) dum sujeito operador (Deus) para a realização de um programa narrativo (perdoar). Os elementos que manifestam esta competência no texto situam «Deus» como /divino/ que tem o poder de «perdoar» sujeitos de estado («eu») situados como /humano/ outros elementos poderiam intervir: «Deus» como /masculino/ e /forte/ vs. «eu» como /feminino/ e /fraco/.

Note-se que a convocação do discurso referencial (neste caso o discurso é bíblico) se faz através do anafórico «Ele». Fala-se, neste caso, de discurso objectivo e referencial: objectivo porque manifesta o objecto cognitivo (Deus que me vê e ouve); referencial, porque é a este nível que se inscrevem os enunciados objectivos a cargo das operações do discurso cognitivo: aquilo sobre que se faz repousar a aquisição e a veridicção do saber (bem sabe que o digo em toda a verdade). A referência à Escritura («toma a tua cruz e segue-me») produz no discurso um efeito de real. A fala citada é o discurso dum outro e é como tal que é integrada no discurso citante. Deste modo ela «referencializa» o discurso sem deixar de lhe pertencer e de lhe conferir um estatuto de «real». Note-se ainda que neste texto o sujeito da enunciação assume o papel de sujeito cognitivo, na medida em que produz um certo saber sobre o «saber» de Deus. A referência à Escritura tem naturalmente a função dum fazer-saber conforme aquele que preside à enunciação do texto, o que constitui o reconhecimento do sujeito cognitivo como sujeito competente. É também claro que o discurso bíblico aparece como o objecto da enunciação no discurso objectivo (citação) e como discurso referencial sobre que se apoia o enunciado do discurso objectivo.

«O erudito e amável leitor escapará desta vez a mais citações: compre um Spectator, que é livro sem que se não pode estar (cf. a passim ;Viagens,
p. 30). Esta injunção a comprar a obra muito conhecida de Addison serve aqui uma clara operação de persuasão visando a substituição de uma axiologia (a de Démades) por uma outra (a de Addison). Note-se como a força persuasiva da citação só funciona se houver um acordo entre o enunciador e o enunciatário sobre a competência e a credibilidade dos sujeitos delegados do saber (Démades e Addison). A competência do narratário (leitor) é aqui explicitamente evocada. O leitor é ao mesmo tempo «erudito» – dotado, portanto, de competência cognitiva –, e «amável» – isto é, dotado de competência somática, melhor dito, noo-somática. O enunciador instala no seu discurso um actante de comunicação, o «leitor», e é diante dele que convoca dois textos diferentes, apresentados na sua estrutura polémica, à maneira de um combate. O actante assim instalado não é uma simples figura de retórica, mas é dotado de um certo número de competências, como vimos.

Vejamos, porém, a organização narrativa desta sequência. Primeiramente, temos um Sujeito, presente no texto sob a forma de um «eu» que exerce o seu fazer cognitivo apelando a um adjuvante – o fragmento do discurso referencial de Démades. À convocação deste adjuvante segue-se uma outra, a figura do anti-adjuvante (o livro de Addison), cujo fazer interpretativo porá em questão os argumentos do primeiro, a quem a fase da sanção dará o papel do oponente. A organização narrativa desta sequência mostra-nos, em plena fase da sanção, a manifestação dos valores (modéstia vs. inocência) correspondendo à ordem do fazer-saber, da citação, portanto.

Numa outra passagem das Viagens (cf. p. 46), evoca-se a sombra de Camões com a finalidade de contextualizar a citação em função dum valor ou de uma figura (a sensaboria). Caracteriza-se simultaneamente o papel actancial do sujeito da enunciação (sujeito operador do fazer-saber na sanção), articulada ao papel temático deste (escritor). Faz-se apelo à voz do «vate» Elmano (identificação de papéis temáticos) para estabelecer uma relação de homologação entre o estado comum aos três vates citados (Camões, Elmano e aquele que no texto diz «eu») – fado é o traço comum – e a realização daquilo que fizeram enquanto sujeitos operadores de «obras». «Sensaboria» é a figura seleccionada e recategorizada do objecto com valor disfórico (obra-prima vs. sensaboria). A citação de Anacreonte e Aristóteles (Viagens, p. 79) confirmará que para este conjunto de enunciados tanto um como o outro jogam o papel de sujeito operador da sanção, sendo ambos agentes ou adjuvantes da persuasão do efeito de verdade. A significação conotativa que adquire grande número de expressões neste texto intervém como uma «evocação» das condições de aparição do enunciado citado. Esse seria o grau mais simples da conotação (cf. a história da «menina dos rouxinóis» – Viagens, p. 78). Caso ainda em que as citações, segundo a cultura que as lê, são aceites numa determinada isotopia e não em outra (cf. Viagens, p. 321). A citação da história das Mil e Uma Noites faz-se exclusivamente sobre uma isotopia: a «monetária».

Uma outra estratégia discursiva que a citação serve: a inferência (cf. Viagens, p. 25). A sintagmatização do paradigma (natural) organiza-se segundo as regras duma lógica da argumentação contra um outro paradigma (o princípio utilitário). Poderíamos igualmente chamar a atenção para uma outra estratégia discursiva – a equivalência, por exemplo. Um idêntico percurso figurativo inscreve na escrita do discurso interpretante um tipo particular de equivalência: viajar pelo quarto (cf. Viagens, pp. 39 e 44).

Concluindo sobre a estratégia da citação: a convocação de enunciados bíblicos ou da retórica comum, sob o modo inferencial, de equivalência ou outros, manifesta um verdadeiro trabalho de inclusão, de transformação dialógica da língua, do leitor e do campo intertextual que para cada cultura representa a sua legibilidade do mundo como semiosis.

 

3.2. Comentário: Saturação e migração de motivos.

Se se considera o comentário como uma performance do fazer interpretativo, a variante dum relato de referência ou um fenómeno de migração de um motivo narrativo de um relato A para um relato B, vejamos que interpretação conotativa é dada, em pleno romantismo, ao relato da criação do Génesis bíblico no capítulo XXIV das Viagens. A questão é a de saber como, na nova contextualização do relato do Génesis, são seleccionados os valores, que código, que equivalências
ou inferências defluem dessa tradução cultural. Qual é a significação conotativa do relato da criação neste texto que manifesta o ideal da «natureza humana» e as «saudades do Paraíso» de Carlos, personagem ambígua, entre o desejo do antigo e as desgraças da hominização?

A referência ao texto bíblico intervém na construção do discurso objectivo e na encenação da verdade. A referência ao relato da criação segundo Deus, oposto ao relato da criação segundo a sociedade (anti-sujeito), aparece para provar o papel de contrafacção atribuído a esta última. É evidente o esforço de construção de um programa narrativo principal que corresponde à criação de um Adão natural, oposto a um anti-programa: a criação de um Adão social. Carlos será uma criação do Adão social com «saudades» do Adão natural. Esta personagem vive da sedução do saber, que o reduz ao mundo da animalidade. Verifica-se, no entanto, aqui e ali, a tendência para negar o estado negativo, para regressar à natureza «boa e verdadeira».

O capítulo XXIV das Viagens integra simultaneamente a citação e o comentário no processo de comunicação dum saber sobre o ser/fazer de um Sujeito, levando a uma recategorização dos elementos do programa «inicial» deste sujeito e a um juízo sobre o saber deste sujeito como um saber ilusório.

A inversão do programa segundo o qual a situação inicial (eufórica) se
transforma, dá-se a partir do momento em que há um rompimento da obrigação contratual (o preceito divino) passado entre o sujeito do dever-fazer (o preceito) ao dever-ser (a necessidade). A interpretação produz-se na leitura-tessitura do texto convocado dentro das malhas do comentário. Que tipo de unidades são consideradas aqui que vêm do texto convocado? Um relato, essencialmente. O texto realizado será a expansão sintagmática do texto citado. O comentário delimita no texto citado uma sequência narrativa, integrando-a num relato englobante. Uma selecção foi feita, ao nível das categorias semânticas /naturalidade/ vs. /socialidade/ que articulam os valores nelas contidos, e ao nível das figuras que veiculam estes valores.

A função dada à Escritura, aqui, é a de interpretação da «criação» fornecida pelo relato da criação. Põe-se «Deus» como sujeito operador, num programa narrativo de «criação», e opõe-se-lhe a «sociedade» como anti-sujeito. A expansão faz-se à volta de duas configurações, uma «social», a outra, «natural». O resultado é que o discurso novo contextualiza ou recontextualiza um discurso antigo e que nesta operação se assista a uma certa migração de semas. O discurso de Garrett encena, ao nível figurativo, ao nível temático ou ao nível profundo, elementos ou valores, «valências», comparáveis. O resultado é uma leitura «rousseauista» do relato da criação, onde o autor isolou incompatibilidades de isotopias e conivências axiológicas que certamente granjeou dos seus leitores.

Vejamos mais de perto o trabalho ideológico investido neste comentário, a partir do relato convocado: Génesis, 2-4b – 3, 24.

a) Análise narrativa.

Os enunciados narrativos que abrem este comentário correspondem à transformação dum Estado 1 num Estado 2, equivalentes a um percurso que opõe a situação do homem colocado no jardim (eufórico) ao estado resultante da sua deslocação para um outro espaço, o «Inferno» (disfórico). Do ponto de vista do sujeito de estado, o enunciado narrativo regista uma transformação do estado (consistindo numa disjunção): degradação, relativamente à situação inicial, que a figura «desgraça» interpreta. A formação por Deus de um jardim introduz um espaço particular sobre a terra; o homem passivo é aí colocado por Deus. Esta deslocação realiza a conjunção do Homem e do Jardim. Se a vida pode ser definida como objecto de valor transmitido por aquele que ocupa a posição de sujeito operador, o «Deus» do primeiro enunciado, o conhecimento, definido agora como objecto modal, é transmitido por aquele que ocupa na narrativa a posição de anti-sujeito (sociedade) no segundo enunciado. De notar que tanto no caso do primeiro enunciado como no do segundo apenas as acções dos sujeitos operadores são descritas em oposição, sem que ao sujeito de estado transformado sejam
cometidas quaisquer performances a realizar. A situação presente (desgraça) é o resultado da intervenção do anti-sujeito que, ele só, invertendo «as palavras de Deus criador», colocará o homem como sujeito de um novo fazer: «poder comer», em que intervém o permitido e o proibido. Inscrevamos as modalidades do sujeito «homem», «tu poderás comer, tu não comerás», dentro do quadrado das modalidades deônticas.

 

OBRIGATÓRIO 

dever fazer

«tu deves comer»

INTERDITO 

dever não fazer

«tu não comerás»

×
PERMITIDO 

não dever não fazer

«poderás comer»

FACULTATIVO 

não dever fazer

«não deves comer»

 

Ao programa de «vida» colocado diante do Homem como performance a cumprir é oposto como possível o programa «morte»: se tu comeres, morrerás. A sociedade, identificada ao mundo e qualificada como «grande juiz hipócrita, mentiroso e venal» ocupa neste capítulo o papel actancial da serpente do texto citado, e é ela só a causadora da transgressão do interdito editado por Deus. A acção da sociedade inscreve-se assim, nitidamente, num programa oposto ao de Deus – o que vem marcado, ao nível do texto, pela réplica: «da árvore da ciência do bem e do mal só comerás se quiseres viver», que contradiz a palavra de Deus no texto convocado: «não comerás sob pena de morte». Quer dizer, o discurso persuasivo da sociedade opõe-se ao discurso anterior, dissuasivo, de Deus, invertendo o quadrado deôntico proposto, a partir do interdito. O discurso de Deus coloca o saber da morte, ligado ao interdito, na deixis positiva, pois que ele é possibilidade de vida. O discurso da sociedade, que promete o conhecimento do bem e do mal, ao mesmo tempo que nega a relação «morte-interdito», apresenta o que é obrigatório ou permitido na deixis positiva. Nesta fase da narrativa, a
questão é a escolha que fará o Homem diante destes dois fazeres interpretativos propostos. As consequências da transgressão são:

  • O Homem não morre, o discurso da sociedade verifica-se;
  • O Homem adquiriu um saber negativo;
  • O Homem é desfigurado, proscrito e colocado no meio do Éden fantástico.

 

A interpretação dada ao relato destas duas acções opostas afirma que:

  • A performance «indigestão da ciência» manifesta o êxito do fazer persuasivo da sociedade;
  • Esta performance é violação do interdito: o discurso da sociedade é reconhecido como um discurso enganador, contraditório com o de Deus;
  • A sociedade é reconhecida como anti-sujeito; o seu discurso é colocado na deixis negativa, em oposição ao discurso de Deus, reconhecido como «verdadeiro».

Podemos assim colocar os dois saberes comunicados, sobre o modelo da veridicção: o discurso de Deus é representado pelos conteúdos ligados ao «verdadeiro» e ao «interdito»; o discurso da sociedade, pelos conteúdos ligados ao «enganoso» e ao «permitido».

Em resumo, o Homem numa situação nova, o «Adão social», é o homem proscrito do jardim e separado da árvore da vida e do conhecimento verdadeiro.

b) Análise discursiva

No discurso da análise dos sintagmas narrativos, notámos já um certo número de características das posições actanciais. A análise discursiva deveria permitir organizar os diferentes conteúdos, figurados pelos discursos da narrativa. Para facilidade da leitura, propormos dois modelos do quadrado semiótico, podendo sobrepor-se: o primeiro retoma sobretudo os comportamentos e os papéis actanciais, o segundo, os valores representados.

 

FALSO 

obrigatório

«deves comer»

VERDADEIRO 

interdito

«deves não comer»

×
MENTIROSO 

permitido

«não deves não comer»

SECRETO 

facultativo

«não deves comer»

 

Com este modelo podemos representar os diversos eixos a partir dos quais se constituem neste texto as categorias que opõem (A) vs (B) e que permitem a legibilidade do código sobre que assentam.

 

EIXOS CATEGORIAS
Cosmológico terrestre vs. celeste
Teológico humano vs. divino
Antropológico corporal vs. espiritual
Força activo vs. passivo
Veridictório enganoso vs. verdadeiro
Fiduciário transgressão vs. submissão
Subjectividade eufórico vs. disfórico
Temporalidade passageiro vs. eterno

 

Cada uma destas oposições categoriais determina um eixo semântico. Este conjunto de eixos semânticos permite-nos construir o modelo em que os fios do discurso de comentário tocam os fios do discurso tópico. A «terra» ou o «Éden», objectos de semantização no comentário das Viagens, são recategorizados segundo a VERIDICÇÃO, a TEMPORALIDADE, etc.

 

 

TERRA ÉDEN
Determinações figurativas Categorias Determinações figurativas
«o homem que a sociedade contrafez» («Adão social») /humano/ vs. /divino/ «formou Deus o homem»; «imagem divina»; «mão do Eterno»
«animal absurdo, monstruoso e aleijado» /corporal/ vs.
/espiritual/
«homem natural»
«reflexão», «vã sabedoria»; «Éden fantástico»; o mundo… grande juiz
hipócrita, mentiroso e venal»
/enganoso/ vs.
/verdadeiro/
«Bom e verdadeiro impulso da sua natureza»
«só comerás da árvore da ciência do bem e do mal», «indigestão de
ciência», constrições sociais»
/transgressão/ vs.
/submissão/
«não comerás da árvore da ciência do bem e do mal»; «santa liberdade»
«baixo e vil pela desgraça do presente» /presente/ vs. /passado/ «altivo e soberbo com as recordações do passado»; «reminiscências da
pátria antiga»
«inferno de tolices»; Príncipe
deserdado e proscrito»
/eufórico/ vs. /disfórico/ «paraíso de delícias»; «Rei
nascido de todo o criado»

 

Mantêm-se, na organização das Viagens, os dois espaços fundamentais, um espaço tópico («no jardim do Éden») e um espaço heterotópico («fora do jardim do Éden») do relato etno-literário do Génesis. O espaço heterotópico representa o mundo (o Éden fantástico que a «sociedade» criou) do inferno de tolices. O espaço tópico representa o outro mundo da «árvore da vida e a árvore do conhecimento do bem e do mal». O conhecimento do bem e do mal (o saber do eufórico e do disfórico) é primeiramente um saber sobre o ser alienado do homem, correspondendo à perda do objecto-valor, resultado de um determinado fazer que, em último caso, implica a morte. O mundo aparece como o resultado dos actos do homem contra o outro mundo. A árvore do conhecimento é uma árvore de morte. O discurso da serpente (da sociedade) é o discurso do sujeito rebelde que, ao comer da árvore do conhecimento se submete ao seu próprio desejo. Desintegrando-se do mundo sagrado, ficará ao homem para sempre interdito o caminho para a árvore da vida. A indigestão da ciência alienou para sempre o homem ao seu próprio reino fantástico.

 

4. Concluindo.

Falámos do comentário como de um jogo de integração narrativa e discursiva de um motivo – o da criação de Adão. Verifica-se facilmente que o relato-comentário completa sequências narrativas lacunares do relato de referência (o relato bíblico), bem como «esquece» muitas outras sequências narrativas do mesmo texto. A figura da mulher, por exemplo, não aparece nunca como adjuvante do anti-sujeito, a serpente, que é a figura da sedução por excelência. As operações interpretativas do autor à volta da transgressão, do interdito, traduzem uma orientação de leitura cultural bem demarcada. O relato da criação de Adão é lido quase exclusivamente debaixo de uma isotopia /teológica/. A intervenção do Homem como «aleijado» confirma o que acabamos de dizer. Uma concepção «protestante» da natureza decaída do Homem dialoga com uma outra concepção da natureza, gnóstica agora, que separa a «boa criação divina» da ordem decaída em que Adão entrou depois do pecado.

Esta selecção de percursos figurativos do relato bíblico nas Viagens mostra o fenómeno jà exposto da transgressão e da clausura que visa essencialmente apagar o limite do motivo narrativo integrado num programa de uso ao serviço dum objecto-mensagem – a manifestação do ser do sujeito operador, por exemplo.

Partíramos da ideia de que a citação e o comentário funcionam numa dinâmica integrativa de motivos migrantes no relato de referência. A clausura do texto citado/comentado deixa sempre livres certas valências que o trabalho da intratextualidade, no seu próprio labor, vai saturando.

Deve ter ficado claro que a selecção de valores obedece a duas ordens de construção: por um lado, a expansão discursiva e a contextualização nova que confere às figuras lexemáticas do texto; por outro lado, o código que regula as articulações dos valores semânticos.

A observação dos lugares de origem das figuras investidos na citação/comentário de qualquer texto deveria permitir situá-lo na inter-relação entre os sistemas significantes que tecem uma cultura. Pode concluir-se que o comentário faz do relato o uso específico dum sistema cujas articulações, o discurso da interpretação se encarrega de revelar. Deve ter ficado patente que o comentário, recontextualizando a obra, faz do texto de base a manifestação do seu uso cultural. Qual a função deste discurso interpretativo numa sociedade? Que função é atribuída ao relato de referência neste género de comentário?

Estas são questões que ultrapassam o quadro teórico donde partimos. A outros cabe a tarefa de lhes responder.

 


1 Louis Panier, «La citation biblique dans le discours didactique: Élements pour une approche sémiotique», in Écriture Chrétienne, Congresso da ACFEB, Paris, Cerf, 1978, pp. 115-160; «Le discours d’interprétations dans le commentaire biblique», in Introduction à l’analyse du discours en sciences sociales, Paris, Hachette Université, 1979, pp. 239-254; Récit et commentaires de la tentation de Jésus au désert, Paris, Cerf (thèses), 1984.

2 Groupe d’Entrevernes, Signes et Paraboles, Paris, Seuil, 1977, pp. 123-24.

3 Louis Panier, «Expansion figurative et sélection sémique dans le commentaire», Sémiotique et Bible, n.º 231, CADIR, Lyon, Setembro de 1983, p. 45.

4 Louis Panier, «Sémiotique du commentaire: Problématique et procédures d’analyse», Revue des Sciences Religieuses, n.º 3-4, 1978, p. 202.

5 Yván Almeida, «Trois cas de rapports intra-textuels: La citation, la
parabolisation, le commentaire», Sémiotique et Bible, n.º 15, 1979, p. 22.

6 Idem, p. 43.

7 As citações das Viagens na Minha Terra de Almeida Garrett
correspondem à 3.ª edição da colecção «Clássicos Sá da Costa», Lisboa, Sá da Costa, 1974.