Numa frase – agora com mais de uma década, mas não por isso menos certeira – Eugene Thacker resumiu aquela que se poderia considerar a experiência mais característica de uma vida imersa no século XXI: «o mundo é cada vez mais impensável» (2011, Prefácio, parágrafo 1). O contemporâneo é marcado por um conjunto de fenómenos que parecem configurar um estado de impossibilidade de enquadramento; entre eles encontra-se um contexto tecnológico cada vez mais complexo e impenetrável, marcado pela inteligência artificial e a computação ubíqua, um clima sociopolítico de instabilidade, e a emergência da época histórico-geológica a que se convencionou chamar “antropoceno” – definida não apenas pela intervenção humana nos mecanismos geológicos mas, e talvez sobretudo, pelas avalanche de consequências não antecipadas que esta intervenção desencadeou.
A experiência desta impensabilidade do mundo corresponde a uma reconfiguração fenomenológica; efetivamente, a humanidade depara-se com uma nova distribuição do sensível (Rancière 2013), isto é, uma nova delimitação daquilo que aparece (e pode aparecer) no espaço da experiência. Horn e Bergthaller falam de uma “nova forma de estar-no-mundo” que
convida ao questionamento em dois níveis: primeiro, há a questão epistemológica dos modos de acesso ao, e das formas de conhecimento do, não humano; segundo, há a questão de como é que esta nova relação entre o humano e o não humano pode ser esteticamente representada (2020, 98)
A questão que motiva este ensaio relaciona-se, precisamente, com a caracterização desta nova “forma de estar-no-mundo”. Horn & Bergthaller (2020) sugerem o sublime enquanto modo estético que pode funcionar como orientação para esta tarefa; a proposta que aqui se faz é a de exploração desta possibilidade mediante a re-apresentação do conceito de sublime à luz de uma estética afetiva ou atmosférica.
Os contornos do sublime foram delineados, num primeiro momento, por Burke e Kant, ainda que de formas distintas. Burke considera que o sublime é «análogo ao terror» (1764, 58), tratando-se de uma paixão que «rouba a mente da sua capacidade de agir e raciocinar» (1764, 96). A origem ou fonte do sublime, para Burke, está na posse, por parte de objetos ou espaços, de determinadas características que contribuem para a impossibilidade de os captar totalmente, como a escuridão, a vastidão, ou a privação de algum aspeto sensorial. É notório, também, que o autor considera que há algo de instintivo (e, portanto, não racional) no sublime.
Kant, por sua vez, foca não nas características que originam o sublime como “paixão”, mas no papel da razão neste modo de experiência estética, apresentando-o como um tipo de juízo estético. Conforme proposto na Crítica da Faculdade de Julgar (2000), o sublime emerge da impossibilidade de representação, de uma espécie de violência sobre a imaginação que torna impossível que esta desempenhe a sua função principal – associar os dados perceptivos (intuições) às categorias do entendimento, isto é, operar a cognição do objeto. O sublime não pode, portanto, ser captado por nenhuma forma sensível, emergindo precisamente da incapacidade humana de apreender (sensivelmente) a magnitude da natureza (Kant 2000, §23). Contrariamente à leitura de Burke, que enfatiza a dimensão do terror e da inquietação originados pela experiência do sublime, Kant considera que, se o confronto com esta incapacidade faz emergir a consciência da limitação das nossas capacidades perceptivas, ele é também a origem da consciência de que o humano possui uma faculdade suprassensível – a razão – que permite compreender e experienciar o sublime. Nesta medida, o sublime, para Kant, «transforma um sentimento de insuficiência negativa num ganho positivo: tais experiências servem para estabelecer as faculdades da razão mais firmemente no seu domínio legítimo, ainda que diminuído» (Morley 2010, 16).
O sublime kantiano é marcado, portanto, pela distância do sujeito em relação ao objeto – a distância inerente ao juízo estético enquanto juízo subjetivo (ainda que tomado como universal). Apesar de extremamente influente, a perspetiva de Kant sobre o sublime não parece satisfazer totalmente a necessidade de pensar a inquietação fenomenológica persistente que marca a reconfiguração da experiência contemporânea do mundo; em parte, isto pode dever-se ao papel apaziguador que a reafirmação do poder da razão tem na experiência. Mishra considera que «a extraordinária ênfase na primazia da razão implicou que o sujeito, ainda que profundamente marcado, ainda assim emergisse do encontro com o sublime mais ou menos triunfante» (1994, 38).
O sublime romântico, numa relação próxima com o gótico enquanto movimento artístico e literário, questiona precisamente esta perspetiva, explorando o conceito como estando associado «ao falhanço do pensamento claro e a questões para além da perceção determinada» (Weiskel 2019, 17). O sublime do século XIX «é um sublime vertiginoso e que mergulha – não ascende – e nos leva às profundezas da esfera humana, e não àquilo que está fora dela» (Morris 1985, 304) e «abre a mente aos seus próprios poderes ocultos e irracionais» (1985, 306). Assim, poder-se-ia dizer que o Romantismo incorporou a questão da “dimensão suprassensível” do sublime kantiano como estando associada ao obscuro e ao vago, por oposição ao claro e ao distinto. Weiskel (2019) considera que, mais do que somente enfatizar o poder da razão, o sublime sublinha as limitações da mente e das estruturas de significação, de interpretação e navegação do mundo que marcam a atividade humana. O sublime romântico recupera, portanto, a intranquilidade do sublime de Burke e conjuga-a com um sentido do inescapável, de imersão na fonte de inquietação.
Apesar de esta conceção permitir aproximar o argumento de um “estar-no-mundo” inquieto, não atribui ênfase suficiente a um aspeto fundamental desta época do antropoceno: o facto de que a “natureza”, construída e percecionada enquanto entidade que se opõe à cultura, «parece viva, ameaçadora, imprevisível, sentiente e temperamental» (Horn & Bergthaller 2020, 101). Os autores identificam uma fonte particular de afeção na consciência humana de que a humanidade existe “no meio das coisas”; se o sublime romântico já fornece a dimensão fundamental da proximidade, do “estar-aí” da experiência estética do sublime como experiência do mundo, é necessário, no entanto, suplementar isto com uma perspetiva ecológica do sublime.
Neste ponto, é importante sublinhar que a estética, como está a ser tratada aqui, vai para além do juízo estético, aproximando-se mais do conceito grego de aisthesis, isto é, da perceção em geral, da experiência sensível do mundo. Esta definição reforça a ideia de que a sensibilidade – ou seja, a captação da informação do mundo, ou uma certa forma de abertura do humano à receção da informação vinda do (ecos)sistema – é um aspeto central da experiência estética. Aqui, é útil o conceito de Böhme de atmosfera ou estética atmosférica como forma de referir esta perspetiva em que a estética emerge entre sujeito e objeto, num gesto pré-consciente de co-criação em que a perceção capta o modo de aparecer dos objetos (Böhme, 2017). A perspetiva ecológica do sublime que se propõe parte, portanto, do princípio de que a apreensão humana do lifeworld, consciente e não consciente, está entrelaçada com uma forma de agência das coisas sobre a sensibilidade e a imaginação.
No contexto contemporâneo constatamos o surgimento de inquietações e ansiedades resultantes de uma alteração da relação com a natureza. Ainda que os dispositivos de controlo e monitorização sejam cada vez mais sofisticados, possibilitando a captação de alterações efetivas que estão em curso nos sistemas terrestres – uma nova forma de visibilidade –, encontramos igualmente uma retração da certeza em relação a uma natureza estável, inteligível e capturável – o que significa necessariamente uma nova forma de ocultação. Neste sentido, e recorrendo às palavras de Horn & Bergthaller, parafraseando Timothy Clark, uma estética do antropoceno depara-se com a necessidade de englobar:
(1) latência, a retração [das “coisas”] em relação à perceção e à capacidade de representação; (2) entrelaçamento [entanglement], uma nova consciência da coexistência e imanência; e (3) escala, o confronto de ordens de magnitude incompatíveis (2020, 102),
sendo que estas três características do contemporâneo criam um efeito de incapacidade de captura que resulta, não de uma “irrepresentabilidade” kantiana, mas de uma imersão e proximidade inquietantes.
A relevância do sublime como modo estético que permite mapear esta condição de existência é bem ilustrada pela leitura que Latour faz da obra A Grande Reserva perto de Dresden (1831), de Caspar David Friedrich – significativamente, um pintor de renome do romantismo alemão. Esta pintura conjuga a familiaridade do tema da representação da paisagem natural com o estranhamento de uma perspetiva desnaturalizada face às expectativas da representação na arte ocidental. Esta é uma paisagem que é expectável que o espectador «contemple de frente, mas na qual não consegue residir, tal como não consegue penetrar o céu tingido a ouro» (Latour 2017, 221). Neste sentido, Latour
vê o espaço curvado, não-euclideano da imagem, o olhar desapegado do observador desorientado, como alegoria do lugar humano em relação à natureza na qual já não tem um lugar seguro. No Antropoceno, a natureza já não pode ser representada como um simples “dado” que o observador consegue captar com um único olhar (Horn & Bergthaller 2020, 98).
- A Grande Reserva perto de Dresden [Das Große Gehege] (1831), de Caspar David Friedrich
Por sua vez, Timothy Morton, numa postura mais radical, sublinha que o próprio conceito de “natureza” deve ser abandonado em favor do de “ecologia”, que enfatiza, precisamente, a complexidade da relação que o humano estabelece com o mundo, rejeitando uma utilização aparentemente “óbvia” do conceito que esconde esta complexidade ao apresentar a “natureza” como algo estável, autocontido e distante do humano (Morton 2007). A estética que Morton propõe tem por base o entanglement, o “estar-aí” da experiência humana como condição fundamental e originária – uma estética baseada, essencialmente, na proximidade, que, no entanto, mantém o elemento de distância inerente à incapacidade de captar e compreender totalmente os fenómenos pressuposta pelo conceito de hiperobjeto (Morton 2011). Esta é uma perspetiva profundamente influenciada pela Ontologia Orientada para Objetos (2018) de Graham Harman, que postula uma ontologia na qual a humanidade é uma entidade entre diferentes entidades num cosmos muito mais vasto do que as nossas capacidades de apreensão.
Em jeito de conclusão, encontramos na história do conceito de sublime uma história de diferentes perspectivas sobre estética, indicando interligações com ideias de distanciamento e controlo, mas também de quebra e proximidade. Esta diversidade não é apenas diacrónica: no momento contemporâneo encontramos diferentes perspectivas sobre o que constitui a experiência do sublime, assim como as suas condições de possibilidade. Por entre a multiplicidade, procurámos mapear uma tendência teórica de reinterpretação do sublime à luz de estéticas ecológicas e atmosféricas. Esta tendência ancora o sublime na ansiedade gerada pelo entrelaçamento do mundo humano nos processos não-humanos mais vastos que o constituem em diferentes escalas – desde o microscópico até ao atmosférico. A recontextualização do sublime implica uma passagem de um distanciamento contemplativo para uma co-implicação inescapável com sistemas complexos e diferentes tipos de existência que vão para além das relações estabelecidas com o humano. Nas palavras de Horn & Bergthaller: «a liberdade reflexiva em tempos associada com a experiência sublime dá lugar à intimidade perturbadora de um mundo que já não pode ser tomado como certo» (2020, 103).
Referências bibliográficas
Böhme, G. (2017). The Aesthetics of Atmospheres. Routledge.
Burke, E. (1764). A Philosophical Enquiry into the Origins of our Ideas of the Sublime and the Beautiful (4ª edição). Impresso por R. e J. Dodsley.
Harman, G. (2018). Object-Oriented Ontology: A New Theory Of Everything. Penguin Books.
Horn, E. & Bergthaller, H. (2020). The Anthropocene: Key Issues for the Humanities. Routledge.
Kant, I. (2000 [1790]). Critique of the Power of Judgment. Cambridge University Press.
Latour, B. (2017). Facing Gaia: Eight Lectures on the New Climatic Regime (C. Porter, trad.). Polity.
Mishra, V. (1994). The Gothic Sublime. State University of New York Press.
Morley, S. (2010). “Introduction: The Contemporary Sublime”. In S. Morley (ed.), The Sublime (pp. 12-21). The MIT Press.
Morris, D. (1985). Gothic Sublimity. New Literary History, 16 (2), pp. 299-319.
Morton, T. (2007). Ecology without Nature: Rethinking Environmental Aesthetics. Harvard University Press.
Morton, T. (2011). “Sublime Objects”. In M. Austin, P. Ennis, F. Gironi & T. Gokey (eds.), Speculations II (pp. 207-227). Punctum Books.
Rancière, J. (2013[2004]) The Politics of Aesthetics: The Distribution of the Sensible (G. Rockhill, trad.). Bloomsbury.
Thacker, E. (2011). In the Dust of This Planet. Zero Books.
Weiskel, T. (2019). The Romantic Sublime: Studies in the Structure and Psychology of Transcendence. Johns Hopkins University Press.