Ecologias do Som: Cage e Haraway em torno de um novo panorama educativo eco-cultural

A arte e a educação, pelo menos desde o período da Antiguidade Clássica, têm sido alvo de contínuas contendas, conflitos e desavenças. Quem não se recorda de um enraivecido Sócrates (ilustrado por Platão [trad. 1963]) preocupado com a utilização correta e ponderada da música, tendo em conta determinadas escalas e instrumentos, para melhor educar cada uma das três camadas sociais (se é que assim as poderemos designar) da sua ainda por edificar kallipolis e com a presença indevida de poetas e outros criadores de histórias e mitos desviantes? Ou de um Aristóteles (trad. 1995) dedicado a relevar a função mimética e catártica da arte, principalmente a arte do drama, de modo a promover uma educação mais digna e moralmente mais apropriada? 

A partir desta conjetura, onde determinados pressupostos artísticos deverão influenciar o exercício da educação e onde uma série de prerrogativas pedagógico-didáticas ditarão aquilo que poderá ser tornado arte ou não, entendemos não apenas a inseparabilidade destes dois mundos, como a necessidade de os colocar em constante diálogo e comunicação, principalmente quando a humanidade e o planeta Terra enfrentam graves e, neste momento, quase insuperáveis problemas ambientais. 

Para nos dar conta deste nosso atual paradigma, Susan Ballard (2021) conta-nos a história de como os “humanos transformaram o ambiente de tal forma que se tornou necessário dizermos que nós operamos como uma força geológica” (p. 1, tradução própria, como as que se seguirão). Neste momento, já perdemos a conta das inúmeras décadas que retratam a autêntica e perversa destruição dos vários ecossistemas que compõem o nosso planeta pelas nossas próprias mãos e por motivos que nem sempre são claros, até porque, como vários autores já inferiram (cf. Heidegger, 1971; Bennett, 2010; Cole & Frost, 2010), não nos é possível situar o humano e o não-humano em duas esferas completamente opostas e separadas; ambas encontram-se já interligadas e interrelacionadas entre si, a partir do momento em que existem. 

Se a análise marxista de Fischer (1963) sobre a “necessidade da arte” passou pela exaltação, e consequente elevação, da humanidade a um estádio ontológico de total e completo domínio e controlo da natureza, então, agora, o desafio que se apresenta é o de denunciarmos e, mais do que isso, revertermos este weltanschauung, construindo (num gesto profundamente nietzscheano) a possibilidade de erguermos e alcançarmos um “outro mundo possível”. 

Neste sentido, este ensaio foi escrito e desenvolvido, maioritariamente, por meio do cruzamento entre o pensamento eco-feminista de Donna Haraway (2016) e do entendimento estético-ecológico da música de John Cage, presente no A John Cage Reader: in celebration of his 70th birthday (1983). Escrito em torno do som, como um educational space-making process e aliado a uma audição e atenção consentâneas, esta abordagem permitir-nos-á pensar em formas de criar e sustentar um espaço (transformado em lugar) educativo, propício à germinação, ao cultivo e ao crescimento de intersubjetividades polissémicas e polivalentes, constantemente em comunhão com o mundo pós-humano, em seu redor. 

Acima de tudo, ouçamos. A partir do momento em que começamos a ouvir, não conseguimos voltar atrás. Ainda que possamos voluntariamente fechar os nossos olhos, para que não vejamos nada, ou retrair uma mão ou um pé, de modo a não tocarmos em nada, nós estamos permanentemente a ouvir. No entanto, esta audição, consciente ou inconsciente, não se afigura apenas como uma característica fisiológica. Como Salime Voegelin nos impele a pensar, ouvir “é um ato de entrar em contacto [engaging] com o mundo” (2010, p. 3). 

Este “modo sensorial de contato [engagement] que determina a minha constituição e a do mundo” (Voegelin, 2010, p. 3), tendo em conta a contingência relacional em que, neste momento, habitamos e em que se torna mais necessário do que nunca pensar-com e tornar[mo-nos]-com o Outro (enfatizando aquilo que Haraway caracterizará como um relacionamento “multiespécies”), reaparece, então, de maneira obrigatória e indispensável. 

Entrincheirados numa cultural globalmente pautada e moldada pela sensualidade do olhar e pelo fascínio da imagem (estática ou incessantemente em movimento), estamos condenados a permanecer reféns de um culto existencial em prol da visualidade que reduz o som (e, se me é permitido afirmar, a música) a um mero apêndice ou objeto decorativo, que servirá apenas para embelezar, ou, no pior dos casos, para enfatizar e confirmar a categorização de um símbolo (aquilo que preocupou Barthes, nos anos 50, relativamente à transfiguração de certas práticas sociais em mitos e que se foi agravando em Baudrillard, já na década de 1980, com a total supressão do “real”, concreto e material, através de símbolos e sinais, subsiste na nossa sociedade contemporânea). Quaisquer sons, barulhos ou ruídos que irrompam no nosso dia-a-dia e que nos obriguem a encará-los, passam por um curto ou longo julgamento e escrutínio, com o objetivo de serem imediatamente descobertos, definidos, nomeados e, finalmente, associados a uma qualquer imagem (pré-concebida e somente recuperada, ou criada no momento, desde que ancorada numa realidade, normativamente, plausível e admissível), processo este que culmina, assim, na satisfação da nossa inelutável “vontade de saber” e num repouso epistémico, seguro da sua certeza e inabalável asseveração. Aprendemos, assim, a colmatar a diferença, a extinguir a divergência e a eliminar a emergência da dúvida. Ora, pensando conhecer e compreender automaticamente quem ou o que é este Outro que se apresenta perante mim, como poderei, alguma vez, esperar encontrá-lo? “A tarefa”, assim sendo, Haraway escreve, “é tornarmo-nos capazes, em conjunto, com todas as nossas formas de presunção, de respondermos” (2016, p. 1). 

Segundo esta autora, “há tantas boas histórias ainda por contar, tantas malas de rede ainda por tecer e não apenas por seres humanos” (ibid, p. 49). Realmente, a necessidade de termos a oportunidade de ouvir e de contar contos, sonhos, experiências, fantasias, momentos e eventos vários que, num acumular ininterrupto (mas não forçosamente linear, lógico ou até mesmo congruente) de sedimentos vivenciais, vão formando, fabricando e configurando as múltiplas linhas do horizonte que organizam (caoticamente) aquilo a que eu poderei designar como um “eu” (que nunca se esgota ou esgotará em si mesmo, precisando e pressupondo sempre a existência de um Outro, ao qual se assemelha, e, ao mesmo tempo, se distingue) é impreterível. Estas histórias, que são também, como Haraway (2016) nos descreve, “fabulações especulativas” ou “realismos especulativos” (este último, altamente provocador e carregado de risco, é essencial para a elaboração de um espaço educativo conducente à prática de “jogadores multiespécies, que estão enredados em parciais e lacunares traduções ao longo de divergências” e que “refazem formas de viver e morrer sintonizados com um florescimento finito possível” [ibid. p. 10]) são narradas, segundo a própria, num espaço chamado Terrapolis. 

Tal como o 4’33” (1952) de John Cage (neste ensaio, convertido numa metáfora), a Terrapolis é “aberta, mundial, indeterminada e politemporal”. Sendo este espaço um lugar onde “espécies companheiras estão implacavelmente a tornar-[se]-com”, o receio de enveredarmos por um caminho que nos leve à essencialização ou à redução de um ser multifacetado, infinitamente contido num movimento processual de metamorfose indeterminada, desvanece e dá origem a um encorajamento do dissensus (para me apropriar de um conceito rancieriano que descreve uma ruptura epistémica que possibilita o surgimento de posições divergentes, que não sejam imediatamente tornadas homogéneas e, consequentemente, resolvidas) e da alteridade.

Simpoiéticamente, esta espécie de heterotopia foucaultiana ecológica viabiliza a composição de um conjunto indefinido de sujeitos e predicados que, ao contrário da dialética hegeliana, não terminaria numa síntese elucidativa, gravada numa pedra, perdurando numa autêntica geração de aporias que, ainda que momentaneamente nos pudessem oferecer algum tipo de consolo, abririam sempre uma clareira de perplexidade que suscitaria uma intervenção. Não se trata aqui de favorecer uma desterritorialização integral de um ente, propícia à erradicação de qualquer tipo de elemento afetivo à sua materialidade vital, mas sim de elencar a propriedade rizomática da aprendizagem e da educação, incitando a ativação de um “pensamento tentacular” coletivo. O objectivo, segundo Wang (2021), será precisamente a edificação de um lugar próprio ao cultivo da criatividade como um “engajamento do ser-total [whole-being engagement] onde a corporalização meditativa, ligação estética [aesthetic attunement] e ação improvisatória se juntam, de modo a soprar vitalidade [atentemos, aqui, à invocação do conceito grego antigo de psuché, ou seja, literalmente, a força vital que anima o corpo], para dentro do ato de ensinar, de aprender e do currículo” (p. 3). Para tal, precisamos de prestar atenção. 

A atenção, entendida na sua forma mais coloquial e familiar possível (qualquer discussão que tentasse abarcar o pensamento husserliano acerca da intencionalidade na sua plenitude ocuparia mais espaço neste ensaio do que aquele que me foi concedido), orienta-nos em direção a um determinado foco. Soterrado e preso por uma miríade de estímulos e impulsos, um indivíduo escolherá (ou, na pior das hipóteses, será obrigado) a outorgar alguma forma de cuidado especial e a dedicar algum do seu tempo a alguma coisa que se manifeste no espaço (seja este mental ou físico). Depreendemos, com isto, a particularidade da atenção se fundar numa atividade espácio-temporal. Isto quer dizer que, para que haja foco e atenção é imperativo que um indivíduo pare e que se concentre em algo, para o qual se quer aproximar. Esta deslocação, esta mobilização deliberada até àquilo que tencionamos melhor compreender, explicar e interpretar parte de uma ideia explícita em Cage, como nos diz Natalie Schmidt, em benefício de “revelar aquelas partes da realidade que, até agora, foram escondidas, ignoradas ou degradadas” (1983, p. 21 in A John Cage Reader: in celebration of his 70th birthday). O dever de prestar atenção àquilo que é excluído, ostracizado ou posto de parte e de trilhar uma passagem que assegure o regresso da margem ao corpo do texto (corpo este sempre desfigurado, sem qualquer tipo de centro fixo, pronto a ser recontextualizado, redesenhado e reapropriado, seguindo o pensamento arquitetónico de Stavrides [2021]), sem que isto implique uma reinserção abusiva ou imposta de cima, para baixo, ou uma reconstituição prescritiva daquilo que é discrepante tem que servir de base aos nossos esforços estéticos e educativos. Como nos explica Schmidt, mais à frente, “para nos tornarmos fluentes, confluentes, com a natureza, temos que desistir dos nossos desejos, expectativas, e valorações” (1983, p. 25), para que não obstruamos a “fluência das coisas que entram através dos nossos sentidos e dos nossos sonhos” (1983, p. 25). O esforço é significativo. O anseio pela refundação da nossa relação com o mundo que nos rodeia e com aqueles que o habitam é esmagador e, por vezes, pode efetivar alternativas ainda mais nocivas e problemáticas do que o próprio status quo (os inúmeros “techno-fixes” que Haraway critica severamente e com razão, infelizmente, não deixam também de consistir noutras formas de pensarmos esta questão). Não obstante, não nos custa tentar. A arte e a educação servirão de porta de entrada para este novo panorama eco-cultural. A sua consagração, porém, implicará sempre uma dinâmica de revisão e reformulação: de deixar e instigar o Outro a cativar-nos e atrair-nos a refazer todas as nossas práticas, todos os nossos sistemas de valores e todos os nossos sistemas de pensamento. 

Cage, no seu Empty Words (citado em Schmidt [1983]), de 1974, diz-nos o seguinte: “Começamos a estar perspicazmente cientes da riqueza e unicidade de cada indivíduo e da capacidade natural em cada pessoa para abrir novas possibilidades para o [O]utro”. Schmidt (1983) dá continuidade a esta afirmação: “O papel dos seres humanos, se é que se pode dizer que eles têm um, é simplesmente tornarem-se mais curiosos e mais atentos” (p. 27). Re-aprendamos a ouvir.

 


Referências bibliográficas

Aristóteles. (1995). Poetics (S. Halliwell, Trans.). Harvard University Press. Ballard, S. (2021). Art and Nature in the Anthropocene: Planetary Aesthetics. Routledge. Baudrillard, J. (1994). Simulacra and simulation. University of Michigan Press. Barthes, R. (2013). Mythologies: The Complete Edition, in a New Translation. Macmillan. Bennett, J. (2010). Vibrant matter: A Political Ecology of Things. Duke University Press. 

Coole, D., & Frost, S. (2010). New materialisms: Ontology, Agency, and Politics. Duke University Press. 

Fischer, E. (1963). The necessity of art: A marxist approach (A. Bostock, Trans.). Penguin Books. 

Gena, P., & Brent, J. (1983). A John Cage reader: In Celebration of His 70th Birthday. Haraway, D. J. (2016). Staying with the Trouble: Making Kin in the Chthulucene. Duke University Press. 

Heidegger, M. (1971). Poetry, language, thought. New York : Harper & Row. Kostelanetz, R. (2003). Conversing with Cage. Psychology Press. 

Platão. (1963). The Republic: In two volumes. Books I-IV (P. Shorey, Trans.). Harvard University Press. 

Stavrides, S. (2021). Espaço Comum: A cidade como obra coletiva (J. Colaço, Trans.). Orfeu Negro. 

Voegelin, S. (2010). Listening to noise and silence: Towards a Philosophy of Sound Art. A&C Black. 

Wang, H. (2021b). Contemporary daoism, organic relationality, and curriculum of integrative creativity. IAP.