O presente é um plano instável, ou um palco de ansiedade coletiva. Hoje, a imprevisível reconfiguração de entendimentos geopolíticos, num caminho vertiginoso para a autocracia (Applebaum 2025; Rachman 2025), faz da produção de pensamento quanto a conceitos fundamentais à apreensão das pulsões do mundo – segurança, soberania, comunidade, memória, retaliação, temperança, autonomia, poder ou privacidade – um desafio particularmente difícil. Propõe-se então o recuo do foco, para os primeiros anos do século XXI, quando, por uma sucessão de processos desequilibrados de ação e retaliação, foi desfeita a promessa utópica de um “fim da História” que se acreditava ter sido alcançado pelo triunfo das democracias liberais (Fukuyama 1992), após décadas de atrocidades indizíveis. Partindo do visionamento da curta-metragem In Order Not To Be Here [1] (2002), da cineasta e artista multidisciplinar norte-americana Deborah Stratman, este texto preocupar-se-á com as competências do cinema enquanto manifestação (intencional ou acidental) de pontos de vista sobre termos estruturais da discussão política e cultural, nomeadamente o da segurança [2].
O filme de Stratman descobre uma ideia de segurança central ao seu texto: produto de um período conturbado na esfera das relações internacionais, marcado pela ameaça terrorista e a meticulosa construção de um “outro” perigoso, diferente, desalinhado com um abstrato conjunto de valores presumivelmente em risco. Olhar-se-á para In Order Not To Be Here como um sinal dos tempos e como um objeto que, principalmente através da montagem e da articulação quase irónica entre o que está em quadro e tudo o que existe fora de campo, resiste a mensagens planas e à instrumentalização de um discurso securitário.
Anthony Burke (2006: 28) propõe uma conceção de segurança – a nível geopolítico e de relações internacionais – como uma tecnologia política e não como um valor essencial, como um sistema complexo que atua sobre indivíduos e espaços. Esta breve definição poderá corresponder àquilo que o filme evidencia, pelas suas vias particulares, pesando também a ideia de segurança doméstica, familiar.
Refletindo para além da intenção autoral, procurar-se-á interpretar a sucessão de planos estilizados sobre uma atmosfera sonora detalhadamente construída como sintomas de uma conjuntura política implícita, considerando, no entanto, o estado de mutação constante que o tempo e os acontecimentos impõem ao sentido dos objetos artísticos e culturais. A curta-metragem de Deborah Stratman é, assim, um espelho do seu tempo e oferece também um quadro conceptual para a problematização das ansiedades contemporâneas, mais de duas décadas depois da sua criação.
Adotando uma metodologia de análise fílmica suportada sobretudo pelo visionamento da obra, sugere-se também uma leitura que contempla o que, nas últimas décadas, foi apontado como uma viragem pós-colonial dos estudos de segurança (Barkawi & Laffey 2006), como resposta necessária a formas estabelecidas de uso do poder. Para Peter Phipps (2023: 135-136), uma perspetiva pós-colonial tanto permite alargar o entendimento sobre questões complexas através do contributo plural e descentralizado, como, contrariando essa lógica da inclusão, contestar paradigmas e desfazer ideias cristalizadas. A forma e a plasticidade deste filme podem representar um ponto de partida para a discussão a respeito de ideias plurais de segurança. Sem fixar o filme em qualquer pressuposto teórico ou posicionamento explícito, pois, In Order Not To Be Here não tem diálogos, para além de vozes estilhaçadas, de noticiários e de comunicações por rádio.
In Order Not To Be Here revela as práticas do documentário que Bill Nichols (2001:102-105) – numa classificação esquemática da identidade do cinema documental – denomina de modo poético. Caracterizada pelas associações livres e pelo corte com convenções de continuidade espaciotemporal, esta tipologia tem um referente informal na ampla designação de cinema experimental, registo que existe na oposição à normatividade das narrativas guiadas pela coesão espacial e progressão numa lógica de causalidade. Pela sua composição formal, o filme de Deborah Stratman é um veículo de sensações, principalmente da ansiedade premente num ambiente onde a segurança é um valor tão essencial quanto fabricado: o subúrbio norte-americano.
Ao longo de pouco mais de trinta minutos, planos fixos, à noite, de espaços quase sempre vazios – uma farmácia, o exterior de um McDonald’s, um parque de estacionamento, o passeio numa zona residencial, uma sala de estar, um terminal multibanco, a fachada de um supermercado, o interior de uma loja de conveniência ou o exterior de uma moradia da classe média alta [Fig. 1 a 4] – sucedem sem narração verbal. A câmara de Stratman oferece maioritariamente planos gerais ou de conjunto, com pontuais e cirúrgicos grandes planos, como o rosto de uma criança que dorme (explorando um momento de convivência paradoxal de segurança e vulnerabilidade). Esta distância coloca o espectador numa posição de observador externo, com incursões quase ilegítimas aos raros interiores domésticos. A permanente negociação entre público e privado é corroborada pela insistência em motivos como muros e vedações – fronteiras intransponíveis que delimitam a propriedade privada –, ou de letreiros que identificam as residências, elaborando um comentário silencioso à ideia de identidade através da posse.
- 1. In Order Not to Be Here, de Deborah Stratman. Pythagoras Films. [00:17:08]
- 2. In Order Not to Be Here, de Deborah Stratman. Pythagoras Films. [00:16:54]
- 3. In Order Not to Be Here, de Deborah Stratman. Pythagoras Films. [00:13:42]
- 4. In Order Not to Be Here, de Deborah Stratman. Pythagoras Films. [00:08:43]
À sequência estudada de imagens justapõe-se a reunião de elementos sonoros, que, por um lado, corrobora de forma tautológica os ambientes descritos no plano visual – através do som dos carros que passam e dos cães que ladram, dos grilos, do ruído da tubulação de arcas frigoríficas, do vento, ou da trepidação de lâmpadas fluorescentes – e por outro, introduz disrupção. Esta dimensão fraturante da banda sonora é conseguida pelos momentos de música eletrónica, sombria, desconjuntada, que evocam uma sensação de ameaça permanente, e pela inclusão de vozes provenientes de comunicações por rádio. O filme de Stratman apresenta-se nesta dualidade de mostrar o espaço seguro por excelência na vida do pós-guerra no Norte Global, o subúrbio norte-americano, sob um estado de ansiedade permanente, colocando em causa os mecanismos de proteção.
Como imagens-chave, cruciais à formulação de um discurso a respeito das políticas de visualidade, controlo e vigilância do século XXI, o primeiro e terceiro atos da curta-metragem consistem em imagens de pouca resolução de câmaras de videovigilância, que – para além de trazerem à memória o universo dos videojogos, um registo visual tornado comum pela era digital – confirmam um tempo das tecnologias de informação e comunicação capazes de reconfigurar políticas de visualidade. A possibilidade de uma visão panótica interfere necessariamente na difícil perceção de segurança. Como sugere David Pinder ao refletir sobre as políticas e a poética do ato de caminhar: “Para além de o deslize para as sombras se ter tornado um desafio significativo, o desejo de o fazer gera suspeição.” (2011: 681. Trad. do autor). Referindo-se à proliferação de câmaras de vigilância em meios urbanos, a frase de Pinder revela um clima de persistente desconfiança promovido pela instalação de meios de controlo visual. In Order Not To Be Here é um filme de sombras, onde o espaço é rigorosamente vigiado e onde a suspeição recai sobre os intrusos, porque a segurança que o estilo de vida da classe socioeconómica representada promete está em crise.
Para Jason Coyle, escrevendo precisamente sobre este filme de Deborah Stratman, “A paisagem está repleta de pessoas que fogem da polícia. Cada lugar, por mais mundano que seja, é um potencial local de crime” (2013: 5. Trad. do autor). Pelas vozes desconexas que se ouvem nos momentos de perseguição – onde a fotogenia das noites iluminadas por candeeiros de rua e letreiros de néon é substituída pela monotonia das imagens aéreas, monocromáticas, e de baixa resolução de um suspeito em fuga – após um longo soar de sirene que ecoa pelos escuros espaços vazios, todos os lugares retratados são confirmados como, seguindo Coyle, tendo em potência ansiedade e insegurança.
A identidade formal do filme é, portanto, o produto da colisão entre a noite sofisticadamente fotografada e o desconcertante registo visual das imagens de vigilância hipercontrastadas, mas também entre os ruídos comuns e as frases mediadas por um aparelho de rádio, trechos de notícias e de conversas: “Ele está a fugir!” (Trad. do autor), ou “Ele era um vizinho tão bom… os vizinhos estão muito, muito chocados.” (Trad. do autor). Assim, In Order Not To Be Here cria uma fratura nas condições ideais de segurança individual, ao escolher um lugar que é expoente da tranquilidade e proteção de ameaças externas, colocando-o sob uma atmosfera de perigo iminente, como que a alvitrar um fosso no entendimento desse sistema complexo que Burke enuncia. A insegurança prevalece na contemporaneidade que o filme espelha.
- 5. In Order Not to Be Here, de Deborah Stratman. Pythagoras Films. [00:21:34]
- 6. In Order Not to Be Here, de Deborah Stratman. Pythagoras Films. [00:20:56]
Os dispositivos tecnológicos de monitorização entram em diálogo, ou, pelo menos, coexistem através da montagem, com o plano quotidiano da vida comum, das ruas e das casas, dos negócios e serviços [Fig. 5 e 6]. Assumindo o contexto que engloba (e, por vezes, condiciona) a forma e o discurso das manifestações artísticas, o filme surge no rescaldo dos atentados em Nova Iorque e no Pentágono a 11 de setembro de 2001, evento-rutura para o utópico do fim da história no imaginário geopolítico do Norte Global. Se essa nova realidade apresenta desafios não tradicionais para a segurança, motivados pela prevalência da globalização como paradigma (Bartley 2023: 45), In Order Not to Be Here – que, note-se, em momento algum menciona os ataques, podendo, até, ter sido concebido antes – é, para além de uma ferida sem previsão de cura, um objeto do seu tempo: um tempo de paranoia e suspeição, onde o outro é visto como um perigo em potência e onde os medos são disseminados pela comunicação social e, sobretudo, por estratégias de comunicação visual.
O rasto das circunstâncias do princípio do século XXI não desaparece por ação do tempo. À leitura contextual firmada na sua época de produção juntam-se mais de vinte anos de acontecimentos globais: uma pandemia, uma guerra na Europa motivada pela invasão de um território soberano, a intensificação do conflito na Palestina, com massacres noticiados diariamente, o crescimento das forças políticas de extrema-direita acentuado pela reeleição de Donald Trump em 2024, ou a colossal proliferação e total integração de dispositivos digitais de comunicação no dia-a-dia. A ideia de caos global surge ora como uma máscara usada por instituições bem estruturadas responsáveis pela monopolização do poder (Kusiak 2025: 37), ora como uma metáfora científica para o estado das coisas. Hoje, com o peso da história do jovem século, pensar questões de segurança através de um filme que as tem latentes é um exercício que promove também a descentralização e até descolonização do pensamento. Para Hönke & Müller a adoção de uma postura pós-colonialista no campo dos estudos de segurança,
produz seriamente novos entendimentos das dinâmicas de manutenção da paz, construção do Estado e intervenções anti-terror – com os quais os estudos de segurança tratam frequentemente como podendo haver uma divisão inocente entre os que intervêm e os que são alvo da intervenção.” (2012: 391. Trad. do autor)
Não sendo correto estabelecer uma relação de concordância entre o filme e qualquer corrente teórica, é possível assinalar o gesto de desvio que In Order Not To Be Here apresenta. A modalidade poética do documentário que o filme de Deborah Stratman enuncia poderá ser uma ferramenta para contestar a instaurada dicotomia nós/eles do pós-11 de setembro de 2001, procurando os tais novos entendimentos através das práticas artísticas alternativas. O plano de uma casa onde o interior está em chamas interrompe os créditos finais. No fim, o fogo já está descontrolado e do lado de fora. Stratman fecha o seu filme com um olhar fatalista, talvez presciente, sobre o mundo.
Notas
[1] Fragmento de um entretítulo que preenche o ecrã após a cena inicial, onde se lê “IT IS NOT NECESSARY TO BE SOMEPLACE ELSE IN ORDER NOT TO BE HERE” (“não é necessário estar noutro lugar para não (se) estar aqui”) [00:03:15 – 00:03:25]. Trad. do autor.
[2] Note-se o desdobramento do vocábulo, em inglês, em security (conotada com sistemas políticos de exerção de poder ou garantia de soberania, parte do léxico de crime e violência) e safety (mais próximo da preservação individual em contexto doméstico ou quotidiano; a minimização de riscos e cadeias de prevenção).
Referências
Applebaum, Anne (2025), “The End of the Postwar World”, The Atlantic, 20 de fevereiro. URL: https://www.theatlantic.com/international/archive/2025/02/trump-ukraine-postwar-world/681745/. Acedido a 4 de março de 2025.
Barkawi, Tarak and Laffey, Mark (2006), “The Postcolonial Moment in Security Studies”, Review of International Studies, 32(2), pp.329–352. URL: https://www.jstor.org/stable/40072141.
Bartley, Adam (2023), “Traditional Approaches and Security: Rethinking Power and Uncertainty” in Aiden Warren (ed.), Global Security in an Age of Crisis, Edimburgo: Edinburgh University Press, pp. 45–61.
Burke, Anthony (2006), Beyond Security, Ethics and Violence War against the Other, Londres e Nova Iorque: Routledge.
Coyle, Jason (2013), “Crime Scenes in Suburbia”, Senses of Cinema, número 68, setembro. URL: https://www.sensesofcinema.com/2013/feature-articles/crime-scenes-in-suburbia/ Acedido a 5 de março de 2025.
Fukuyama, Francis (1992), The End of History and the Last Man, Nova Iorque: Free Press.
Hönke, Jana & Müller, Markus-Michael (2012), “Governing (in)security in a postcolonial world: Transnational entanglements and the worldliness of ‘local’ practice”, Security Dialogue, 43(5), pp.383–401. Doi: https://doi.org/10.1177/0967010612458337
Kusiak, Joanna. “(Global) Chaos”, Anti-Atlas: Critical Area Studies from the East of the West, edited by Tim Beasley-Murray et al., UCL Press, 2025, pp. 35–38. JSTOR: http://www.jstor.org/stable/jj.17102166.8.
Nichols, Bill (2001), Introduction to Documentary, Bloomington e Indianapolis, Indiana University Press.
Phipps, Peter (2023), “Postcolonialism and Security: Fractured Empires”, in Aiden Warren (ed.), Global Security in an Age of Crisis, Edimburgo: Edinburgh University Press, pp. 130–151.
Pinder, David (2011), “Errant Paths: The Poetics and Politics of Walking”, Environment Planning D: Society and Space, 29(4),pp.672–692. Doi: https://doi.org/10.1068/d10808
Rachman, Gideon (2025), “Trump wants a world safe for autocracy”, Financial Times, 24 de fevereiro. URL: https://www.ft.com/content/452d7f83-fcce-424a-9d6d-4493b0112ec8. Acedido a 4 de março de 2025.
Stratman, Deborah (2002), In Order Not To Be Here, EUA: Pythagoras Films.