Literaturas mais-que-humanas: para escrever (n)o Antropoceno

Na última década, talvez à luz da crescente incerteza que tem ditado os modelos contemporâneos de gestão de risco e transformado irremediavelmente um senso coletivo de futuro possível, o “especulativo” aparece como uma poderosa rubrica multidisciplinar. Da financeirização e digitalização do planeta ao pensamento ecológico visionário, passando pelos novos materialismos, o pós-humanismo e a corrida ao algoritmo, uma espécie de devir-especulativo parece estar em curso, confrontando as diferentes forças de formação e destruição de mundos. Movediço entre as ciências, as filosofias e as artes, é a multiplicidade e a versatilidade do conceito que o torna particularmente apelativo a autores e autoras como Isabelle Stengers, quando propõe a expressão “cosmologia especulativa” (2006) ou “empirismo especulativo” (2017), ao lado de Didier Debaise; Donna J. Haraway (2023), com a sua metodologia SF science fiction [ficção científica], speculative fabulation [fabulação especulativa], string figures [figuras de barbante], speculative feminism [feminismo especulativo], scientific fact [facto científico], so far [até agora]; ou mesmo Levi Bryant, Nick Srnicek e Graham Harman (2011), em defesa de um “realismo especulativo” na filosofia continental. 

Utilizado de forma fundamentalmente distinta nestas propostas teóricas, o especulativo informa, ainda assim, um gesto e uma metodologia de investigação comuns: o reconhecimento da natureza construtiva de um processo que resiste a questões de pesquisa pré-definidas. Em outras palavras, especular significa abrir-se à possibilidade da surpresa, “maximizando a fricção com a experiência, recusando o direito que todo o conhecimento especializado concede a si mesmo: o de explicar, enquanto elimina tudo que não pode ser enquadrado nessa mesma explicação” (Debaise & Stengers 2017, 16, tradução livre). Daqui não se deduz, contudo, que o esforço especulativo é aquele de projetar abstrações, tantas quanto possíveis. Há, como sublinha a dupla belga, uma relação de atrito com a experiência, que cria e impõe os seus constrangimentos, convidando-nos “a explorar os modos de existência no seu próprio contexto, no seu modo de sucesso, nas suas exigências imanentes” (Debaise & Stengers 2017, 15, tradução livre). Cresce a intuição de que se deve descentralizar o humano da filosofia, cultivando um novo olhar que legitime o poder agencial, as trajetórias e as inquietações postas por outras entidades participantes do mundo. Ao reivindicar uma atenção renovada à pluralidade e à especificidade desses seres e acontecimentos – penso, aqui, também nas “artes de notar” de outra grande especuladora, Anna Lowenhaupt Tsing (2022) –, a exigência especulativa situa-se, seguindo Debaise e Stengers,  na tarefa de produzir importâncias: identificar e responder ao possível que insiste em se realizar.

 

Imagem 1 – Ilustração de Nasser Mufti, representativa da prática especulativa multiespécies de Donna J. Haraway

 

As afinidades entre a literatura e a prática especulativa são evidentes – inatas, até. Primeiro, porque a primeira tece e percorre uma trama possível, sempre em alguma medida inventada – mesmo quando não se trata de um género ficcional – e em conjugação com todos os outros possíveis deixados aquém, além ou através da narrativa. Talvez seja esta dimensão inerentemente especulativa do “Texto” que Roland Barthes está a assinalar quando declara que o mesmo “pratica o recuo infinito do significado, […] é dilatório, […] é plural” (2004, 69-70), atribuindo-lhe o jogo como a sua modalidade própria, uma relação lúdica e irredutível por princípio. Ou, ainda, Milan Kundera (2016, 45), quando alega que “o romance não examina a realidade, mas sim a existência. A existência não é o que aconteceu, […] é o campo das possibilidades humanas” – e mais, acenando à responsabilidade (response-ability) do especulativo para com a experiência de que falam Debaise e Stengers (2017), “[o] romance que não descobre algo até então desconhecido da existência é imoral” (Kundera 2016,  11). 

Depois, com Alexandre Nodari (2015), outra atração imperturbável entre ambas se torna clara: o sujeito que se implica no literário ou no especulativo é aquele capaz de objetivar-se indefinidamente, isto é, transformar-se ontologicamente na medida em que varia a própria posição “relacional em um conjunto de eus possíveis (objetos) – mudando tal conjunto, modifica-se o eu atual” (Nodari 2015, 79). No movimento para o possível de outros mundos, o gesto especulativo pressupõe, portanto, o movimento para o possível de outras subjetividades. Subjetividades, inclusive, (ainda) inexistentes, experimentais ou simplesmente tão longínquas quanto as margens difusas da imaginação. Como declara, convicta, Elizabeth Costello, protagonista da obra do mesmo nome de J.M. Coetzee (1999), uma imaginação simpatizante – simpoiética, se quisermos apontar para o léxico de Haraway (2023) – não conhece quaisquer fronteiras: “[s]e sou capaz de pensar a existência de um ser que nunca existiu, sou capaz de pensar a existência de um morcego ou de um chimpanzé ou de uma ostra, de qualquer ser que participe comigo do substrato da vida” (Coetzee 1999, 43). Assim, vou aprendendo a não temer as denúncias (ou confissões) de um antropocentrismo teimoso, preferindo a questão “muito mais interessante da metamorfose […] [e da] exploração da natureza multifacetada do que significa ser ‘animado’” (Latour 2021, 13, ênfase adicionada). Trocar de forma é engajar no especulativo enquanto nos treinamos a “ver fielmente do ponto de vista do outro” (Haraway 1995, 22, ênfases adicionadas). É esta a principal premissa daquilo que aqui identifico como “literaturas mais-que-humanas” [1]

Três são os seus textos fundacionais, ainda que estes tenham expressamente herdado as suas bases de vários outros exímios especuladores: “A autora das sementes de acácia e outras passagens da revista da Associação de Therolinguística”, de Ursula K. Le Guin (2021) – ensaio originalmente publicado em 1974 e que inaugura, em tom quase profético, o campo das linguísticas expandidas –, “Estórias de Camille: As crias do composto”, de Donna J. Haraway (2023) – conto que nos lança ao universo das coletividades simbióticas, feitoras intencionais de parentescos interespécies –, e Autobiografia de um polvo e outras narrativas de antecipação, de Vinciane Despret (2022) – livro que combina elementos de ambos os seus predecessores para compor um mundo ainda mais visionário e subversivo, no qual ambas as ciências thero (a therolinguística, a theroarquitetura e outros saberes integrados, como a cosmofonia), do grego thèr (θήρ), “fera”, e as sim-sociedades (como as de Camilles, imaginadas por Haraway) já são modos de pensar e de viver estabelecidos.

Neste último, somos encorajados a acompanhar uma série de documentos de uma história futura imaginada – e de um presente resolutamente “comprovado” –, atas e trocas de e-mails entre investigadores e membros de associações ligadas às temáticas thero. No primeiro capítulo, conhecemos a poesia tremológica das aranhas, hábeis transmissoras de mensagens oraculares e arquivistas pioneiras – suas teias teriam merecido, inclusive, reconhecimento como Património Mundial da Unesco. Na segunda seção do livro, são os vombates que nos surpreendem com a sua aptidão para o literário e para o religioso, através dos seus muros construídos com fezes “misteriosamente” – com efeito, voluntária e criativamente – cúbicas. No capítulo final, quando enfim chega a vez de desvendarmos a carta autobiográfica de um polvo, aprendemos a lê-la no mesmo passo da personagem narradora: a therolinguista Sarah Buono, enviada a Nápoles para uma missão de interpretação de tal mensagem junto à comunidade dos Ulisses – grupo que, após diversas gerações de uma privilegiada convivência com polvos comuns (Octopus vulgaris), até que esses se vissem ameaçados pela pesca intensiva e a toxicidade das águas, passaram a crescer em simbiose com a espécie e a desenvolver familiaridades sensoriais e linguísticas com o seu par não-humano. É nesse momento que Despret se permite o maior grau de invenção e brincadeira, especulando sobre o que seria uma gramática e uma poética tentaculares, improvisadas e fugidias. Mais, até, especulando sobre o árduo e importante esforço de tradução e significação deste texto efêmero, composto por aforismos curtos e violentos – escrita que reflete um animal com medo, raiva e em luta por sobrevivência. 

 

Imagem 2 – Ilustração histórica de um polvo comum (Octopus vulgaris). Gravura de Pierre Denys de Montfort em “Histoire Naturelle Generale et Particuliere des Mollusques”, 1801-1802. Fotografia de Paul D. Stewart

 

Num sentido, Despret está a esticar as próprias noções de linguagem ou literatura, pensadas essencialmente como vestígios produzidos e produtivos, algo que Le Guin já havia feito quando se aventurou a interpretar as mensagens panfletárias de uma colónia de formigas ativistas, construídas “com a secreção da glândula de toque em sementes de acácia degerminadas, colocadas em fileiras no final de um túnel […]” (2021, para. 1). Uma das mais belas teses sustentadas pela autora é a de que “[t]odos contam, no passado, no presente e no futuro, uns aos outros e uns sobre os outros. Logo, cada narrativa constitui uma proposição, uma aposta sobre o futuro, uma isca para a existência, quiçá para as metamorfoses” (Despret 2022, 57). Num outro sentido, porém, não deixa de se voltar às sintaxes humanas para desconstruí-las a partir de dentro, propondo uma correspondência experimental capaz de nos aproximar, especulativamente, destas outras – tão outras – maneiras de agir e de intervir no mundo. É por isso que, mais do que um novo narrador – a literatura já está repleta de brilhantes exemplos de bichos-locutores e subjetividades animais –, importa conjurar um novo narrar. Este é o principal aspeto distintivo das literaturas mais-que-humanas: cogitam, de facto, uma nova forma de linguagem para dar conta de uma nova perspetiva. 

O chamado especulativo em prol de narrativas e personagens inéditas é, sem dúvida, uma das urgências despertas pelo Antropoceno. Desde a sua popularização no início do milénio, o conceito não cessa de expor diferentes discursos em disputa, solicitando a revisão de muitas categorias basilares para o pensamento ocidental – como “natureza” e “cultura” –, ao mesmo tempo que se estilhaça por muitos outros conceitos alternativos – Antropobsceno, Chthuluceno, Capitaloceno, Plantationceno e Eremoceno são apenas alguns dos vários cenos em circulação e prova. Mas se é o anthropos que parece estar em foco no debate sobre uma possível nova época geológica estreada pela desmesura humana, é ele mesmo que também anuncia a insuficiência da ficção que contém e produz: a de um “agente universalizado capaz de agir como uma única humanidade” (Latour 2020,  383). Assim, com a desmobilização do Humano, com H maiúsculo, o que se verifica é um “aumento vertiginoso no número de mundos” (Fausto 2013, 168) com os quais nos vemos compelidos a conviver. Agora, os protagonistas da história podem – e devem – “não ser só lobos e ovelhas, mas tanto os atuns como também o CO2, os níveis do mar, os nódulos das plantas ou as algas” (Latour como citado por Fausto 2013, 169). Não haverá sobrevivência possível sem as suas agências. Não poderemos aprender a viver e morrer bem no deserto do real, nas ruínas do capitalismo, sem imaginação. Pois é o gesto especulativo que, diante de um Antropoceno insustentável e inevitável, nos pode ainda revelar “a contingência ecológica do mundo atual (enquanto única forma de habitar o cosmos)” (Nodari 2015, 83), apontando “para a única alternativa realista: a demanda do impossível. Não só um outro mundo é possível – como também um outro possível é mundo” (Nodari 2015, 83). Com as literaturas mais-que-humanas, talvez, possamos torná-los mais próximos, mais viáveis, escrevendo, enfim, um Antropoceno plural. 

Notas

[1] Nas duas apresentações orais que antecederam – e, sem dúvida, enriqueceram – a escrita deste ensaio, fui atenciosamente confrontada sobre a eleição deste termo. De facto, o género literário que aqui tenciono definir como “mais-que-humano” poderia muito bem ser nomeado “outro-que-humano”, “não-humano”, “multiespécies”, ou, até, “sim-literaturas”, num tributo mais explícito às estórias fabuladas de Donna J. Haraway. Não obstante, a minha deliberação em favor da expressão escolhida relaciona-se com um esforço de sustentar a importância da mediação humana nestes textos e narrativas. A designação “sim-literaturas” também me parece apropriada para tal intento – e possivelmente aparecerá em trabalhos posteriores –, mas, neste momento, soou-me demasiadamente semelhante ao grupo das “zooliteraturas”, do qual interessa-me demarcar uma diferenciação.


Referências bibliográficas

Barthes, Roland. 2004. “Da obra ao texto”. In: Barthes, Roland. O rumor da língua. Editora Martins Fontes, pp. 65-75.
Bryant, Levi; Srnicek, Nick; Harman, Graham (Eds.). 2011. The speculative turn: Continental materialism and realism. re.press.
Coetzee, John M. 1999. Elizabeth Costello: Oito palestras. Companhia das Letras.
Debaise, Didier; Stengers, Isabelle. 2017. “The Insistence of Possibles: Towards a Speculative Pragmatism”. In: Parse Speculation, n. 7, pp. 12-19.
Despret, Vinciane. 2022. Autobiografia de um polvo e outras narrativas de antecipação. Bazar do Tempo.
Fausto, Juliana. 2013. “Terranos e poetas: o ‘povo de Gaia’ como ‘povo que falta’”. In: revista landa, v. 2, n. 1, pp. 165-181.
Haraway, Donna J. 1995. “Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial”. In: cadernos pagu, v. 5, pp. 7-41.
Haraway, Donna J. 2023. Ficar com o problema: fazer parentes no Chthuluceno. n-1 edições.
Harman, Graham. 2018. Object-Oriented Ontology. A New Theory of Everything. Penguin Books.
Kundera, Milan. 2016. A arte do romance. Companhia das Letras.
Latour, Bruno. 2020. Diante de Gaia – Oito conferências sobre a natureza no Antropoceno. Ubu Editora.
Latour, Bruno. 2021. “As fábulas científicas de uma La Fontaine empírica”. In: Despret, Vinciane. O que diriam os animais?. Ubu Editora, pp. 9-19.
Le Guin, Ursula K. 2021. A autora das sementes de acácia e outros extratos da Revista da Associação de Therolinguística. Publicação realizada em ocasião da 7.ª edição do Festival Kino Beat.
Nodari, Alexandre. 2015. “A literatura como antropologia especulativa”. In: Revista Da Anpoll, v. 1, n. 38, pp. 75–85.
Stengers, Isabelle. 2006. Whitehead and science: From philosophy of nature to speculative cosmology. McGill University.
Tsing, Anna Lowenhaupt. 2022. O cogumelo no fim do mundo: sobre a possibilidade de vida nas ruínas do capitalismo. n-1 edições.