Ativismo e antirracismo na pós-colonialidade: a vivência e a voz-potência de Ana Paula Costa, presidente da Casa do Brasil de Lisboa

Esta entrevista, realizada em fevereiro de 2024, em Lisboa, com a então vice-presidente da Casa do Brasil de Lisboa (CBL), Ana Paula Costa, que assumiu a presidência da CBL em janeiro de 2025, como tem como objetivo (re)contar a história de pessoas negras que vivem em Portugal, registrando narrativas de mulheres negras sobre suas atividades de ativismo, vida pessoal e atuação profissional, a partir dessa corporalidade racializada e genderizada. 

A CBL é uma associação de imigrantes sem fins lucrativos, fundada em 1992 por brasileiros/as residentes em Portugal e portugueses/as amigos/as do Brasil. Aberta a todas as nacionalidades, a associação assume um papel fundamental de ativismo e reivindicação de políticas e práticas igualitárias para as comunidades imigrantes em Portugal. Além do trabalho de intervenção social e de ativismo, promove a valorização da multicultural idade, da interculturalidade e a integração por meio da cultura. 

No atual cenário de avanço da extrema-direita na Europa e no mundo e de fortalecimento de discursos xenófobos junto à opinião pública, (re)contar a história da presença negra em Portugal, a partir das vozes potentes de ativistas que têm desempenhado um importante papel no debate antirracista e anticolonialista, busca promover um espaço de reflexão sobre as problemáticas que envolvem a herança do pensamento colonialista. 

O relatório Experiências de Discriminação na Imigração em Portugal, lançado em dezembro de 2020 pela CBL, mostrou que 86% dos imigrantes em Portugal já sofreram discriminação por conta de sua nacionalidade e os estereótipos racistas ligados a ela. Entre 2017 e 2021, as denúncias de xenofobia no país cresceram 505%, segundo balanço da Comissão para a Igualdade e contra a Discriminação Racial. 

Nesta perspectiva, a nova presidente da Casa do Brasil de Lisboa narra nesta entrevista suas vivências enquanto mulher negra brasileira vivendo em Portugal, tendo o ativismo e o antirracismo na pós-colonialidade, temas presentes em sua atuação profissional e política ao longo de sua carreira, como o fio condutor da sua narrativa. Ana Paula Costa relata a trajetória profissional que a levou até a vice-presidência da CBL, cargo ocupado por ela na data da realização da entrevista, o trabalho que desenvolve na defesa dos direitos das comunidades imigrantes e os desafios dessa jornada enquanto corpo político de enunciação contra a violência colonial. 

Simone Lima Azevedo: Quais foram as circunstâncias que te fizeram emigrar para Portugal?

Ana Paula Costa: Eu já tinha vontade de ter uma experiência acadêmica fora do Brasil. E quando eu fiz faculdade, ainda era naquela fase que a licenciatura e o bacharelado eram separados, então você se formava primeiro em um e depois se quisesse fazer o outro você fazia o que faltava de disciplinas. Então eu me formei na licenciatura, continuei no bacharelado e decidi que esse período do bacharelado eu iria fazer fora, porque tinha como fazer as matérias através do acordo de mobilidade, então eu optei pela Universidade de Coimbra, aqui em Portugal, que era onde tinha as matérias mais parecidas com as que eu precisava fazer no Brasil. 

SLA: Qual foi o ano?  

APC: Foi em 2016. Eu cursava Ciências Sociais na Universidade Federal de Viçosa, em Minas Gerais, e desde então eu fiquei em Portugal. Na época, eu não tinha essa expectativa de ficar aqui, era fazer as matérias e voltar para o Brasil. Só que eu sempre tive o objetivo de fazer o mestrado e o doutoramento e estava na dúvida de qual área que eu ia seguir. Eu sabia que eu ia para a Ciência Política, porque já estava mais ou menos orientada desde a graduação, mas eu tinha dúvida se eu ia para a Política Pública ou se eu ia para a Teoria Política e para qual universidade eu iria. Por uma questão de escolha de carreira, eu decidi ir para a Política Pública e aqui tinha o mestrado em Ciência Política e Relações Internacionais, então eu acabei vindo para Lisboa fazer esse mestrado. Achei que poderia ser mais compatível com aquilo que eu queria fazer naquele momento. No Brasil tinha acabado por estar mais inteirada nas áreas de Teoria Política, já sabia qual era o mestrado que eu queria fazer e qual era a universidade, só que foi uma questão de pensar em qual é o melhor caminho profissional. Gostava muito de Teoria Política, mas sabia que eu não queria ficar inteiramente dedicada 100% à carreira acadêmica e na Teoria Política, basicamente, a dedicação e a oportunidade de trabalho é exclusivamente na carreira acadêmica. Tem pouquíssima possibilidade de fazer um percurso profissional fora da academia. Enquanto as Políticas Públicas, que é uma área que adoro também, dá para seguir a carreira acadêmica, mas o mercado de trabalho é muito mais abrangente. Então foi mesmo uma questão de pensar o futuro profissional. 

SLA:  Você viveu em Coimbra e depois em Lisboa e isso já faz quase dez anos. Como é ser uma mulher negra vivendo em Portugal todo esse tempo?  

APC: É interessante… As experiências de racismo que mais me marcaram e que me despertaram para eu me entender no mundo enquanto mulher negra aconteceram no Brasil, não em Portugal. Eu já tinha vivenciado a experiência de ser mulher negra no Brasil, então talvez essa ideia do que é ser uma mulher negra no mundo e as experiências a partir disso já estava bem anterior à vinda para Portugal. Eu dos anos 1990 e pela minha experiência, eu acho que o racismo no Brasil, pelo menos nessa época, é muito mais duro. Aqui em Portugal, o racismo, apesar da minha experiência não ter sido tão dura, é mais complexo porque é muito sutil. Há uma clara diferenciação entre o Brasil, enquanto colônia, e as colônias de África. Eu sou uma mulher negra, mas eu não tenho a pele retinta, e dependendo dos países de África, as mulheres negras têm uma pele muito mais retinta. E vivendo aqui, eu entendi o que significava ser mulher brasileira negra e essa diferenciação que me faziam com as outras mulheres negras vindas da África, porque tem esse simbolismo. Eu sou o imaginário que eles têm da “mulata” brasileira. Basicamente, é isso. Então, a experiência do racismo aqui foi muito mais sutil por causa dessa diferenciação… “olha, você não é tão negra assim. Você é brasileira”. “Pretos são os africanos”. Também é muito interessante que o Brasil foi a colônia que deu certo e Cabo Verde é a ex-colônia que Portugal considera que deu um pouquinho certo. E houve ali uma mistura racial muito maior, porque foi um país criado, do que houve em Angola, na Guiné-Bissau, etc. Então, eles acham que essa origem é mais bonita, é um pouco melhor, porque também são de pele mais clara. Então, muitas vezes, eu também sou confundida com cabo-verdianos e me perguntam “você é cabo-verdiana?”, “ahh, é tão bonita, deve ser cabo-verdiana”. Então, eu vivi a minha presença enquanto mulher negra com essas condicionalidades. Existe um imaginário sobre o que é o Brasil enquanto ex-colônia, e eu acho que isso não está desvinculado do imaginário que tem de África. E como a sociedade portuguesa, por ainda ter imensos problemas de falta de reconhecimento do racismo e alguma negação desse período colonial, me coloca enquanto mulher brasileira negra como a “mulata” do Carnaval. Eu nunca vivenciei em Portugal nenhum tipo de racismo daquele que a gente chama de recreativo no Brasil. Eu vivenciei no Brasil e tenho consciência que é por conta dessa diferenciação entre a estrutura racial. Nessa pirâmide, eu ainda consigo ter alguma passabilidade em comparação às mulheres africanas de uma forma geral. Então eu nunca sofri, mas, por outro lado, o racismo que eu sinto é esse racismo muito mais da sexualização do meu corpo, de me colocar nesse lugar da mulher exótica, mesmo miscigenada, e o que isso significa, entendendo que havia ali uma subalternização que era muito sutil. Por isso, pra mim, na minha experiência, o racismo no Brasil foi mais duro do que aqui em Portugal, porque foi agressivo, foi violento, escancaradamente. Aqui essa agressividade, essa violência, é mais sutil. Então é muito complexo, porque é difícil você apontar para o agressor que esse é um episódio racista, mas os espaços são muito bem divididos e a forma de tratamento é diferente. É uma coisa que você só percebe porque você vivencia. Não é uma coisa fácil de externalizar e nem de as pessoas ao redor entenderem. 

SLA: Que tipo de situações duras e violentas você viveu no Brasil?  

APC: Eu lembro da minha integração na escola, até porque eu venho de uma classe social que conseguiu me colocar na escola particular, então eu sempre fui a única ou uma das únicas. E eu vivenciei esse racismo na escola, dos colegas, até da parte do tratamento dos professores, também havia essa diferenciação. E isso no período da infância marca muito. Essa foi a fase mais violenta do racismo que eu vivenciei no Brasil, desde a infância até a adolescência. Injúrias raciais, piadas, exclusão… Isso eu tudo vivenciei. O alvo das piadas era eu, a que não era considerada desejável era eu. Para uma criança isso marca completamente depois todas as experiências. Vivenciar isso na infância e depois ser sexualizada na vida adulta em Portugal… É violento, mas é uma outra forma de violência. Depois quando a gente vai adultecendo, a gente vai resolvendo essas questões e criando outros mecanismos. E também a discussão racial no Brasil, dos anos 1990 até quando eu saí de lá, que era 2016, avançou-se imenso. Até os anos 90, tudo era possível, tudo era permitido. Hoje tudo isso acontece hoje, obviamente, mas essas questões são pautadas. Naquela época sequer era pautado, sequer era questionado. Hoje a gente consegue proteger melhor as nossas crianças.   

SLA: Em relação a Portugal, você acredita que a ocupação de espaços de poder e a leitura social de que o corpo negro é sempre um corpo estrangeiro são as formas mais duras de racismo? 

APC: Digo menos dura na minha experiência, porque na de outras pessoas eu acho que não é menos dura. De uma forma geral, é duro o racismo que faz a divisão territorial. As pessoas negras africanas estão na periferia. Se você acorda 5 horas da manhã para trabalhar, são elas que estão abrindo a cidade. Há essa divisão muito clara. Nos espaços de poder e institucionais, o tratamento e a divisão evidenciam muito bem que aquela estrutura é racista. Há um estereótipo relacionado à inteligência e à capacidade intelectual das pessoas negras. Nunca me foi questionada a minha capacidade intelectual na faculdade, mas eu lembro, por exemplo, que eu sempre escrevi em português do Brasil e pronto, ok, sempre tive excelentes notas na faculdade aqui em Portugal, só que no ano em que eu comecei a fazer o meu doutoramento, por uma questão meramente prática, porque eu tenho três orientadores de nacionalidades diferentes, optei por escrever em português de Portugal, que era a língua que eles aprenderam. E aí eu lembro que enquanto fazia o mestrado, o meu coorientador disse que eu tinha muitos erros. E eu não entendia que erros eram esses, porque não estava nada escrito errado. Aí passou esse período e comecei a escrever em português de Portugal e ele veio me elogiar “nossa, você escreve muito bem”. Aqui existe essa questão do preconceito linguístico que com certeza tem uma estrutura racial. Ele não ia falar para uma pessoa branca francesa que estava aprendendo a escrever em português e comete um erro mesmo que a pessoa cometia erro com a facilidade que ele me falou. E sei disso porque nós tínhamos outros colegas de outras nacionalidades. Ter que ficar se validando constantemente… Hoje em dia não mais, mas quando eu comecei na academia e em outros lugares, institucionalmente falando, era-me necessário estar me validando o tempo inteiro. “Ah mas fez a graduação no Brasil, um país do sub global, um país do terceiro mundo, e agora aqui consegue produzir algum pensamento intelectual”. Na academia, talvez um dos motivos que eu não vivenciei tanto o questionamento por esses estereótipos, é que não estudo temas raciais. Estudo processos de implementação de políticas públicas e eu sei que isso, de certa forma, me preservou de sofrer mais com o racismo intelectual, porque existe uma imensa resistência das pessoas estudarem esses temas aqui em Portugal, e na experiência dos meus colegas negros e brancos também, mas foi muito pior para os negros que estudam esses temas, descamba totalmente. É muito mais questionável o objeto de estudo, é questionável por que você quer estudar isso, é questionável a capacidade mesmo intelectual, o método. Pelo meu objeto de estudo, eu acabei não sofrendo tudo isso, mas eu tenho completa noção que se um dia eu quiser trabalhar esse tema na academia, a experiência vai ser outra. Vou ser muito mais questionada e invalidada por estar trabalhando esse tema. E há questões que se cruzam, o fato de eu ser mulher e de ser uma mulher jovem. Para o meu trabalho de ativismo em outros espaços, a questão racial foi e ainda é muito difícil de pautar para tentar criar melhores práticas de igualdade nos espaços, por exemplo. A pessoa pode não ser o racista que fala injúrias raciais, mas a forma como organiza o trabalho pode reproduzir estruturas racistas. Então tive dificuldade de pautar como é que nós podemos mudar isso dentro das instituições, com o discurso, com o letramento. Nos outros espaços institucionais de poder, até pelo trabalho que faço, é muito difícil, por mais reflexão e consciência que haja, pautar a necessidade de justiça racial. Lembro de uma vez que fomos fazer uma conferência sobre racismo, a maioria das pessoas eram negras e a gente ouviu coisas do tipo “agora esse lugar é frequentado por esse tipo de pessoas”.   

SLA: Como você entrou no ativismo e se tornou vice-presidente da Casa do Brasil de Lisboa?  

APC: Na minha tese de mestrado estudei a implementação da lei de estrangeiros aqui de Portugal, e vim para a Casa do Brasil fazer a minha pesquisa. Entrevistava as pessoas e passava um tempo aqui. Depois eu me voluntariei para trabalhar, me contrataram como funcionária, trabalhei em um projeto, depois comecei a dar consultoria de projetos e depois entrei para a direção da Casa do Brasil. Passados dois anos na direção, no cargo de secretária, se não me engano, passei para a vice-presidência no mandato seguinte. É um caminho normal que se faz numa organização sem fins lucrativos.  

SLA:  Foi através da sua tese de mestrado, mas você já atuava como ativista antes?  

APC: Já. No Brasil eu tinha trabalhado numa ONG em Viçosa. Fui da direção dessa organização que se chamava Casa Cultural do Morro e que trabalhava na periferia com o foco na educação de crianças. A organização estava dentro de uma comunidade, tinha outros projetos, projetos de integração e de reivindicação por questões ali daquele território, mas o carro-chefe era a educação das crianças.  

SLA: Apesar de você não trabalhar a temática racial na academia, ela te atravessa em outros espaços da tua vida.   

APC: Sempre me atravessou no meu ativismo. Desde sempre mesmo. Eu não trabalhei essas questões na academia por uma questão de escolha de trabalho mesmo. 

SLA: Qual o seu sentimento de hoje atuar na Casa do Brasil de Lisboa com a temática da defesa de direitos dos imigrantes?  

APC: Eu me sinto muito gratificada por poder fazer um trabalho que de alguma forma, no micro, consegue ter alguma transformação. Muitas vezes a gente acha que uma transformação vai acontecer ao mesmo tempo e de uma forma muito grande, mas acho que silenciosamente conseguir pautar alguns temas e até transformar as práticas é um grande trabalho, porque isso vai se reproduzindo na pequena escala. Não posso mudar a estrutura de um governo porque não estou lá e nem quero estar, mas posso mudar uma pequena estrutura ao meu redor e é isso que vai fazendo a transformação, porque se for depender do poder se reorganizar isso não vai acontecer. Mas se dentro dos espaços que eu ocupo eu conseguir transformar, isso que é importante. Acho que a minha presença possibilitou uma reflexão e uma transformação na própria organização da Casa, da estrutura, dos funcionários, dos projetos, de colocar o antirracismo enquanto uma prática institucional que vai atravessar todo o nosso trabalho, desde quando você contrata uma pessoa até quando você escreve um projeto, até a prática de como você vai atender aqui no gabinete. Acho que houve essa clara mudança e também da Casa se aproximar da luta antirracista, de estar junto da luta antirracista, não separando essa questão da imigração. Muitas vezes o que acontece aqui em Portugal, sobretudo, é que o racismo é uma luta separada, com as pessoas negras, basicamente pautada por África, e separado as questões da imigração. Então aqui a tentativa é de cruzar essas questões que são diferentes, mas que têm pontos que se cruzam e nesses pontos que se cruzam a gente tem que estar junto. Trabalhar as questões do racismo dentro da imigração e as questões da imigração dentro do racismo. 

SLA: Quais são os projetos que a Casa do Brasil tem desenvolvido nesse sentido?  

APC: Agora nós não temos nenhum projeto, porque todo o nosso financiamento se encerrou em dezembro de 2023. Até então, nós tínhamos o gabinete de orientação e encaminhamento, que continua a funcionar, mas de forma voluntária, porque esse ano ainda não temos financiamento para o ano. Temos também o grupo acolhida, que continua a acontecer de forma voluntária, que é um grupo de ajuda mútua; o migrante participa em Sintra, que era um projeto de integração e de informação em Sintra. Foram oito projetos no ano passado e esse ano nós já concorremos, ganhamos candidatura, mas o projeto ainda não avançou, porque acabou de sair o resultado. Mas a Casa do Brasil se divide entre a intervenção social, o ativismo e a cultura, então a intervenção social são todos esses projetos de intervenção, e o carro-chefe é o gabinete de orientação e encaminhamento que atende as pessoas imigrantes e informa, encaminha e orienta sobre tudo relacionado à imigração e à vida em Portugal, desde dúvidas sobre habitação até casos de discriminação racial, sobre o que fazer. A cultura que é, tanto promover a cultura brasileira aqui em Portugal, como trabalhar tudo relacionado à cultura portuguesa e tudo que nos é interessante. Nessa parte nós temos as aulas de dança, temos o quinta da Casa, que tem atividades culturais, apoiamos produtores brasileiros e de outras nacionalidades, nos filmes, no teatro, enfim… Isso tudo é a parte da cultura. E a parte do ativismo e do advoca-se é sempre reivindicar por políticas de imigração igualitárias, justas, é estar em diálogo com o governo do Brasil e o governo de Portugal, a respeito da situação dos brasileiros em Portugal, a respeito das políticas de integração e de imigração, e também no apoio aos movimentos antirracistas, feministas, LGBT, além de sempre nos posicionar quando acontece algum episódio.  

SLA: É uma instituição atuante que tem crescido…  

APC: Sim, a Casa do Brasil tem 32 anos. É um trabalho que vem cada vez mais se consolidando e entendendo o espírito do tempo, no sentido de, se no início começou com essa frente da imigração brasileira, hoje a gente vê que as discussões avançaram, se desenvolveram, e a gente tem que entender que a imigração precisa ser analisada a partir de uma perspectiva interseccional, porque ainda que seja um imigrante brasileiro, é um imigrante brasileiro negro, de classe social X, que tem marcadores. Então pensar a imigração dessa forma onde se cruzam essas questões, identidades e diversos marcadores é um movimento que vem se consolidando. Esse entendimento que não dá para olhar para a imigração como uma coisa isolada e como um fenômeno que não tem outros fatores, como a questão da desigualdade e da pobreza, vem se consolidando. E a Casa do Brasil conseguiu se profissionalizar para fazer os projetos, para conseguir atender mais pessoas, para conseguir ter mais atividades na casa. Isso tudo demanda profissionalismo, porque precisa ter uma equipe que desenvolver o projeto. Temos muitos voluntários, obviamente, mas a pessoa trabalha e escreve um projeto, então ela precisa ser remunerada por aquele trabalho. Essa lógica do associativismo e do voluntarismo também mudou um pouco. A gente quer ter voluntário e é importante, pelo espírito da solidariedade, mas esse voluntário é um profissional, e a gente não quer que aquele profissional passe a vida trabalhando no corpo de voluntários se ele está aqui fazendo um trabalho. A nossa comunidade é a maior, tem crescido cada vez mais, e eu acho que nós somos bastante ouvidos, porque nos posicionamos e sempre reivindicamos e assim conseguimos nos consolidar aqui. É uma organização que tem uma história de trabalho.  

SLA: Você avalia que o trabalho da Casa do Brasil, assim como de outras associações que lutam por políticas de igualdade em Portugal, tem provocado mudanças sociais significativas?  

APC: Acho que tem provocado mudanças significativas sim em várias matérias, como por exemplo a legislativa, com as alterações da lei da nacionalidade. Isso foi uma luta do movimento negro em Portugal. Esses movimentos têm pautado temas e têm trazido mudanças, mas eu acho que essas questões sobre o racismo aqui não avançam tanto pelo tempo que tem de luta, porque são muitos anos de luta e são questões mínimas que conseguimos avançar e tivemos algumas vitórias. É uma grande vitória a lei da internacionalidade. Obviamente, é uma grande vitória ter uma lei de combate à discriminação racial, embora não seja criminalizado o racismo e essa seja uma grande reivindicação que não aconteceu e a gente nem vê na iminência de acontecer, pelo fato de haver uma negação do racismo em Portugal, porque para a gente falar de racismo em Portugal, obviamente nós estamos falando de estrutura de um passado colonial e trabalhar essas questões mexe muito com a identidade e com a ideia de nação que existe em Portugal. Portugal se agarra muito no seu passado colonial para construir essa identidade coletiva. Então há muita resistência para que haja o reconhecimento do racismo, porque se houver o reconhecimento, vai ter que mexer com esse passado, vai ter que entender que não foi o bom colonizador, vai ter que aceitar e reconhecer que o hino nacional e os monumentos que saúdam esse passado na verdade estão saudando uma violência. Isso é muito difícil de ser compreendido do ponto de vista subjetivo, porque as pessoas aprendem isso na escola, na família. É contado pra elas essa história de que Portugal é o bom colonizador e que não existe racismo, que é diferente dos Estados Unidos e do Brasil, porque aqui não há uma tensão racial. Essa ideia de nação é uma questão subjetiva e também uma questão coletiva. E é por isso que os movimentos sociais não conseguem tantas transformações. A luta sempre continua. A gente tem tido muito mais derrotas do que vitórias, porque a estrutura de poder está completamente organizada para não reconhecer o racismo e para ser racista. E não é só não reconhecer, é para reproduzir, e elas massacram. A maioria das pessoas que lutam tem trabalhos precários, são pessoas que estão nas periferias, são marginalizadas, são mal vistas na sociedade portuguesa, são excluídas, e elas estão lutando pelo básico. E é doloroso também. Por exemplo, a DJAAS luta há muito tempo para criar o memorial de homenagem às pessoas escravizadas. E com isso o tempo vai passando, as pessoas vão envelhecendo, vai se criando uma nova geração e os problemas são os mesmos. Não é porque o movimento social não tem força, não é porque o movimento está desorganizado. A gente tem muita força, mas entre nós. Isso não é disseminado na sociedade portuguesa a ponto de trazer uma grande transformação. Nós estamos juntos, nós estamos pensando, estamos pautando, mas ainda é muito entre nós, porque a falta do reconhecimento do racismo e a reprodução faz com que haja imensa uma resistência para trabalhar esses temas. Basta ver as perseguições quando a gente fala desse tema e agora o crescimento da extrema-direita. Então acho que é isso, eu faço essa avaliação. É tão ainda inicial trabalhar essas questões na sociedade portuguesa, porque é reproduzido a partir dessas estruturas de poder, sobretudo nas escolas na forma como ainda é contada essa história. O racismo é estrutural e estruturante. Está em toda a nossa estrutura aqui de Portugal e está na subjetividade das pessoas também. Isso é muito difícil de quebrar, porque se você quebra com o ideal de nação e o ideal de subjetividade, o que sobra de Portugal hoje? Hoje Portugal é um país da periferia da União Europeia, não é um país que consegue se projetar para o mundo, a economia é frágil, o mercado de trabalho é frágil. Se não se agarra nisso, se agarra no quê? Pensando no que a gente constrói de nação, se não se agarra nisso, não tem a cola social. Eu não estou querendo dar resposta ou saída para isso, mas que cola que vai haver?  

SLA: O mito de país civilizador é uma barreira difícil de transpor. 

APC: Acho que quando você vê a barreira, apesar de ser difícil, você consegue apontar e identificar que existe uma barreira. Acho que no Brasil a gente consegue ver essa barreira e consegue apontar. Agora, quando existe a barreira, mas ela é invisível, é muito mais difícil porque você não consegue dar nome às coisas. A desigualdade do Brasil é tão absurda e é visível. Aqui em Portugal, você anda no centro de Lisboa e não vê a desigualdade territorial dessa forma, porque as pessoas estão na periferia e não convivem nesse espaço. As pessoas negras estão na periferia e não têm direito à cidade, não se sentem pertencentes ao centro de Lisboa e não veem ao centro de Lisboa se não for para trabalhar, se não for para servir. Se a pessoa aqui em Portugal não diz aqui “nossa, sua preta de merda” ou “sua negrinha” como dizem no Brasil, mas diz “nossa, você é até uma negra bonita” torna mais difícil de combater porque é visto como um elogio. É difícil nos dois casos, obviamente, mas quando se vê e fica muito escancarado, a gente pode falar “só não vê quem não quer”, mas quando essa barreira é invisível, é difícil de fazer que de forma coletiva se olhe para isso, porque só quem vivencia é que sente e que vê. No caso do Brasil é um caso de hipocrisia de uma sociedade bem consolidada do ponto de vista das elites. Agora aqui, há questões mesmo de um apagamento, então se você não vê o problema, quando você aponta é muito questionado. A partir do momento que você consegue dar nome e reconhecer o problema de forma coletiva enquanto sociedade você consegue trabalhar sobre ele. Pra mim, a segregação em Lisboa é pior do que no Rio de Janeiro. Eu acho isso, muito honestamente, apesar da violência, apesar da pobreza. O pior do Brasil é que a gente mata as pessoas negras, mas a segregação da cidade aqui é pior, porque aqui as pessoas nem convivem nos mesmos espaços. 

SLA: Se você não assume que existe o problema, você não cria solução para ele. 

APC: Exatamente. Não havendo reconhecimento, não existe racismo em Portugal.  

SLA: Ana Paula, te agradeço muito pela entrevista.