Sonho e yãkoana: hipóteses para pensar o cinema como travessia de mundos [Parte II]

Cinema é sonho (colectivo)

Outra diferença significativa entre a descrição de Gow, por um lado, e de Kopenawa e Albert, por outro, é relativa às imagens do sonho. Gow identifica uma clara oposição entre as visões de ayahuasca e dos filmes às do sonho, ao passo que essa oposição adquire outros matizes, em contexto ritual yanomami. Ainda que não haja uma referência directa ao cinema n’A queda do céu, podemos conhecer a perspectiva de Kopenawa a propósito de A Última Floresta (2021), longa-metragem realizada por Luiz Bolognesi e escrita em colaboração com Kopenawa, que combina observação documental e encenação de eventos relevantes na cosmologia yanomami. Diz Kopenawa: “Luiz, cinema é sonho, né? Então você tem que ir à minha aldeia e dormir umas noites lá. Temos que falar dos nossos sonhos para encontrarmos juntos essas histórias” (Folha de S. Paulo, 5 de julho de 2021). O cinema não é simplesmente comparado ao sonho; o cinema é sonho. Para fazer um filme sobre a aldeia Yanomami, há que dormir lá, há que sonhar e há que conversar sobre os sonhos, para encontrar colectivamente as histórias.

O cinema é assim entendido como sendo sonho, mas também estendido à discussão dos sonhos, tratando-se de um processo de montagem de conteúdo onírico, a partir da partilha e da discussão colectiva. Neste sentido, o cinema surge como um sonho partilhado. Trata-se de sonhos que são discutidos colectivamente, com vista a uma montagem das imagens, mas também podemos pensar este sonho na sua dimensão de desejo e missão, tal como o era para alguns autores, nas origens do cinema e da sua teorização. O cinema almejava ser a nova linguagem de um novo mundo, “universal, comum, entendida por todos”, nas palavras de Béla Balázs (1983, p.82), apresentando-se como sonho – aspiração colectiva – de um mundo moderno em que todos os movimentos seriam considerados iguais, comuns, filmáveis. Do cinema esperava-se que gerasse conhecimento do que até então estava oculto ao olho humano[2], e suscitasse energia, desvendando as ambiguidades do mundo, mas também modos de nos comportarmos perante ele (Cf. Rancière 2012, p.24). Os cinemas indígenas, designação que adquire uma pluralidade de sentidos, parecem insistir e reconfigurar a ambição política do cinema, estendendo-a à cosmopolítica, como vários estudos vêm problematizando [1].

Kopenawa não pede apenas a Luiz para ir à aldeia sonhar, mas para ir sonhar e falar sobre os sonhos, para encontrar as histórias. O xamã yanomami também não diz a Luiz para ir à aldeia tomar yãkoana, como poderíamos pensar, seguindo Gow e a definição da ayahuasca como o cinema da floresta, abordada anteriormente. Kopenawa diz ao realizador para ir à aldeia sonhar. Nesse sentido, poderíamos perguntar-nos se o sonho não se prefigura como a yãkoana das “pessoas comuns”, acessível para além da hierarquia xamânica. Nesse caso, em vez de um cinema da floresta, poderíamos falar do cinema como a yãkoana dos brancos? No entanto, não é qualquer sonho que pode ser cinema, já que existem vários tipos de sonhos, dependendo de quem sonha; durante o sonho, a imagem das “pessoas comuns”, por exemplo, “nunca se afasta muito. Entre eles, apenas os bons caçadores podem sonhar um pouco mais longe.” (Kopenawa e Albert 2015, p.462); já os brancos “[d]ormem muito, mas só sonham com eles mesmos. Seu pensamento permanece obstruído e eles dormem como antas ou jabutis” (p.390), ou dormem mesmo sem sonhos, “como machados largados no chão de uma casa” (p.76).

Nem sempre é evidente, ao longo de A queda do céu, qual é exatamente o lugar do sonho em relação à yãkoana. Há alturas em que os sonhos surgem como uma espécie de ensaio das visões da yãkoana, outras em que são colocados a par, sendo sempre ambos entendidos como terrenos do conhecimento. No que se refere à sua qualidade de ensaio, o sonho pode anteceder, mas também suceder, as visões suscitadas pela yãkoana. Em criança, Kopenawa já era visitado pelo xapiri no tempo do sonho, mas este era visto como uma antecâmara da verdadeira experiência de conhecimento e poder associados à yãkoana. Antes de se tornar xamã, Kopenawa já começava a ver em sonhos o que mais tarde se materializa com a yãkoana. Como lhe foi dito pelo seu padrasto, xamã e guerreiro:

“Os xapiri estão começando a querê-lo de verdade [porque sonhou muito]. Mais tarde, quando se tornar adolescente, se quiser o poder da yãkoana, abrirei de verdade os caminhos deles para si.” (p.93)

Apesar de já sonhar muito, os caminhos dos xapiri só podem ser verdadeiramente abertos pela yãkoana. Neste sentido, o sonho parece ser menos poderoso do que a yãkoana, constituindo uma antessala do conhecimento que ainda não é pleno, mas parcial. Por outro lado, o sonho aparece também como território onde as visões da yãkoana se prolongam, continuando “no tempo do sonho” (p.332), como refere Kopenawa. Não obstante, outras passagens reforçam o sonho como a morada das visões da yãkoana, o território temporal do seu acontecer, das quais destaco as seguintes:

“(…) bebemos o pó das árvores yãkoana hi, que é o alimento dos xapiri. Estes então levam nossa imagem para o tempo do sonho. Por isso somos capazes de ouvir seus cantos e contemplar suas danças de apresentação enquanto dormimos. Essa é a nossa escola, onde aprendemos as coisas de verdade. (p.77)
Nós, Yanomami, quando queremos conhecer as coisas, esforçamo-nos para vê-las no sonho. Esse é o modo nosso de ganhar conhecimento. Foi, portanto, seguindo esse costume que também eu aprendi a ver. Meus antigos não me fizeram apenas repetir suas palavras. Fizeram-me beber yãkoana e permitiram que eu mesmo contemplasse a dança dos espíritos no tempo do sonho. Deram-me seus próprios xapiri e me disseram: “Olhe! Admire a beleza dos espíritos! (…) Sem eles, seu pensamento não poderá entender as coisas. Continuará na escuridão e no esquecimento!” (p.465)

A yãkoana possibilita o aparecer das visões (do conhecimento) que necessita, por seu turno, de uma temporalidade específica para suceder: o tempo dos sonhos. Sublinha-se, nestas passagens, uma certa contiguidade e contaminação dos territórios do sonho e das visões da yãkoana. Não sendo exatamente a mesma, são experiências contíguas que se sobrepõem em determinados momentos, se prolongam mutuamente ou se reconfiguram. O esforço para separar totalmente as experiências, talvez não só seja desnecessário, como também contraditório com as formas de pensar, sentir e fazer que A queda do céu nos revela. Como o próprio terreno do sonho, também os limites entre as visões da yãkoana e as do sonho são indefinidos: prolongam-se em rastos de luz que não permitem identificar o início ou o fim de algo; espaços contíguos podem ser atravessados apenas por pensar nisso; há afetações e contaminações mútuas entre o corpo que dorme na rede e a sua imagem em voo; eclodem múltiplas temporalidades, brilhos, luz e escuridão, etc.

O xamã e o cinema: veículos transfronteiriços

Ao atravessar e ao ser atravessado por múltiplos modos de existências e mundos, o xamã partilha o que ouve, vê, toca, cheira, através sobretudo do canto e do movimento corporal. O xamã funciona como meio de mundos; o seu corpo sai de si mesmo para se tornar gesto (Agamben 2000), isto é, pura medialidade, neste caso dos cantos e dos brilhos dos xapiri. Ao mesmo tempo que atravessa mundos, o xamã faz ver e ouvir esses mundos, aos quais os restantes podem aceder por seu intermédio. Espécie de vínculo e veículo entre mundos, porque está entre eles e porque suscita essa travessia a que o acompanha, assim o xamã, mas também a câmara de filmar. Ambos parecem surgir como dispositivos relacionais, com missão diplomática: de articulação, tradução ou comunicação interespecífica, de múltiplas temporalidades, geografias e perspectivas.

O xamã coloca em relação, no seu corpo em voo panorâmico pelo peito do céu, diferentes perspectivas; muda de ângulo, acelera ou desacelera, aproxima-se e distancia-se, move-se entre jogos de luz, brilho, cor e foco, acede, transita e dá a conhecer mundos inacessíveis; as suas visões procedem por recortes, fragmentos. Podemos dizer destes modos xamânicos que se aproximam, com tudo o que os separa, dos procedimentos cinematográficos? O xamã assume diferentes perspectivas (interespecíficas), tal como a câmara tem o poder de alterar constantemente de ponto de vista e de “olhar o ambiente a partir dos olhos de uma figura diferente a cada instante”, como escrevia Balázs (1983, p. 97), numa altura em que as capacidades técnicas do cinema eram ainda uma novidade?

A intersecção entre as habilidades xamânicas e da câmara de filmar também foi apontada por pessoas indígenas, como dá a conhecer Ana Carolina Estrela da Costa (2018), no seu estudo sobre o cinema indígena Maxakali. Afirma a autora que para alguns membros daquela comunidade, com quem trabalhou em oficinas de vídeo, a câmara era entendida como dotada da capacidade de proporcionar uma continuidade entre o visto e o não visto, “à maneira de um xamã” (p.107). Esta continuidade, apontada pelos membros da comunidade Maxakali, é tanto em acto como em consequência; em acto, já que é o que está a acontecer com o xamã, ele está a entre-ver, está entre planos; em consequência, na medida em que permite que outros vejam, no corpo do xamã, a continuidade dos mundos (dos diferentes planos). Esta oficina de vídeo chamava-se “curso de pajés” ou de xamãs (p.146). Quando li o título, pensei tratar-se de um curso para se aprender o ofício de xamã, em vez de designar os destinatários. Este equívoco permite associar de forma anedótica, mas sobretudo sintomática, a relação entre vídeo e xamanismo.

Consideremos agora o trabalho etnográfico e cinematográfico desenvolvido por Jean Rouch, no contexto da sua investigação de mais de 30 anos, com os Songhay-Zarma do Níger. O autor encontrou diversos cruzamentos, a diferentes níveis, entre a experiência do cinema e da “arte pública da possessão” (Rouch 2003, p.99). Nas cerimónias de possessão, as pessoas em transe são designadas de “cavalos dos espíritos”, disponíveis para serem “montadas” por diversos espíritos divinos, com quem comunicam. Esses espíritos (por vezes chamados de deuses) podem ser vistos por outros, porquanto aparecem no corpo do possuído, nas formas provisórias que vai adquirindo a sua dança, sendo essa a sua forma de visualidade. A dança e a música são o acontecer do próprio transe, o registo efémero da travessia de mundos – pelos gestos, os movimentos, pela corporalidade -, ao mesmo tempo que a performa e instiga. Também aqui parece haver um encontro entre os relatos de Kopenawa e Albert, e os de Rouch, no que ao corpo como medialidade diz respeito.
Tendo filmado as cerimónias, Rouch projectou as imagens para os Songhay-Zarma. Para aqueles que tinham sido filmados como “cavalos do espírito”, essas imagens foram suficientes para estimular novamente a possessão. O antropólogo e cineasta afirma, até, que as pessoas filmadas como cavalos do espírito “reagem a esta arte de projecção visual e sonora exactamente da mesma maneira que reagem à arte pública da possessão ou à arte privada da magia e feitiçaria” (Rouch 2003, p.99). As imagens tiveram o poder de suscitar a possessão, aparecendo, deste modo, o cinema como via de entrada (reentrada) na travessia. Noutros casos, a presença da câmara terá sido suficiente para iniciar a possessão. O filme surge tanto como o registo da travessia, como via de entrada a essa travessia, para quem assiste ao filme. A dinâmica do cinema (da filmagem, mas também da projecção) e a dinâmica do ritual parecem, deste modo, convergir.

Desenho de Davi Kopenawa, in Kopenawa e Albert (2015), A Queda do Céu: Palavras de um xamã yanomami, Companhia das Letras, São Paulo.

Esta intersecção entre o cinema e o ritual, o xamã e a câmara, o visível e o não visível, o mundo dos humanos e o dos espíritos, também é abordada por Bernard Belisário no contexto da análise de Hipermulheres (2011), filme do colectivo de cinema Kuikuro que coloca em cena os preparativos da aldeia Kuikuro Ipatse para o ritual feminino Jamugikumalu, do Alto Xingu. Ao identificar uma semelhança entre a modulação dos corpos das mulheres e a modulação da câmara, Belisário defende que o ritual funciona como um sistema de ressonâncias cósmico que coloca em relação visibilidades e invisibilidades, espaços e tempos distintos:

A modulação dos corpos (e da câmera) em cena é o traço visível e audível do campo de intensidades e afecções em jogo no ritual. O que era invisível e inescrutável aos seres humanos ordinários é dado a ver e ouvir nessas performances. O que não significa que o invisível se torne visível de um modo que passaríamos a ver as almas, os mortos, os espíritos e os animais. Mas que, por uma espécie de dobragem, o que vemos e ouvimos em campo é também o que acontece no fora-de-campo. (Belisário 2014, p.115)

A dança – dos corpos e da câmara – é, nesse contexto, o aparecer gestual da travessia. Tal como a mão do xamã regista a travessia e procura, em simultâneo, abrir a rocha à superfície da qual se instala, como descrito por Clottes e Lewis-Williams em relação às cerimónias do Paleolítico Superior, também a dança ou o canto consistem em estar “entre” mundos, nas cerimónias filmadas por Rouch ou nos rituais Kuikuro. Registo e processo, rasto e suceder parecem indistinguir-se. Rouch dá um exemplo paradigmático desta relação entre o ritual e o cinema, a partir da experiência que está na origem do seu filme Tourou et Bitti. Les Tambours d’Avant (1971). O cineasta foi convidado a filmar uma cerimónia que já decorria há três dias, sem que ninguém entrasse em transe. Ao quarto dia, depois de várias horas sem que a possessão se iniciasse, decide mesmo assim começar a filmar, na companhia do técnico de som Moussa Amidou. Caminhando, de câmara em mão – marca do seu cinema directo -, Rouch filmou um só plano sequência que se inicia com a filmagem dos animais que poderiam vir a ser sacrificados, para logo filmar a orquestra cerimonial, até que, a determinado momento, a música se detém. Apesar de considerar que se tinha desistido de esperar que a possessão ocorresse, Rouch decide, mesmo assim, continuar a filmar e é justamente aí que se inicia a possessão:

“Olhando para este filme agora, penso que a filmagem foi o que destravou e acelerou o processo de possessão. Não me surpreenderia se ao mostrar o filme aos padres de Simiri, ficasse a saber que tinha sido o meu próprio ciné-transe a desempenhar um papel de catalisador aquela noite.” (Rouch 2003, p.101)

Ciné-transe seria, então, o nome dado a esse instante quase religioso de possessão, no qual o cineasta, a equipa e o elenco se tornam “cavalos do espírito” do cinema, permitindo que os seus sentidos sejam mediados pelos dispositivos cinematográficos. João Mário Grilo qualifica de “mágico” o momento em que Rouch decide não parar de filmar, “um momento de transe que permite a Rouch organizar os seus movimentos – o seu ‘ballet’ – como se estivesse numa completa articulação com uma força superior, como se ele fosse um dos cavalos sobre o qual os deuses escolheram descer para o ritual” (Grilo 2014, p.133). A partir de esta noção de ciné-transe e da experiência a ela subjacente, Grilo afirma que o cinema se posiciona como “um veículo fronteiriço [borderline] entre diferentes mundos que também se oferece a si mesmo como uma oportunidade para passar entre eles” (Grilo 2014, p.128).

Para o entendimento que Rouch tem do cinema contribui, em grande medida, o cinema directo (direct cinema) de Robert Flaherty, e o cinema-verdade (kinopravda) de Dziga Vertov. De Flaherty, Rouch destaca a invenção de uma “câmara participante” – o actor principal. De Vertov, Rouch salienta o poder da câmara – o olho mecânico -, bem como da montagem – organizadora dos momentos da estrutura da vida – em articular uma verdade inacessível ao olho humano. O cinema do futuro é, para Rouch, aquele que “junta o sonho de Vertov e de Flaherty”, um “cinema-olho-ouvido” e uma câmara de tal modo participante que passa “automaticamente para as mãos daqueles que até então estiveram sempre em frente às lentes” (Rouch 2003, p.46). O cinema aparece, pois, como aquele que é capaz, pela câmara que tudo vê, bem como pela montagem que tudo revela, criar uma nova forma de ver que constrói a sua “verdade peculiar” ou uma “verdade fílmica” (cinéma-verité), isto é, uma outra articulação entre o dizível e o visível dependente do cinema e do gesto de filmar (Rouch 2003, p.13).

O projecto Vídeo nas Aldeias, coordenado por Vincent Carelli, cumpre este sonho político no território da terra-floresta[3], ao promover formação audiovisual de indígenas, ao disponibilizar equipamentos para produção própria, bem como ao criar redes de distribuição dos materiais produzidos:

Ao invés de simplesmente se apropriar da imagem desses povos para fins de pesquisa ou difusão em larga escala, esse projeto tem por objetivo promover a apropriação e manipulação de sua imagem pelos próprios índios (sic). Essa experiência, essencial para as comunidades que a vivenciam, representa também um campo de pesquisa revelador dos processos de construção de identidades, de transformação e transmissão de conhecimentos, de formas novas de auto-representação. (Gallois e Carelli 1995, p.67)

Os cinemas indígenas parecem tanto insistir como reinventar a missão política do cinema. O deslocamento do lugar de filmado para o lugar de quem filma altera radicalmente o próprio cinema, reinventando modos de filmar, de montar e de contar histórias, implicando também a reconfiguração da gramática do cinema. Um estudo que procure pensar as intersecções entre o cinema e as visões xamânicas encontra nos cinemas indígenas um terreno incontornável do seu suceder. Será, certamente, uma via de continuidade aberta pela leitura de A queda do céu, na sua relação com o cinema.

Cinematógrafo cósmico

Poderíamos, chegados/as aqui, destacar três possíveis intersecções entre as visões xamânicas provocadas pela ingestão ritual da yãkoana, o sonho e a experiência cinematográfica. Essas intersecções dizem respeito i) ao acesso a uma verdade de outro modo inalcançável, ii) à medialidade entre mundos, com função diplomática e iii) aos modos de experiência xamânica como modos cinematográficos da experiência que ocorrem por outros meios. Estes eixos trazem consigo várias perguntas – que certamente não se esgotam nas que aqui formulo -, das quais destacaria as que se seguem. Poderíamos perguntar-nos se a verdade peculiar, de que falam cineastas e teóricos/as do cinema, ecoa, em tom próprio, na yãkoana e no acesso à visualidade da terra-floresta que aquela permite. Se o cinema permite aceder a verdades de outra forma inalcançáveis, podemos identificar aí uma intersecção entre essa experiência e o consumo ritual de yãkoana? Se para fazer um filme é necessário sonhar e montar colectivamente o conteúdo onírico, e se Kopenawa designa o cinema de sonho e não de yãkoana, podemos perguntar-nos se o sonho se prefigura como a yãkoana das “pessoas comuns”, acessível para além da hierarquia xamânica. E, nesse sentido, em lugar de um cinema da floresta, poderíamos falar de um cinema como a yãkoana dos brancos?

Ao mover-se por diferentes posições e perspectivas dos vários modos de existência, o xamã tem a possibilidade de ver e de traduzir o ponto de vista do outro. O corpo do xamã torna-se gesto, pura medialidade de travessia de mundos, permitindo a quem o acompanha aceder à continuidade entre os mundos visíveis e não visíveis, humano e mais-que-humano. Atravessa, é atravessado e oferece a possibilidade de atravessar mundos: assim o xamã, mas também o cinema? Se a câmara de filmar e o xamã partilham, com as devidas distâncias, a possibilidade de se oferecerem como gesto da travessia de mundos, poderemos encontrar, também aí, um intervalo entre o cinema e o xamanismo? Um cinema que procura constituir-se como linguagem comum que permitiria o acesso e colocaria no mesmo plano diferentes seres e agentes do cosmos?

Com estas perguntas, o cinema solta-se da especificidade do meio – o filme, a sala, a celulóide, as paredes das cavernas. Todo o cosmos devém cinematógrafo, ou um metacine, como sugere Sebastian Wiedemann a partir de Henri Bergson e Gilles Deleuze. Um cosmos que, como o cinema, é composto por imagens em si e para si mesmas, em perpétuo movimento de acção e reacção umas sobre as outras, feitas de luz e de sombras, que não esperam nem dependem de um olhar humano para existirem. O cosmos, neste sentido, compreende-se como uma imensa máquina de projecção de imagens luminosas que se propagam por todas as partes, independentemente de aparecer um olhar ou um ecrã, e que apenas necessitam de uma opacidade que as possa reflectir e revelar.

As imagens podem, assim, ser entendidas não como algo que se vê, mas como algo que se move perpétua e independentemente de uma consciência. A luminosidade está nas coisas em si, antes de qualquer sujeito que as olhe ou consciência que supostamente as ilumine. Como refere Bergson (2006), “a fotografia, se existe, já está tomada, tirada no interior das coisas” (p.52), o olho está no interior. Em A queda do céu, também surge uma associação entre a interioridade e a fotografia. A imagem-utupë é descrita justamente como a fotografia dos seres, o seu interior: “Todos os seres da floresta possuem uma imagem utupë. (…) São elas o verdadeiro centro, o verdadeiro interior dos animais que caçamos. (…) São como fotografias destes. Mas só os xamãs podem vê-las.” (p.116). Para que se revele, esta fotografia interior necessita de um ecrã (ou de um xamã?), um obstáculo à luz que a reflecte. As “imagens vivas” são aquelas que funcionam precisamente como opacidades que reflectem a luz.

Neste seguimento, podemos perguntar-nos pelo cinema que, nas palavras de Wiedemann, está sempre disposto “a acontecer por outros meios, a se multiplicar por inúmeras e impensadas superfícies, a ser espírito e espiritual por possuir corpos demais que desbordam qualquer forma, até quase explodir e fazer colapsar o plano do audível e visível”? (Wiedemann 2020, p.112). Um cinema sempre disponível para acontecer por outros meios que demonstrem a sua eficácia, tornando “mais potente a performance cosmopolítica que faz do mundo uma nascença incessante e da imagem algo sempre por vir?” (p.116). Em lugar de pensar uma possível aproximação entre a experiência geral do cinema, as visões geradas pelo consumo ritual de plantas alucinógenas e a recriação dessas visões, talvez possamos continuar a perguntar-nos como podem os modos de experiência xamânica entender-se como modos cinematográficos da experiência que ocorrem por outros meios, no tempo do sonho ou da yãkoana, mas insistentemente como gesto da travessia de mundos.

Notas

[1]Ver, por exemplo, Estrela da Costa (2015), Brasil e Belisário (2016), Lacerda (2021) e Caixeta de Queiroz (2008).
[2]Atribuir ao cinema o poder de dar a ver a verdade, a realidade, a vida em si mesma, é algo que vários autores fizeram desde as origens do cinema e da sua teorização. Béla Balázs, por exemplo, entende que a câmara “revelou novos mundos até então escondidos”, permitindo aceder às “forças ocultas de uma vida que pensávamos conhecer tão bem” (Balázs, 1983, p.84-89).
[3]Não sem contradições, como problematiza Ruben Caixeta de Queiroz (2008).

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