Uma narrativa? Não. Nada de narrativas.
Nunca mais.
Maurice Blanchot
O que faz a imagem aguentar-se, é um resto.
Jacques Lacan
A mão que sobe e desce. Todos os dias. O prato enterrado na mesa. No espaço. A lentidão quotidiana que adia o desfecho como uma promessa. Repetidamente. Alguns momentos, ao final da tarde, imperceptíveis, ousam brilhar através das cortinas. Ninguém será capaz de perturbar o rosto. Apenas o olhar se move e levanta. A proximidade é o cuidado que faz girar a noite. As palavras são como ossos — rígidas, variáveis, longas ou curtas. Protectoras. Impermanentes, por vezes. Autoritárias.
Aprendemos a descobrir a violência. Continuadamente. Nada de especial. Nada a condenar. Basta que a escuta se transforme em igualdade e que o sentido adquira a circularidade improvável do absoluto. Todas as coisas são leves quando se trata da salvação. Ou da desmesura. Os gestos ligam a carne como as paredes envolvem a casa. Deambular através de um jardim vazio. O monólogo. Celebrar o perfume de um escândalo sem verdade. A ausência. Aqui, é onde os nomes estalam para nos aquecer. Abrem-se na boca, sem enfeites. Como uma dádiva. Não muito longe, a caminho da porta, a voz dissolve-se a um canto, amplia-se sem falhas. Chama pelo nome que se quer como certo. A língua que embrutece. O matadouro é uma história sem enredo feliz. Chegamos ofegantes a lado nenhum. Antes e depois. A mesma corrida. Aguardamos o fim do mundo. Em toda a parte, qualquer hipótese de devoção ao universo acaba convertida num efeito de desorientada conexão imaterial — plataformas, aplicações e outros tantos meios de comunicação desertificada. Sem tacto. Sem perturbação. Ouvimos o eco. Nunca se está demasiado cansado. O pensamento corre até apreender o inferno. O lado de fora. A impossibilidade de cada coisa. Amor benevolentiae.
Assistimos à execução. O corpo torna-se o objecto de curiosidade da maquinaria organizada pela colónia penal. Sempre a postos. As agulhas de ferro também escrevem. Relatórios, cartas, deliberações. O condenado apaixona-se pelo mecanismo. Palavras por todo o lado. Exaustivamente. Kafka a seduzir-nos para o camarote do comandante[1]. Live streaming para fantasmas. O medo não é o pior, mesmo quando nos leva a alma. A medicina e o atlas anatómico[2]) configuram o limite da experiência. Como no século XVIII, o obscuro e o sombrio modelam a densidade corporal. Encadeiam causas e efeitos sem cronologia ou trajecto. As figuras da doença e do mal. Metáforas espaciais. Ou uma questão hermenêutica:
“Metáfora significa, justamente: transporte. Eis realmente o método de Hermes: ele exporta e importa, portanto, atravessa; inventa e pode enganar-se, por causa da analogia; perigosa e mesmo, mais exactamente, interdita, mas não se conhece outra via de invenção. O efeito de estranheza do mensageiro advém dessa contradição, a de que o transporte é a melhor e a pior das coisas, a mais clara e mais negra, a mais louca e a mais certa” (Serres, 1999: 95).
Talvez a metáfora não seja mais que uma antiga história de amor — como a de Gilgamesh quando se apaixona pelo seu duplo, o bravo Eikidu, o mais forte dos companheiros, o “meteoro do firmamento” (Gilgamesh, 2000: 18) que lhe desenha o caminho de aprendizagem da morte. A lição da tragédia — a grandeza ilimitada, amorosa, a perda de si próprio. O murmurar das canções que “amávamos até talvez antes, sem saber, sem no-lo confessarmos, um pouco incomodados” (Stiegler, 2018: 63)[3]. Amor fati, uma poética da eternidade que abandona a ordem da linguagem para se inscrever no regime do indeterminado.
Regressar ao delírio da transfiguração. Artaud acreditava que os vivos sempre viveram dos mortos e Lacan, a propósito de Alcibíades, escreveu que ”amar é querer ser amado” (Lacan, 1998: 867). O amor e o empirismo do conceito — o amor faz-se. Primeiro, a voz. Depois, o fôlego. Sabemos há muito que, guardado na palma da mão como um segredo, o tempo acompanha o mundo:
“Assim rumorejava a folhagem. A mãe partira. O filho estava ali sozinho. Cabia-lhe agora entregar-se à tarefa de se orientar no mundo, que é também um bosque, aprender a não se ter a si mesmo em grande conta, eliminar da sua alma todo o tipo de presunção, para que assim agrade” (Walser, 2011: 57).
Entre Os fogos da casa e O lado de fora da mão — a voz e os restos. O texto e um bosque. A mãe que oferece ao filho a primeira palavra — não se ter em grande conta. Não ter coisa alguma a dizer. Libertar a dicção da literatura, reivindicou Heidegger. Um lugar vazio que excede toda a declaração amorosa. Um certo voar para a estranheza. O voo dos anjos. Um caso clássico de desvio. O mal-entendido, as imagens, o erro arquetípico que, a seu modo, o amor convoca. A carta de amor que preenche a tragédia. Do corpo. O dia a dia. A memória que se risca como o tempo. O apelo invisível. A oração que se repete. A súplica. Ou a fé.
Eduarda Neves
(a autora escreve segundo o anterior acordo ortográfico)
Notas
[1] Referimo-nos ao texto de Kafka, F. (1998). Na colónia penal. Lisboa: Litoral Edições.
[2] “[P]ara os nossos olhos já gastos, o corpo humano constitui (…) o espaço de origem e repartição da doença: espaço cujas linhas, volumes, superfícies e caminhos são fixados, segundo uma geografia ainda familiar, pelo atlas anatómico. Esta ordem do corpo sólido e visível não é mais que que uma das formas da medicina espacializar a doença.” In Foucault, M. (1993). Naissance de la clinique. Paris: Ed. Quadrige/PUF, p.1.
[3]A propósito do filme de Alain Resnais, On connaît la chanson.
Referências Bibliográficas
Anónimo. (2000). Gilgamesh (versão de Pedro Tamen). Lisboa: Editora Vega.
Blanchot, M. (2020). A Loucura do dia. Lisboa: Sr. Teste Edições.
Lacan, J. (1998). Escritos. Rio de Janeiro: Zahar Editores.
Lacan, J. (1985). Seminário. Livro 20. mais, ainda (1972-1973). Rio de Janeiro: Zahar Editores.
Serres, M. (1999). Diálogo sobre a ciência, a cultura e o tempo. Conversas com Bruno Latour. Lisboa: Instituto Piaget.
Stiegler, B. (2018). Da miséria simbólica. Lisboa: Editora Orfeu Negro.
Walser, R. (2011). Histórias de imagens. Lisboa: Edições Cotovia.