Diário da dança (or)di(n)ária ou a dança da peste

Danças que foram amedrontadas

 

        Erehé ynhauit! Xuteh opeh! Querido Watu ouça nossos cantos e se recupera e também a nós. Escutamo-lo. Seus sons líquidos murmuram ao sopro do vento e vencem o crepitar do fogo. Sou estou (Alba) entre árvores: mulheres enraizadas nessa terra sagrada que têm o poder de curar o mundo. Que dançam movidas pelas cantigas da espiritualidade ancestral, da concepção ontológica concebida a partir da imanência. Mulheres originárias reflorestando corações para a cura de todos seres, vivos, não vivos, humanos, não humanos. Cantamos e dançamos para a (nossa) cura da Terra.

      

         Mãe lhe pergunta: Você escuta minhas súplicas kraí-krenton (branco)?

 

        Kraí-krenton, no dialeto utilizado pela etnia Krenak, significa homem branco, ou ainda, aquele que não pertence ou não faz parte deste povo (Krenak, 2009, p. 18). O Povo Krenak concentra uma etnia que reside na sua aldeia no leste do estado de Minas Gerais, próxima à cidade de Resplendor. Pertence ao tronco linguístico Macro-jê, falantes da língua borum, que significa “o ser Krenak” ou ainda “essência do ser”, como se autodenominam.

        Nas diferentes comunidades indígenas, encontramos práticas ancestrais de cura e despertar do ser humano. Circularidade de experiências que poderiam ser compreendidas, por não indígenas, como terapêuticas. Experiências de vida que gera mais vida. Práticas cosmológicas do cuidado fluem na ritmicidade da vida, se e nos movendo em sintonia aos sons que curam. Atentas, escutamos. Acionamo-nos por inteiro: vemos sentindo, farejamos vendo, escutamos com os pés, embaralhamo-nos, observamos quando algo ganha intensidade. Estamos disponíveis e abertas aos saberes e às experiências que nos presenteiam os cosmos.

        Cante. Dance. Libere e receba energia sagrada. Agora, neste presente pandêmico, lembre-se do que é bom para todos, respeitando de forma horizontal o direito à vida de todos os seres:

 

“Oh rio

                    Oh Watu

você dá peixe para eu comer:

você dá remédio para mim?

você dá saúde para mim?

 

Oh Watu Mirare re, oh Rio de águas boas

 

        Para os Krenak, que vivem à margem do Rio Doce (Watu), seu avô (o rio) é muito mais do que água e peixes. Até antes do trágico rompimento da barragem da Samarco em Mariana, em cinco de novembro de 2015, era nas margens do rio que realizavam seus rituais e festas, batizavam as crianças e tiravam ervas para remédios e material para o artesanato (Alves, Santos, G1, 2016). 

 

        Dar, doar, generosidade.

                 RECEBER

                   DIVIDIR.

        COMPARTILHAMENTO.

 

        Você é sagrada/o/e [se] escute – o que te faz bem, corpo? O sangue que circula dentro de nós sussurra: somos toda a força do universo, acredite na positividade da oralidade. Ecoe e amplifique nossas vozes, nossa poesia (diálogo com a videodança “Diário da dança (or)di(n)ária ou A dança da peste”):

 

Um vírus que se dissemina pelo ar

chega de avião

ao entardecer

pássaros batem em revoada

não há escapatória

observamos estupefados

trancafiados,

a noite chegar

parados e enclausurados

o rosa se faz verde

vida em janelas

a bruxa está solta

animais lá fora e cá dentro de nós vivem

livremente

vista à noite, do alto

luzes brilham, a cidade continua a mesma

será? Dizem não, as artistas que dançam juntas pelo zoom

separadas por mais de 2 mil km

as máscaras de sempre ainda estão aí

ajoelhar e dizer o quê?

sem máscaras em casa pode

voar para bem longe

para encontrar quem usa máscaras

desde sempre

celebrando saberes ancestrais

curando com medicinas naturais

mas ainda lá têm que se dobrar

a essa outra máscara

o artista toca sua música

também ele resiste

memórias de antes da pandemia

quando dançar com outres

era tão normal

porque dançar

com bolinhas multicoloridas

com cadeiras e o sol

(nem a criança entende)

passou a ser dançar

com o quintal

com o verde das próprias sombras

cavucando a terra em busca de não se

sabe ao certo o quê

o piano ligeiro

acende o coração

mas o muro teima em aprisionar

presa no sonho

vê a rachadura da parede

aumentar

vida trincada

de cá dentro

contempla os animais que ocupam

os lugares que antes dançava

cai a noite

algures, ainda se vai à praia

a alegria resiste, insistentemente

resiliente

escorre e lava

leva leve

o medo

e voa

busca na natureza

na ancestralidade

a vida que parece tão distante

        Canto e dança, movimentos de tradição da oralidade, presente dos antepassados. Preservam rica tradição e comunicam ensinamentos das forças que carregamos dentro de nós quando estamos em íntima sintonia com (nossa) natureza. Co/antando, dançando não desistimos, resistimos e embalamos a força respiratória pelo sopro da vida: assovios e gritos para chamar os espíritos protetores “Marét”. Invadem sonoridades ao dançarmos e celebrarmos juntes: Somos fortes; seguimos com passos ora ritmados, ora caóticos. Há pausas. Essa terra é nossa e nos cura quando dançamos sobre e com ela cheio/as de carinho. Importa reforçar o que é ressaltado por Barreto (2013, p. 90): os saberes indígenas dos Tukano (e acrescentamos, para demais povos originários) são frutos de práticas e não algo sobre o qual se “reflete”. O saber é consciente, mas não teorizado tendo em vista que não existe uma reflexão sobre. O saber não é da ordem do pensado, mas sim do vivido, do praticado. Também não há uma preocupação de entendimento sobre a lógica ou mecanismos de funcionamento, ou sobre os conceitos que guiam as práticas e cosmoconcepções do mundo ameríndio.

        Toque sua música, melodia, movimente sua dança. Povos originários tocam flautas para buscar sabedoria. Sabedorias ancestrais se encontram para revelar articulações em processos coletivos para o bem viver de todes guiades por forças cosmológicas como de Tupã (O Trovão em tupi-guarani) e dos Marét. Conhecemo-nos melhor e fluímos no ritmo prazeroso da criação de redes abertas de afeto reconectando com nossa ancestralidade, buscando nos (re)conhecer pelo canto, que fortalece e entrelaça, num emaranhado profundo, por debaixo da terra, nossas raízes.

        Por aqui eram muitos os cantos, de inúmeros seres. Após 1501, essas terras foram também denominadas pelos kraí Terra dos Papagaios “numa referência à ave que tinha todas as cores e falava – por mais que ninguém entendesse o que dizia” (Schwarcz, Starling, 2015, p. 31). Aí já se anunciava uma falta de entendimento, dos colonizadores, da língua desses seres e de outros, que ao se expressarem oralmente, causaram essa resposta em Pero Vaz de Caminha: “Mas não pôde deles haver fala nem entendimento que aproveitasse, […].” (ibid, p.  29). Esse relato revela primeiras escutas de kupen (branco na língua Jê) sobre os corpos-territórios “achados” que, “Para Celso, em 1520, acreditava que não descendiam de Adão e que eram como os gigantes, as ninfas, os gnomos e os pigmeus. Cardano, em 1547, apostava que os indígenas surgiam como uma geração espontânea, a partir da decomposição de matéria morta, como as minhocas e os cogumelos.” (ibid, p.  29).

        Gnerre trata como mito a ideia bastante propagada e aceita da escrita alfabética ser tida como progresso cultural, cognitivo e também de desenvolvimento econômico e social. O autor critica essa ‘estória’, e denuncia que, para suportá-la, falta comprovação empírica. Ele ainda observa que geralmente pouco se questiona a superioridade da escrita “a capacidade de ler e escrever é considerada intrinsecamente boa e apresentando vantagens óbvias sobre a pobreza da oralidade” (1998, p. 45).

        Desenhar é escrita? Dançar? Cantar?

        Falas e percepções preconceituosas, desrespeitosas têm gerado, ao longo dos séculos, boatos e maledicências, derramamento de resina sanguinária e etnocídio de culturas, inclusive de práticas orais de cura. Mas nunca é demais repetir,

                                repetir,

                                            repetir

                                                        repetir

        As doenças se iniciam quando prejudicamos, sem utilidade alguma, a nós mesmos e outros seres, nossos parentes nesse imenso cosmos. Pandemia, peste. Guerra. Não adianta somente relatarmos o que acontece nas práticas cotidianas de cura em xaponos (aldeias para os Yanomami) ou outros locais para os quais se dirigiram indígenas em seus processos diaspóricos provocados pelos napëpë (“estrangeiros, inimigos”). 

        A cura pelo canto, pela dança, requer experiência vivida, pois não há normatividade nesse caminho tão singular. Dancei nessa pandemia, pela necessidade do que já faço (Vieira, 2018a) desde que sou estou me torno nessa jornada. Danço nessa guerra, que não é só entre Rússia e Ucrânia. Nessas plataformas há um pouco dessa minha errância pandêmica (e antes e após):

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        Sigo pela escuta, escuta profunda (Vieira, 2018b).

        Há milhares de mundos indígenas diferentes entre si. Pluriepistemologias. Dentre os Yanomami, por exemplo, a iniciação de um pajé inclui responder aos cantos dos xapiripë (espíritos) sob a condução dos mais antigos. Os xapiripë se apresentam com uma dança ruidosa e alegre como na chegada de grupos convidados, ricamente adornados, numa festa intercomunitária reahu. São “imagens” xamânicas (utupë) de entes da floresta, entidades cósmicas,  personagens mitológicas, humildes xapiripë caseiros, espíritos dos  napënapëripë (“brancos”) e de seus animais domésticos (ISA, 2021). 

        Cantar, dançar, ouvir, curar… Sabedorias indígenas envolvem a sensibilidade para escutar profundamente. Não é só cuidado com a terra, meio ambiente, que esses povos têm a nos ensinar. É tudo isso e muito mais. A partir da fala de Graciela Guarani (2021), ressoa a pergunta: como ter empatia por algo que é específico de indígena, mas não faz parte do m/seu pertencimento? Segue pela escuta. Escuta profunda que se guia por trocas in-excorporadas (Vieira, 2020), de estar no fluxo dentro-fora, interno-externo, eu-outro, corpo meu-corpo seu-corpo nosso. 

Referências bibliográficas

ALVES, C.; SANTOS, W. Após a lama, tribo Krenak deixou de fazer rituais e festas no Rio Doce. G1 Resplendor. Disponível em: <http://g1.globo.com/espirito-santo/desastre-ambiental-no-rio-doce/noticia/2016/10/apos-lama-tribo-krenak-deixou-de-fazer-rituais-e-festas-no-rio-doce.html>. Acesso em 2 de ago. de 2021.

BARRETO, J. P. L. Wai-Mahsã: Peixes e Humanos: um ensaio de Antropologia Indígena. Dissertação de mestrado/PPGAS – UFAM. Manaus, 2013.

GNERRE, M. Linguagem, escrita e poder. 4ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

GUARANI, G. Comunicação oral.  Cinema Indígena no Brasil: um panorama contemporâneo. 9º Seminário Nacional Cinema em Perspectiva. 16 a 22 de setembro. Disponível em:  https://youtu.be/2RVrtSKI3A8.  Acesso em 18 set. 2021.

ISA/INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL. Povos Indígenas no Brasil. Yanomami. Disponível em:https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Yanomami#Os_brancos:_nap.C3.ABp.C3.AB. Acesso em 19 set. 2021.

KRENAK, G. Etnodesign: aplicação dos grafismos da etnia indígena Krenak no design de superfície. TCC (Trabalho de Conclusão de Curso, Bacharel em Design Gráfico). Universidade Vale do Rio Doce, Faculdade de Artes e Comunicação, 2009.

SCHWARCZ, L. M., STARLING, H. M. Brasil: uma Biografia. São Paulo: Companhia das Letras,  2015.

VIEIRA, A. P. Processos Criativos e Dança: diálogos em movimento. In: SILVA, C. A. F.; MORAES, D. R. de (org.). Processos Criativos em Arte/Educação: dos contextos educacionais à cena performativa. São Paulo: Fonte Editorial, 2018a. p. 209-237.

_____.  Escuta Profunda. Rebento, São Paulo, n. 9, p. 177-202, 2018b, Disponível em: <http://www.periodicos.ia.unesp.br/index.php/rebento/article/view/274>. Acesso em: 10 ago. 2021.

_____.  Trocas in-ex-corporadas na formação em artes: uma proposta que valoriza formas de conhecimento do corpo e de povos originários. Teatro: criação e construção de conhecimento, Palmas, v. 8, n. 1 e 2, p. 203-218, 2020. Disponível em: https://sistemas.uft.edu.br/periodicos/index.php/teatro3c/article/view/11805/18523. Acesso em: 10 ago. 2021.