Dead link: mediações das práticas artísticas (II)

Segunda parte de um duplo editorial

O nosso dead link sofreu mutações até chegar ao osso. Na maioria, estas mutações foram provocadas pela mediação das práticas artísticas e pelo pensamento sobre onde se situa e como este opera a várias escalas nas concavidades, ou ainda sobre onde se torna problemático e bloqueador. Se no início pareceu ter uma vocação fortemente cibernética e digital, relacionando-se diretamente com o formato da revista nativamente on-line, acabou por ganhar, com as sucessivas contribuições, vários corpos. E, desta forma, concretizou relações nervóticas: as tais que achámos necessárias convocar e que aparecem notadas na Primeira parte de um duplo editorial como provocações entre o neurónio e o músculo.
Aqui, neste link, teremos acesso a uma lista: à sequência de entrada dos artigos do número 34 da Interact. Foi importante esta decisão editorial que realiza um mapa visual dos trabalhos reunidos. Uma sequência temporal, um mini ensaio visual colocado através da presença do título e de uma imagem escolhida: a imagem tem a importância do título. Esta paridade resulta das materializações próprias de dead link, pensadas como mediações das práticas artísticas que foram sendo reveladas pelas autoras e autores, mas também enfatiza a relevância do espaço cibernético enquanto a maior rede de circulação de imagens.

The internet persists offline as a mode of life, surveillance, production, and organization — a form of intense voyeurism coupled with maximum nontransparency. Imagine an internet of things all senselessly “liking” each other, reinforcing the rule of a few quasi-monopolies. [1]

Porém ali, nesse link, também teremos acesso às junções sinápticas, à construção e às transmissões neurais que agora existem enquanto página. Região de contacto entre dois e milhares de neurónios. Não há, por isso, conclusões possíveis. Há a página e a edição. Uma relação espácio-temporal a várias velocidades.
Dead link? No, Thanks, Fernando José Pereira. Interrogação directa ao nosso primeiro editorial. Provocado e provocação. Fernando José Pereira reinventa o tema e as questões propostas através da convocação das imagens da produção artística. Há uma distinção que se coloca entre as imagens necessárias em detrimento das imagens possíveis, distinção essa que se revê entre o corpo e o pixel, ou entre a presença e o acesso. Mas quais as possibilidades da imagem neste aparente excesso de mundo? Artistas respondem. Artistas podem? Não abandonar o corpo, corporizar tudo, até o digital. As imagens necessárias estão offline? O digital já é nosso, já foi, e ainda aí está mesmo que capturado pela superfície desenhada, uso familiar, no comércio dos vários gadgets e interfaces. Está aí na ligação bem sucedida entre as subjectividades plurais e os scanners do neurosoftware.
Então, já nascemos cyborgs? Honey I’m home – said the Ghost, Miguel Tavares. As câmaras, mesmo as antigas, ainda servem como objecto tecnológico. Estão ao serviço de várias mãos, na melhor das hipóteses, mas também ao serviço de vários olhos que são reproduzidos infinitamente nas experiências de vigilância e de comunicação. As câmaras ainda são objectos palpáveis que estão colocados numa posição precisa. Olham quartos vazios, no filme de Miguel Tavares, que já foram habitados por acontecimentos e performances acedidos apenas em directo, on-line ou streaming: o tempo real passou a ser o tempo dominante da experiência mesmo que totalmente mediado. Quartos enquadramentos de câmaras, ora próximos ora distantes de um quarto só para si de Virginia Woolf. Neste filme, os corpos são evocados sonoramente para o on-line, como um cântico de sereias e décors. Na imagem há fantasmas, sem tempo real.
Isto foi uma experiência (O computador como mestre), Bruno Ministro. Sem plug-in. Escavar a Interact e o seu arquivo impossível de actualizar, de o manter on-line. A impossibilidade da internet como contentor estável e a proposta de utilizar a rede como processo arqueológico da informação. Sempre a aparecer, 403 e 404, negação do acesso, link perdido, códigos a flutuar, barramento de endereços IP e vários servidores: afinal para além de cyborgs, somos piratas.  Foi um poema. A mestria de Ana Hatherly nesta esfera, recolocada por Bruno Ministro, lembra que o digital chegou a ser pensado e interrogado como um espaço a ser ocupado pelo gesto artístico. Poema digital de um computador sem mestre: mestre dos bloqueios e a clarividência da obsolescência sistémica. Sem plug-in. Conhecedor do meio e das suas camadas de edição e função, o autor devolve aos leitores da Interact “Isto é uma experiência”(2000).
Entre genes e bits: a digitalização da carne e os usos da vida, Ana Carolina Fiuza. O dedo e o dígito. Na perda do dedo, podem crescer eventualmente dados. A resposta de Ana Carolina Fiuza ronda a mercantilização dos genes e as conversões entre carne e códigos informacionais, digitalização e simulacro dos corpos e outros mercados adjacentes. Um espaço dito especulativo sobre os usos da vida, onde as fracturas e as discrepâncias sociais e culturais vão a jogo na ciência das ciências: motores da Big Science. O valor dos genes convertíveis para uma ciência bioinformática. Vendas e patentes, fármaco-economia da existência e do conhecimento. Vamos a jogo, estamos em pandemia, somos dados de análise e experimentação demográfica. Alguns dos perigos foram reactualizados neste contributo. A surpresa que traz reside na função do junk DNA — aquele que não gere código e é inútil para a síntese proteica — mas que excessivamente produz a multiplicidade dos corpos nos dados. Um dead link sem função específica que garante a diversidade da vida.
Lapso, Isabel Brison. Temos tentáculos de polvo e tecem teias de aranha num oceano, somos corpos e semi-organismos na construção de memória. A contribuição de Isabel Brison atribuiu outra definição para dead link na adição das palavras lapso/lapsou, alargando a semântica do tema às mutações da linguagem. A página autónoma e desenhada a propósito desta edição instala a operatividade de um arquivo distinto e preciso que presenteia de materialidades os significados acrescidos: imagens, textos, citações, links desaparecidos, falhas a propósito, quedas que revelam a latência da rede. Não temos pois certeza sobre o que vai aparecer ao seguirmos uma hiperligação ali colocada que é, como diz Brison, “a duração limite de uma conjugação instável de endereço, código e servidor”. Este sítio construído não é um lugar da indiferença, é um display, uma metodologia de investigação tentacular. O display é teia: “a spider’s web to catch as much world in it as I can[2]. Não estamos numa dropbox, mas num espaço de abertura. Num canal cheio de carga que dispõe das diversas qualidades da rede, não apenas através das funcionais hiperligações.
Materializações da escrita digital – a fixação intermediada como actualização dos possíveis, Ricardo Guerreiro. Pensar a música concreta como pioneira de novos modos de escrita musical em que a fixação sonora revela por vezes processos de origem totalmente sintética e tecnologicamente dinâmicos. Não confundir SuperCollider com o The Superconducting Super Collider, mas ao mesmo tempo imaginar que os dois aceleram, o segundo partículas no subsolo do estado norte-americano do Texas e o primeiro, código numa plataforma que opera em tempo real síntese de áudio e composição algorítmica. Talvez a questão não seja a velocidade, até porque esta já se tornou instantânea, mas seja a simultaneidade. A caminho das materialidades indeterminadas através de processos artísticos assentes na mediação digital em situações performativas: “Cada performação é um take, um momento de tournage que enuncia possibilidades de representação”. Cabendo à escuta mediar o espaço entre o abstrato e o concreto. Assim como à visão ler as palavras que a tradução transformou em imagem.
GTRA GENERATOR, Ana Vala. Girar, não parar de rodar e voltar ao mesmo lugar. Uma lata levita numa montra cinética, revelando de todos os ângulos possíveis este modelo cilíndrico. O objecto exposto revela-se, de modo previsível, indiferente ao ângulo escolhido. Mas ele está possuído num movimento contínuo sobre o seu eixo, e uma inteligência — que não separa palavra de textura, volume, reflexos — digitaliza tudo sem acerto possível, pois nada se fixa neste enquadramento que ela pensa ser bidimensional. Aqui sim, é de instantaneidade que se trata. Dela e dos seus lapsos. O tradutor como máquina de poesia concreta, ele scaneia, dispara, oblitera e produz novos signos linguísticos: Pancada!?
Estética da espera, política da velocidade, economia da esperança: considerações sobre o throbber, Manuel Bogalheiro. Apesar da aparente velocidade e aceleração, todavia ainda se espera. E essa espera formula-se num objecto-imagem: throbber. É sobre a aparição deste objeto nos ecrãs que discorre o contributo de Manuel Bogalheiro, centrado na interrupção da experiência e como isso é estímulo para a produção de várias subjectividades e vários comportamentos na relação entre o utilizador e o interface. Pois esta suspensão ganha aqui uma imagem. E já não sabemos do que foi suspendido, há-de chegar. Na imposição dessa imagem detecta-se uma ambiguidade fracturante que coloca a espera como “desvio libertador” ou como um momento hipnótico que aumenta as expectativas na reposição de tudo o que foi desejado.
Aqui está a possibilidade, por instantes, de imaginarmos materialmente um completo dead link nas redes. Um osso, disse antes, na Entrevista, Jonathan Uliel Saldanha. Uma última paragem em modo de diálogo focado em projectos concretos. Sobre as metodologias implícitas da prática artística e a plasticidade da esfera digital. Uma esfera estranhamente material quando pensada como ferramenta processual. Não há dissolução absoluta. Os limites físicos ainda fazem a ancoragem do corpo às forças gravíticas, e é para ele que se constrói a mise-en-scène. E pensando em todas as encenações e instalações, de Oxidation Machine (2016) a Mercúrio Vermelho (2020), o digital é antes um espaço de atravessamento entre territórios concretos. Fica uma ideia: “Um culto da internet feito à volta de dead links”.
Entre o throbber e o osso, foi assim que terminaram as contribuições para este número. E se a luz dos pirilampos se tornasse azul-roxo, como a cintilação dos ecrãs em qualquer superfície espelhada? E o mistério será uma coisa meramente técnica?

 

 

Notas:

[1] Hito Steyerl, “Too much world: Is the Internet Dead?”, p.16-17.

[2] Apud. Carter, Angela. “The Scarlet House”, in Burning your Boats. London: Vintage, 1996. Cit. Brison.

 

Bibliografia:

Steyerl, Hito, “Too much world: Is the Internet Dead?”, in ARANDA, Juliet et al. (ed.) – The Internet Does Not Exist. Berlin: Sternberg Press, 2015, pp. 10 – 26.

Woolf, Virgina, Um Quarto só para si, trad. Maria de Lourdes Guimarães, Lisboa: Relógio D´Água, 2005 (original publicado em 1929).