O vento varreu-lhe as páginas da vida. Correu ansiosa a apanhá-las, mas logo as deixou ir. Viu que a sua Vida era o vento.
– Livro do Vento
Era uma pessoa muito atenta. Desaparecia em tudo o que via.
– Livro da Atenção
Tinha imenso respeito pela verdade. Recusava-se a ter ideias.
– Livro da Verdade
Tinha muito boa vista. Via tudo em cada coisa.
– Livro da Boa Vista
Parecia uma pessoa distante. Vivia em comunhão íntima com tudo.
– Livro do Distanciamento
Via que todas as formas e linhas do mundo eram as do seu corpo. Todos os espelhos se quebravam à sua passagem.
– Livro da Quebra dos Espelhos
Tinha muitas formas. Um cadáver num campo de cremação à beira do Ganges, o primeiro vagido de um recém-nascido, o arrepio do primeiro amor num coração adolescente, uma folha arrebatada pelo vento de Outono, uma serpente prateada a ondular nas águas, o silêncio dos que partem para sempre, o rosto de quem lê estas linhas. Tinha muitas formas. Todas se convertiam umas nas outras no imenso Espaço sem forma. Viu que desde sempre era esse mesmo Espaço. Tudo se iluminou.
– Livro da Iluminação
Nunca ninguém o viu. Aparecia em todo o lado.
– Livro da Omnipresença
Aprendeu finalmente a ler: esquecia-se das horas a contemplar o espaço em branco entre cada letra.
– Livro do Aprender a Ler
Deixou de se ver como um ponto no espaço. Passou a ver-se como o espaço em todos os pontos. Foi o princípio e o fim de tudo.
– Livro do Princípio e do Fim
Jamais poderia esquecer os momentos fundamentais da sua vida: aqueles em que não aconteceu nada. Nada. Absolutamente nada.
– Livro das Coisas Importantes
Viu que todos os túmulos davam em berços e todos os berços em túmulos. Fartou-se de tamanho carnaval e enterrou-se vivo na imensidão.
Dizem os mais velhos que ainda aparece no mundo: no ladrar de um cão, num copo de vinho, num pateta alegre, numa erva daninha, num acento fora do sítio, numa sensação cujo lugar nunca se encontra.
Dizem os loucos que o vêem por todo o lado. E as crianças, quando se pensa que chamam pelas mães, é por ele que choram.
– Livro do Enterrado Vivo
Sentou-se. Convidou-se para jantar. E devorou-se. Com requintes de bondade.
– Livro da Última Ceia
Dava muita importância aos aplausos. Sabia ser o momento certo de nunca mais ali voltar.
– Livro dos Aplausos
O seu último suspiro foi o primeiro vagido com que apareceu do outro lado da sombra.
– Livro do Morrer Nascendo
Deixou de usar espelhos. Passou a olhar para o mundo.
– Livro da Boa Imagem
Farto de olhar para fora, resolveu olhar para si. Nada viu, nem sequer o nada. Passou-se. Há quem diga que se transformou no ar que respiramos.
– Livro da Atmosfera
Entrou numa pastelaria. Começou a ver de onde vinha cada coisa: os bolos, as bebidas, as pessoas, as mesas, as cadeiras, as chávenas, o soalho, os jornais antigos sobre o balcão. Começou a ver as relações de tudo com tudo. Começou a ver que nada tinha início nem fim. Começou a ver o inteiro cosmos a acontecer ali, a estremecer em si e em todo o lado. Pediu um bolo de arroz, ante o qual se ajoelhou religiosamente. Houve um silêncio de catedral. Porque todos nele viram a Realidade. O que alguns chamam Deus.
– Livro da Visão
Colou os ouvidos à realidade. O silêncio rebentou-lhe os tímpanos.
– Livro da Escuta
Sentia a angústia de se ver como um ponto perdido no infinito até que teve a alegria de se encontrar como o infinito a florir num ponto.
– Livro do Florescimento
Um dia leram-lhe a sina. Ficaram perplexos. Tinha a Via Láctea nas palmas das mãos. E quem as contemplava logo se tornava ave a voar na imensidão.
– Livro da Sina
Olhou para o relógio: dava todas as horas. Viu o calendário: marcava todas as datas. Consultou o gps: localizava-o em todo o lado. Procurou ansiosamente um espelho: viu o cosmos em ebulição. Com um arrepio nas entranhas, as pernas a fraquejar, os olhos marejados de lágrimas, deixou a mente cair e cedeu enfim ao estranho e doce sabor da realidade.
– Livro do Apocalipse
Viu a futilidade de todas as suas ideias, desejos e projectos. Despiu-os. Descobriu-se o suave e invisível manto de amor que envolve toda a Terra.
– Livro das Visões
Caiu em si. Não mais parou.
– Livro das Quedas
Viu um pássaro a voar em amplos círculos sobre o seu cadáver. De vez em quando dava um grito e descia para o debicar. Súbito sentiu na língua o sabor da carne podre.
– Livro das Metamorfoses
Passava a vida a piscar o olho à realidade. Até que um dia a realidade lhe deu um grande estalo. Despertou.
– Livro dos Imprevistos
Começou a atravessar as paredes. Soube então que deixara de estar morto.
– Livro da Ressurreição
Era um orador brilhante. Todos o aplaudiam sem o compreenderem. Até que um dia ficou em silêncio. Ninguém o aplaudiu. Todos se compreenderam.
– Livro da Arte de Bem Se Calar
Fazia questão de vestir muito bem. Andava sempre nu.
– Livro da Elegância
Recuperou a visão. Deixou de ter perspectivas.
– Livro da Boa Vista
Não falava nem escrevia. Ora murmurava, ora gritava, a bordejar os longos silêncios em que vagava encantada pelo mundo ou se sentava à sombra do céu e da terra, vendo e amando tudo no espaço vazio, num grão de terra, numa frágil flor ou nos olhos de um animal errante. Logo houve quem traduzisse isso em palavras e se assumisse seu discípulo. Fizeram imagens suas e cultuaram-na em templos e altares. Nasceram escrituras, religiões e filosofias, com códigos rituais, éticos e metafísicos, disputando entre si a verdadeira interpretação e a plena fidelidade ao seu ensinamento. Não tardou que surgissem também movimentos sócio-políticos e todo o tipo de projectos de salvação e transformação do mundo a reclamar-se do seu nome. Vendo isto, logo desapareceu para de onde jamais saiu: o íntimo de tudo. E os humanos, a abraçar-se e esmurrar-se uns aos outros, precipitaram-se ainda mais sonora e triunfalmente no imenso engano.
– Livro da Origem dos Enganos
Imaginaram que havia algo melhor a atingir. Organizaram grupos, tribos, nações, impérios. Partiram ávidos em todas as direcções. Comeram a terra. Comeram os outros seres. Comeram-se uns aos outros. Cada um comeu-se a si mesmo. Os que sobreviveram viram que afinal tudo havia sido sempre perfeito. E regressaram à Grande Irmandade.
– Livro do Grande Regresso
Sentia uma enorme gratidão para com todos os professores que lhe haviam ensinado o nome das coisas, mas uma infinitamente maior devoção por todos os mestres que o haviam levado a experimentar que as coisas não têm nome. Nem o de coisas.
– Livro da Aprendizagem
Bebeu a própria sede. Ficou saciado para sempre.
– Livro das Bebidas
Jurou nunca dizer senão a verdade. Calou-se para sempre.
– Livro do Juramento Solene
Nunca mais se viu. Soube então que se encontrara.
– Livro do Encontro
Abriu os braços. O mundo saltou-lhe para o colo.
– Livro da Confiança
Era um grande dançarino. Dançava até cair para o céu.
– Livro da Dança
Fazia jejum de si mesmo: o mundo imediatamente se lhe convertia num imenso banquete.
– Livro do Mais Opulento Jejum
Tinha visão. Não via o que os outros em geral viam e via o que os outros em geral não viam. Não via seres a nascer e morrer, mas sim mutações contínuas do visível para o invisível e do invisível para o visível. Não via bons e maus, mas sim processos de consciência a fazer sempre o que lhes parecia o melhor segundo o seu nível de evolução. Não via géneros, espécies e indivíduos, nem seres superiores, iguais ou inferiores, mas sim a Vida a manifestar-se a si mesma em infinitas e sempre mutáveis e únicas formas. Na verdade, não via ninguém a ter esta visão, mas sim a Visão, inseparável da Vida, a ver-se a si mesma.
– Livro da Visão
Contemplava o céu. As nuvens recordavam-lhe todos os rostos que havia tido.
– Livro da Saudade
Lia com curiosidade as notícias de que os partidos tinham por vezes audiências com o Senhor Presidente da República para falar disto e daquilo. Tudo coisas muito importantes. Não os invejava. Ela tinha todos os dias audiências com vagabundos, bebés, velhotes à janela, crianças a correr pelas ruas, adolescentes apaixonados, roupa estendida a ondular ao vento, gatos a miar pelos telhados, nuvens a fugir pelo céu, gritos de gaivotas, lagartas das couves, pedras das calçadas. Tinha todos os dias audiências com a Vida.
– Livro das Audiências
Viviam um no outro sem se nomearem.
– Livro do Amor
Viu o Deus-menino. Sorria no meio do lixo dos embrulhos de Natal.
– Livro da Noite de Natal
Não via aves a voar no céu. Via céu a voar nas aves. Muitos a tinham por perdida, mas sabia-se encontrada.
– Livro do Que Se Sabe Mas Não Se Pode Dizer
Sentia-se estranhamente bem, em paz, leve, feliz. Era como se um grande fardo lhe tivesse sido retirado dos ombros. Na verdade algo tinha saído para seu bem da sua vida. Mas não sabia propriamente o quê. Até que súbito descobriu: o que havia desaparecido da sua vida era ela própria.
– Livro do Desaparecimento
Sentia que havia em si algo estranho. Finalmente descobriu. Era ter um nome.
– Livro da Estranheza
Tinha sempre resposta pronta para tudo. Vivia com o silêncio na ponta da língua.
– Livro das Respostas
Os humanos discutiam a origem, o sentido e o fim das coisas. Ela dançava, dançava, dançava. Ninguém sabia o seu nome. Alguns murmuravam que era a Vida.
– Livro da Vida
O que não vai a bem, vai a bem.
– Livro do Bem
Foi o maior dos poetas. Nunca escreveu senão no ar e na água. Ninguém o conhece. Mas a obra brilha para sempre no corpo do mundo.
– Livro do Maior Poeta
Inventaram direcções, desenharam mapas, construíram bússolas. Perderam-se.
– Livro do Grande Extravio
Era um analfabeto. Só sabia ler livros.
– Livro da Literacia
Paravam no meio da multidão, nas ruas, nos centros comerciais, nos lugares públicos. Ficavam muito tempo imóveis, sem dizer nem fazer nada. Depois iam-se embora. Às vezes distribuindo sorrisos e abraços por quem se juntava à sua volta. Eram cada vez mais.
– Livro dos Dissidentes
Vivia na angústia de não saber qual o seu lugar no mundo. Até que descobriu que era o mundo. E que nele nunca teria lugar.
– Livro da Ausência de Lugar
Faziam comícios de silêncio. A sua propaganda era as suas vidas, o seu imenso amor silencioso por todos os seres e coisas. A sua bandeira era o céu e o seu símbolo o espaço. Faziam campanhas respirando. Reconheciam-se pelo espanto e doçura que irradiavam. Votavam sendo e elegiam tudo, amando sem preferências. Tornaram-se a maior força política de sempre. Eram o espaço em branco nos boletins de voto. Eram o espaço da consciência antes de haver pensamentos. Eram o que és.
– Livro da Grande Política
Dia a dia perdia os contornos. A morte já não o imaginava.
– Livro do Desvanecimento
Passou a vida convicto de estar certo. Na hora da morte viu que sempre estivera errado. Partiu em paz.
– Livro do Acerto Final
Partiu sem se despedir. Para muito longe. Nada levou consigo, a não ser a vida e a morte. Nos bolsos rotos.
– Livro da Grande Partida