1.
O realizador argentino Lisandro Alonso possui em sua trajetória uma estética expressiva, marco importante na configuração do que depois ficou conhecido como “cinema de fluxo”. Pois tanto em Alonso como em outras obras de produção autoral do início dos anos 2000, passou-se a localizar um movimento de primazia sensorial em detrimento da organização. Nele, nega-se o discurso, nega-se algo que já de antemão há-de ser dito, visto, vivido. É preciso “resguardar o mundo de seu estatuto aleatório, indeciso, movente” (Oliveira Jr, 2010: 92). Assim, inicia-se um movimento que lentamente começa a abandonar o terreno da mise en scène clássica, do plano e da montagem enquanto síntese, para o nascimento de um cinema que visa um livre escoamento das imagens e sua potência como experiência afetiva sob o espectador. Na latente necessidade de compreender estes novos traços e suas diferentes correlações, surge a partir de críticos da Cahiers du Cinéma, como Stéphane Bouquet e Jean-Marc Lalanne, a elaboração de um termo capaz de abarcar esta nova linguagem. No entanto, sem se configurar como um manifesto ou ato consciente, a “estética do fluxo” é em realidade um novo posicionamento do olhar perante o mundo, onde o real, cada vez mais espectralizado, passa a desfocar o sujeito, suas relações, assim como sua própria imagem e narrativa. Conclui-se aqui uma troca: o núcleo duro da arte cinematográfica é substituído por uma “rarefação do cinema” (Oliveira Jr, 2010).
Neste ensaio propomos não apenas enquadrar o último filme de Lisandro Alonso, Jauja (2014), dentro desta estética cinematográfica em questão, mas a partir dela, movimentar uma relação de oposição entre a ideia de fluxo e fragmento. Pois em Jauja, junto à já usual estrutura lacunar e indeterminada do realizador, também estão mesclados clássicos sistemas fabulares, inclusive de alusão às estruturas clássicas do Western americano. O que sobra é um conjunto de retalhos cinematográficos que em sua desarticulação criam um efeito de paradoxo. Se por um lado temos um faroeste bem arquitetado, ao longo do filme esta mesma arquitetura progressivamente se desmancha, como “se fosse preciso engendrar e descombinar as molas que contam a história para então começarmos a ver” (Gonçalo, 2014: para. 5). É assim que, em oposição ao fluxo e seu movimento de rarefação enquanto linguagem cinematográfica, evocaremos o fragmento como a intenção de artificialidade e ruptura que o filme também possui e joga com. Interessa a este ensaio refletir não apenas a maneira como esta oposição é construída, mas como as peças fracionadas deste quebra-cabeça são costuradas de volta a uma sensação de fluidez e ambiguidade ao espectador.
2.
No deserto da Patagônia, um capitão dinamarquês do século XIX busca a filha desaparecida, porém, nesta falsa epopeia de heróis, o que na verdade se dá é uma expedição do desafeto, onde pai e filha rompem seus simbolismos e pulsões. O filme se inicia com Ingebor fugindo do acampamento onde o pai lidera uma caravana militar de locais. Junto de Coto, um dos jovens soldados da campanha, ela foge de sua tutela rumo ao próprio universo erótico-iniciático. Rapidamente Coto é morto, a menina sequestrada, e o capitão Dinesen, desesperado, inicia uma solitária expedição em busca do elo perdido com a filha. Mas se de início, em um curto primeiro ato, Alonso nos coloca todas as peças de um jogo de xadrez melodramático, ao resto do filme só resta o movimento de expelir suas próprias amarras. Se o plot e a imagética de Jauja remetem diretamente ao Western clássico do cinema americano – especialmente a Rastros de Ódio (1956, de John Ford) – o filme em realidade trata de outras explorações, outros territórios de domínio e outras cartografias a serem desenhadas. Ao contrário de suas obras anteriores, Alonso cria um universo bastante estratégico para que sua falsa epopeia possa habitar. Como um preparado científico, o filme estabelece muito bem seus artifícios para que depois possa nele experimentar “modular” a realidade, ver o que nela vive e o que nela morre.
3.
A dicotomia estética entre fluxo e fragmento acontece em Jauja de diversas maneiras. Apesar do filme fazer alusão a um contexto histórico-geográfico específico que remete à campanha da “Conquista do Deserto” do século XIX pelo General Roca, na Argentina, a construção de seus espaços são como que heterotópicos (Prysthon, 2014), justapondo diferentes contextos culturais, temporais e espaciais. Jauja, então, desde o início estabelece-se como esse espaço que reflete uma constante alternância e alteridade, “(…) tem o poder de justapor em um só lugar real vários espaços, vários posicionamentos que são em si próprios incompatíveis” (Foucault, 2009: 418 apud Prysthon, 2014: 15). Mais do que isso, “Jauja” é a terra propícia para a disseminação inquieta de contradições e sonhos. É o universo ideal para os praticantes de “imaginações geográficas”, o deserto político-histórico como evocação do “(…) fim do mundo, produto do ‘mal estar metafísico’ provocado pela descoberta do Novo Mundo pelos europeus” (Prysthon, 2014: 3) e igualmente presente dentro do imaginário latino-americano.
Este mesmo deserto mítico e já de início retalhado em sua inconsistência é quem devora Ingeborg e é também devorado por ela: “Eu gosto do deserto e da maneira como me preenche”, já anunciava em desejo intimidador ao pai. Em um importante plano de passagem, Ingeborg e Coto, sentados sobre a relva e semi despidos, começam a se deitar e em deslize vão desaparecendo para fora de quadro. O que nos resta é observar o que ficou de fundo e que ganhou evidência: a paisagem onde o vento movimenta nuvens e arbustos, agora encarnações do desejo desvirginado de Ingebor e onde o pai vai tão prontamente, perde-se, pois a partir dali não mais a veremos.
4.
Dinesen avança em sua busca e com ela sofre mutações. Paradoxalmente às paisagens que continuam extensas, as imagens se interiorizam, gerando humidade e rugas ao filme, e logo redirecionam o caminho do homem, que ao seguir a figura mitológica de um cachorro perdido, encontra-se com o personagem de uma velha em uma gruta. A velha é Ingebor, incorporada pelo deserto consanguíneo do filme e pelo anseio já afrouxado do pai. Perplexo, Dinesen em realidade encontrou o oráculo da própria filha, que mal sabia mas de alguma forma procurava, agora desvelado pelo tempo, mais velha e mais sábia do que ele mesmo. A trama, então, dá um salto em si mesmo. Em uma mansão de uma Dinamarca contemporânea, a mesma Ingeborg acorda em sua cama de lençóis modernos, toma café da manhã e sai para passear com seu cachorro, que a despeito de um mesmo movimento do filme, contraiu uma doença imuno reativa: o animal, sem compreender o próprio sofrimento, e que foi gerado pela partida da menina, ataca a si mesmo, causando feridas em sua pele. Ela caminha pelos bosques afastados do castelo moderno e no chão reencontra um mesmo artefato – o soldadinho de chumbo – que carregava e perdeu na fábula anterior. O brinquedo infantil, jogado na pele flácida e transponível da água, meio em descarte meio em despedida, tona-se em retrospecto, um detalhe de “peso incomensurável” (Soares Jr., 2015).
5.
Nesta justaposição de espaços e elementos que se afetam em continuum, Jauja, evoca o fragmento dentro de sua estética de fluxo em múltiplos sentidos que se espelham. Cenas, objetos e diálogos passam a se contaminar em reciprocidade como um corpo em quarentena – a imagem-afecção de Deleuze (1983). Dentro deste mesmo movimento patológico, o filme parece por consequência implodir e apagar as fronteiras de suas próprias bordas fílmicas, tornando imperceptível as mesmas evidências que outrora o afetaram. Nessa imuno reação, tal qual o cachorro que não consegue racionalizar as próprias emoções, o resultado são feridas; fissuras do filme em contato direto com o real, este lugar onde a separação entre os mundos e seus respectivos elementos é extinta. Isso porque, como bem coloca o crítico Luiz Soares Jr. (2015), o jogo de Jauja não teria a mesma força sugestiva não fosse o “bazinismo” de sua estética: “(…) a trajetória de Gunnar [Dinesen] por uma paisagem eivada de anfractuosidades, cadáveres e fontes não teria a mesma carga metafórica se este não fosse encontrando, ao longo do caminho, as pistas sem as quais o Real não seria o que agora é”. E é justamente neste “bazinismo” que parecemos encontrar a chave deste nosso paradoxo entre fluxo e fragmento. Pois é nele que reside a possibilidade de impurezas, a convivência de realidades ou partes alternadas. Afinal, como já disse André Bazin, o verdadeiro cinema é uma arte impura, “sempre à beira de ser algo outro” (apud Quintín, 2014: para.9).
Referências Teóricas
Bouquet, S. (2002). “Plan contre flux” In: Cahiers du Cinéma, n. 566, março, pp. 46-47. Paris.
Deleuze, G. (2005). A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense.
Gonçalo, P. (2014). “Rastros que as paisagens desmancham” In: Revista Cinética, maio 23 em “Coberturas dos Festivais”. Disponível em: http://revistacinetica.com.br/home/jauja-de-lisandro-alonso-argentinaalemanhabrasildinamarcaeuafrancaholandamexico-2014/. Acesso em 06/09/2019
Oliveira Júnior, L. (2010). O cinema de fluxo e a mise en scène. São Paulo: USP/ECA.
Prysthon, A. (2014). “Paisagens sonhadas: imaginação geográfica e deriva melancólica em Jauja” In: Revista da Associação Nacional de Pós Graduação em Comunicação: Compós.
Quintín (2014). “Into the Unknown” In: Film Comment. New York: Film Society of Lincon Center, v.50/n.5, September/October.
Soares Júnior, L. (2015). “O Paraíso Reencontrado” In: Revista Cinética, setembro 18 em “Em Cartaz”. Disponível em: http://revistacinetica.com.br/home/jauja-de-lisandro-alonso-argentinaalemanhabrasil-dinamarcaeuafrancaholandamexico-2014/. Acesso em 06/09/2019.