De William Shakespeare, na tradução de Sophia de Mello Breyner Andresen, encenação de Luis Miguel Cintra, co-produção do Teatro da Cornucópia e da Companhia de Teatro de Almada.
«Ouvi contar que certos criminosos, assistindo a uma peça, foram de tal forma, e até ao fundo da alma, atingidos pela arte da cena que logo confessaram seus maus actos. Porque o assassínio, embora não tenha língua, há-de falar com boca miraculosa.» (Hamlet, Acto II, Final da Cena II1)
0.
Em 20092, no Colóquio Internacional Percursos da Genética Teatral, discutimos se o observador de um processo criativo poderia estar implicado no próprio processo de trabalho. Essa discussão levou a identificar uma tendência que indicava que sim. Mas foi um «sim» bastante cauteloso movido pelo exacto rigor e por uma distanciação que o trabalho científico exige. Este pequeno texto, de alguma forma, pretende continuar a contribuir para essa reflexão, na medida em que procede desse modo e aproxima-se dos projectos artísticos tanto quanto pode, para os investigar. Assim, espero poder reforçar o ponto de vista de que não existe, neste género de investigação, uma obrigatoriedade de distanciação do objecto artístico, sendo até mesmo talvez preferível uma aproximação e envolvimento, quanto maior melhor. Ao defender esta posição, neste tipo de trabalho de actor, gostaria ainda de, na defesa deste movimento de envolvimento, chamar também a atenção para a duração de observação que é exigida a um investigador que acompanha um género de trabalho artístico que exige, preferivelmente, dedicação exclusiva aos artistas que nele estão envolvidos. Isto apesar de ser cada vez mais raro, se não mesmo impossível, encontrar projectos que consigam reunir estas condições ideais de trabalho; digo, apenas num projecto e em exclusividade. Chamar, assim, a atenção para uma reflexão que se inicia3, num momento em que as circunstâncias de produção artísticas estão muito espartilhadas e na maior parte das vezes empurram os actores para um desdobramento em vários trabalhos. Neste caso muito específico de trabalho que abordo, que se baseia na construção de relações entre personagens inventadas, na invenção e interpretação de personagens de um texto, a necessidade de concentração em exclusivo seria, diria mesmo, fundamental devido à dedicação que exige. No fundo, gostaria de lembrar que é necessário voltar a ter a possibilidade de dedicação em exclusivo a uma encenação, a uma interpretação, como aconteceu num período que decorreu entre as primeiras encenações de Stanislavski de textos de Tcheckhov e o final do século XX. Talvez assim, recorrendo a esse antigo saber, seja possível voltarmos a lembrar-nos, pelo menos, de como abordar a pergunta que deu título ao colóquio, «How does it begin?»4. Maria Helena Serôdio resumiu-o assim em 2001:
«Recentemente, ao perspectivar o percurso histórico do “teatro de arte” e ao designar-lhe as coordenadas principais, Georges Banu5 referiu a sua óbvia filiação a Stanislavski e caracterizou-o como um processo de maturidade. Os seus cultores revelam, em sua opinião, “as virtudes do tempo longo, da lentidão, do saber artesanal e do código de moral das antigas corporações”6, e apontam para si próprios exigências simultaneamente éticas e estéticas no trabalho que desenvolvem no seio de um colectivo. Assim terá sido com Copeau, Antoine Vitez ou Giorgio Strehler, e assim é ainda com Ingmar Bergman, Peter Stein ou Patrice Chéreau […]»7
1.
Dado o meu background de actor amador, fui atraído exclusivamente pelo estudo do teatro que tem acesso e conhecimento das metodologias, de como se pratica, seja a técnica de trabalho de actor, seja a organização de dramaturgias, ou o seu funcionamento enquanto disciplina artística. Portanto, tudo o que se relaciona com os ensaios, com os actores, com a leitura que é feita de uma peça ou de um texto literário, ou com uma criação a partir de outros materiais ou impulsos. Interessei-me assim pela Genética Teatral, enquanto método de estudo e de análise de ensaios. Para o aprofundamento do estudo dos espectáculos tudo8 importa. Importa assistir à apresentação — ler a peça, quando for caso disso, assim como materiais de apoio, quando existirem –, mas não só, tal como para um estudante de literatura ou de arquitetura é importante ler, ou ver a obra e recorrer a recensões e edições críticas, entre outros materiais extratextuais, também é necessário recorrer à história genética da própria obra, assim como à aleatoriedade do sujeito que investiga. O mesmo se passa no estudo do trabalho dos encenadores, actores, dramaturgos. É necessário estudar os ensaios e acrescento, se for possível, de todos os rascunhos, como recorda Sophie Proust9, textuais, cénicos, mas também estudar os testemunhos que se produzem, notícias, críticas, conversas, experiências. No fundo é necessário investigar e procurar os vários materiais que se reúnem à volta de um texto e/ou espectáculo num determinado arco de tempo. E aqui — a propósito da questão temporal e de Hamlet, que é a peça e espectáculo a que nos vamos referir — é inevitável referir a fala da personagem homónima, numas das ocasiões em que disserta sobre a finalidade do teatro:
«cuja finalidade, tanto no começo como agora, foi e é, por assim dizer, erguer um espelho em frente à natureza; para mostrar à virtude o seu próprio rosto, ao mal a sua própria imagem, e a cada século e a cada encarnação do tempo a sua forma e o seu cunho […]»10
Características marcantes.
Após a investigação de mestrado que realizei sobre o Teatro da Cornucópia, posso afirmar que, embora exista uma coordenação e orientação do encenador Luis Miguel Cintra, as características mais marcantes que identifico são as que remetem, em simultâneo, para uma noção de liberdade e de responsabilidade num trabalho colectivo de actores. Existe um acompanhamento e uma descoberta em grupo e, simultaneamente — porque no trabalho de actor, o encenador acompanha cada actor de maneira diferente e em função das características e personalidade de cada um — um acompanhamento individual. Todo o trabalho está alicerçado na inteligência dos actores. Este é o ponto de partida e de chegada, porque são eles que terão a responsabilidade, em cada espectáculo, de «animar» a personagem, serão eles a matéria de construção da personagem. O encenador orienta, acompanha e incute confiança aos actores, solicitando-lhes na fase de apresentação do trabalho sobretudo a actualização das cenas. Neste tipo de processo de construção de um espectáculo está sempre implicada uma noção de desenvolvimento pessoal dos actores, de transformação. Reforço que isso acontece sobretudo neste tipo de teatro, tal como acontecerá noutros certamente, em que se «actua» tão próximo da leitura e interpretação de uma obra através da vida e do pensamento de cada um que participa. No fundo, aquilo a que Maria Helena Serôdio se referiu quando nomeou o posicionamento ético e político dos actores11 e citou Luis Miguel Cintra:
«para representar [o actor] tem de decidir, escolher de si o que quer pôr em cena, inventar-se no seu ponto de vista sobre o que vai representar. Tornar presente ao público também o seu pensamento. Representar é, por natureza, tomar posição. Transforma-se, representa, para estar lá.»12
«É importante que cada actor assuma a sua personalidade, a sua individualidade de criador e de cidadão.»13
Características distintivas.
Saliento três pontos, para mim, de facto distintivos, que julgo efectivamente necessário sublinhar e que sejam talvez cada vez mais importantes de lembrar, no trabalho desta companhia:
Primeiro: A profunda centralidade do trabalho de mesa que é a base de todo o trabalho. A análise para o intérprete, a dramaturgia do texto e a construção com a imaginação que aí é realizada. No fundo, começa-se à mesa de trabalho uma construção através de uma improvisação com a imaginação individual e sobretudo conjunta, em discussão, acordo e descoberta. Talvez até, neste momento, seja mais explícito o trabalho de improvisação na imaginação dos actores, em cumplicidade, num trabalho colectivo, do que nos primeiros ensaios já no palco de pé, ou no cenário de ensaio.
Segundo: A esclarecida distinção do que é a análise dramatúrgica do texto do espectáculo, daquilo que é a análise dramatúrgica da personagem para o intérprete, o que cheguei a nomear «intérprete-turgia». É de facto isso que constitui o coração, o motor, o núcleo da construção do espectáculo, a dramaturgia que o intérprete faz a partir da personagem.
Terceiro: O pensamento. Os actores depois de procurarem, encarnam em cena, no palco de ensaio, uma matriz de pensamento das personagens configurada nas primeiras semanas de ensaios à mesa. Uma matriz que se constituiu nas leituras realizadas, em função da forma de pensar das personagens. A importância e o destaque dado ao pensamento das personagens (através dos actores), no fundo, constituem a materialização e o prolongamento para palco de um profundo prazer em ler e interpretar as peças, pela equipa e pelo encenador.
Durante todo o processo, nunca se larga a leitura, nem o pensamento, nem as ideias e os acontecimentos que os primeiros fazem surgir. Ou, se quisermos, nas várias fases dos ensaios, quando é necessário voltar atrás para tirar dúvidas e esclarecer, é sempre a estes elementos que regressamos. E volta-se atrás às leituras todas as vezes que for necessário, até se compreender totalmente o pensamento das personagens. Inclusivamente, o aquecimento do pensamento das personagens será feito pela leitura dos textos.
Sobre este aspecto entendo necessário referir a questão do cuidado com «o outro» e do foco «no outro», o que poderia constituir um quarto ponto, assim como a actualização permanente poderia ser um quinto. Mas pretendo passar a palavra aos actores, apesar do aviso conhecido de Stanislavski14 sobre a capacidade de comunicação destes. Concordo que, por vezes, podem não se explicar muito bem, mas tenho para mim uma certeza inabalável: a experiência individual que adquirem na interpretação de várias personagens e pontos de vista, sobretudo a experiência corporal, psicológica e intelectual, leva-os a compreender o que é muito difícil de colocar em palavras, precisamente porque é percebido exclusivamente através de uma construção artística15 pessoal, neste caso, pela representação.
«E trata-se de uma experiência individual e pessoal, porque no final de contas apenas se pode concluir que, apesar de existirem orientações bem definidas para o trabalho de actor, não existem regras estanques, sendo necessário que cada qual descubra como é que individualmente opera com estas ou outras indicações.16
Por isso mesmo, aqui ficam, no ponto seguinte (2), estas tentativas dos mais jovens e, na verdade, alguns dos últimos actores do Teatro da Cornucópia. À sua maneira, pelas suas próprias palavras17, dão testemunho de aspectos individuais do seu trabalho e comprovam algumas das características declinadas em cima. Passo assim, a palavra aos actores e apresento em seguida excertos das entrevistas que realizei a Guilherme Gomes, intérprete de Hamlet, a Nídia Roque, intérprete de Ofélia e a Isac Graça, intérprete de Horácio.
As citações de cada actor são introduzidas pelas respectivo nome, mas também pelo nome da personagem que interpretam e respectiva imagem. E estão organizadas por temas.
2.
Hamlet, interpretado por Guilherme Gomes.
Nesta casa – o Teatro da Cornucópia – aprendi sempre que se algo não corre bem sobre o palco, se há um momento em que nos perdemos ou algo toma indevidamente a nossa atenção, agarramo-nos ao colega, e ele está lá para nos amparar.»18
O Cuidado com o outro e a actualização da cena.
«A diferença maior [entre apresentar na Cornucópia e em Almada] foi a do som, a criação de ambientes de que o encenador fala muito. Depois de continuar a pensar parece que agora há uma concepção mais completa de quem é Hamlet, nova informação com que temos de jogar. A dificuldade é jogar com isso tudo, com tudo o que foste pensando e que o encenador foi dando. […] A cada ensaio acrescentas essa informação, a cada ensaio experimentas uma coisa nova, para depois começares a jogar com isso tudo. Informalmente fomos retomando uma espécie de consciência do espectáculo.»
Hamlet fala sobre Horácio e Horácio fala sobre Hamlet.
«O Horácio é um sábio e tem uma perspectiva da vida muito adulta e tenta passar isso para Hamlet. É uma relação muito especial. Hamlet está muito engolido por uma tragédia especial. Mas por coisas que o Horácio diz e porque Hamlet tem Horácio sempre presente, acontece que no final do espectáculo Hamlet já é velho e já percebeu muitas coisas que o Horácio lhe quis transmitir e já pode morrer. No fundo é também uma morte por consciência, porque percebeu o que é a vida. É como se fosse um ciclo de aprendizagem.»
[…]
«Tem de haver um grande trabalho de pormenor. A acrescentar a isto há uma série de informações novas que foste pensando ao longo destes dois meses. É mais claro para mim agora, do que antes, o crescimento de Hamlet, é como se apanhasses um miúdo e o visses a ficar velho. Os saltos de consciência. [Pensamento[ […]. É como se ficasse velho. E mesmo a viagem a Inglaterra. Ele volta diferente. Mesmo com a ideia de herança. A certa altura ele percebe que não existe essa obrigação. Ele prescinde. Fica um pouco como o Horácio que não tem essa obrigação porque não é príncipe. Ganha a sensação de liberdade.»
[…]
«No fundo ele percebe que a maldade é uma coisa normal e que no fundo a própria vida também não tem importância. É também a consciência histórica. Todos os factores contribuem para isto ir acontecendo.»
«No fundo há um pensamento constante, um trabalho de inteligência constante. Mesmo quando passa pelo corpo. Há uma inteligência do corpo.»
Os apontamentos e os ensaios.
«Eu tenho muitos apontamentos, são muito úteis, mas não podemos tentar recriar uma coisa que já estava feita. O sítio é diferente e as pessoas são diferentes (viajaram, foram à praia, pensaram novas coisas). Portanto tens de passar por um processo de criação novo. Tens de pensar outra vez. Não é um trabalho de memória. Ou seja, em parte tem isso, mas é um trabalho activo intelectualmente. Porque não vais recriar nada, vais fazer. Se não funcionar como estava antes, como é que fazemos? Não podemos estar a focar-nos numa imagem que tínhamos. Como é que fazemos? Temos de agir perante isso, temos de ter parte activa.»
Responsabilidade ética e política.
«Há um tempo fizemos o Pílades (de Pasolini) e isso fez com que começássemos a ter uma consciência política muito grande. Identifico muito a ideia do Luis Miguel, a não identificação por determinados valores e o consequente desinteresse e desconsolo pela política. Um sistema tu podes dominá-lo a partir da tomada de consciência das suas regras. Tenho pensado que são cometidos crimes muito maiores dentro da legalidade […].»
Ofélia, interpretada por Nídia Roque.
Trabalho de mesa e individual com cada actor.
«Recorri à leitura do texto, a apontamentos, a sub-texto, recorri outra vez ao que eu estou a dizer, por que é que estou a dizer, para que é que estou a dizer isto, qual o objectivo das cenas, relembrar esse processo todo, e actualizar; não me foquei muito numa memória, porque isso já lá estava, a memória do corpo é o que se mantém mais fiel, o que fazíamos, para onde íamos, isso ficou. Mas actualizar sempre, porque o espaço e a luz é diferente. Parece que apesar de termos ensaiado aqui, nos estávamos a preparar-nos psicologicamente para uma sala que não era esta. Agora vai ser mesmo aqui e aqui estamos mais próximos do público.»
(…)
«O trabalho de mesa faz muito parte do processo da Cornucópia; nem pelo Conservatório temos esse aprofundamento do trabalho à mesa, perceber para onde é que o texto caminha, perceber que outras referências se podem ir buscar na encenação e no trabalho de actor. É muito rico porque fica a saber-se o que dizes, como dizes, para quem dizes. Não há nada que te fuja, não pode haver. Tens um domínio sobre o trabalho. Há uma base de segurança muito forte que se estabelece. Nós sabemos porque estamos a fazer assim. Nada é ao acaso. O encenador percebe muito bem o que quer de cada actor e há uma simbiose muito grande, porque ele é muito atento.»
Actualização de cena.
«Não houve mudanças de há dois meses para cá. Houve actualizações. Estes dois meses foram bons porque está tudo mais fluido, mais descontraído. Há uma maturidade boa, não estamos muito preocupados com o texto. Sabemos muito bem o que estamos a dizer e não ficamos muito tensos com isso. (…)
Aqui aprofunda-se mais o trabalho do actor. E pode ser muitas coisas. Há uma base, mas depois há muitos processos que dependem dos locais. Mas aqui, o trabalho é muito aprofundado e ganha uma clareza muito grande.»
Horácio, interpretado por Isac Graça, em primeiro plano. Na imagem com Tiago Matias e Bernardo Souto.
Trabalho de actor.
«Fizemos duas italianas, para revermos, nem tanto o texto, para revermos o sentido das coisas que estávamos a fazer, com o olhar fresco de algum tempo de pausa. Como foi um processo muito complexo e ao mesmo tempo muito curto. Quando estreámos em Almada, sabíamos o que estávamos a fazer, o sentido das personagens, do espectáculo, mas estava tudo muito quente e o tempo ajudou a que as cabeças ficassem mais lúcidas sobre o que estávamos a fazer, conseguimos ver isso nessas italianas e nesta semana de ensaios.»
«O sentido já era claro, mas uma coisa é o que se passa dentro da cabeça e outra coisa é o que o actor exterioriza. Com mais disponibilidade é mais fácil, quando estás cansado ou com muita coisa na cabeça é mais difícil. Isto nota-se mais no Guilherme porque tem um papel muito difícil e muito cheio. O tempo fez com que as coisas ficassem mais claras, a mente dele durante as cenas.»
«Eu estava muito cansado na altura dos ensaios do Hamlet. Tinha sido muito cansativo. Eu estava a compreender as coisas, mas nem sempre passava cá para fora aquilo que eu percebia no diálogo com o Luis Miguel. Nem sempre conseguia ser eficaz na transição entre o sentido interior e o exterior. É muito difícil trazer estes mundos à superfície e mantendo a densidade na mesma.»
«Primeiro é muito mais fácil o Horácio passar o tempo do espectáculo lúcido, porque não está envolvido na narrativa. A única envolvência do Horácio é o afecto que ele tem pelo Hamlet. Mas ele não está dentro de nenhuma das intrigas palacianas. Não está dentro de nenhuma relação amorosa, nenhuma relação pai-mãe, não está dentro dos jogos de poder acima de tudo. Então consegue olhar para as coisas com outra distância, que o Hamlet só com o tempo consegue. Só depois de matar pela primeira vez é que consegue fazer isso. O Horácio tem outra disponibilidade para entender o que é o poder, o que é a morte, o que são as superstições, o que é a figura do fantasma que não existe e que são só laivos do passado, são laivos de coisas que os jovens vêem, que lhes foram impostas pela educação dos seus progenitores e que afectam o seu olhar sobre o momento e que já não fazem sentido. E assim Horácio consegue ter o papel de abrir a discussão ao público e de manter o público consciente (Marcelo abre e Horácio esclarece).»
«No primeiro acto, o Horácio passa o tempo a chamar o Hamlet à consciência, que ele saia daquele sítio corrompido, que só lhe vai fazer mal, que consiga desprender-se do fardo de querer assumir a figura do Pai. Não pode ser. O Horácio não confirma aquilo que ele vê. O Horácio opõe-se para tentar salvá-lo. Tudo o que tem a ver com a figura do fantasma está pervertido no jogo com os actores. É uma coisa da cabeça dele. Mas isto é a minha leitura daquilo que fui dialogando com o Luis Miguel.»
«O Hamlet em vez de cair confronta-se. Com a crueldade das coisas, das relações, do poder, dos valores. E cresce com isso. E consciencializa-se. Mas já é tão duro que não pode continuar a viver e atira-se. Estar preparado é tudo. Ele está preparado para morrer no último acto. Agora o Horácio tem de sobreviver para que não seja em vão esta aprendizagem que ele fez. Para que seja perpetuada. No fundo é a função do teatro. Tem também o lado político. Mas a revolução começa dentro de nós, na mudança de valores e não tanto nas ruas. Façamos alguma coisa enquanto “os espíritos estão inquietos, enquanto não surjam novos desastres, novas intrigas, novos erros”. Claro que vão surgir sempre, mas as pessoas precisam de se consciencializar disso e é com essa urgência que acaba o espectáculo, da mudança interior das pessoas, mas não é com uma imposição de valores totalitária — todos temos de sofrer o que Hamlet sofreu. Mas invariavelmente há uma série de embates que ele teve que as pessoas vão ter. E, portanto, façamos alguma coisa. E é uma revolução interior.»
3.
«um momento desmedido, insensato, uma espécie de grande grito no momento de despedida a um teatro que sempre fizemos alheio ao que se chama o mercado dos espectáculos»19
Terminemos. O veneno da ponta da espada que transforma o final do espectáculo em tragédia equivale, por vezes, ao veneno da ponta da língua. Quando assistimos ao espectáculo Hamlet, por várias vezes nos é pedido para acompanharmos a acção com o entendimento e para não falar sobre isso. Tal como nos Evangelhos. Através de algumas ferramentas tornadas possíveis pela Genética é isso que se espera ter feito neste pequeno texto: promover a reflexão. Mas perguntar também como aprofundar essa relação entre investigadores, artistas, e por que não, decisores políticos, cuja distância tem sempre aumentado, paralelamente e ao mesmo tempo que se vai pedido isenção, mais distância, frieza… Talvez, pelo menos no estudo das artes performativas não tenha que ser assim. E uma resposta comece por ser a reaproximação. Que a reflexão continue.
4.
Nem por acaso, no Post-Scriptum que foi acrescentado ao texto «Este Espectáculo de Hamlet», para a estreia já no Teatro do Bairro Alto, nas últimas linhas encontramos o seguinte, referindo-se à necessidade de envolvimento nas coisas em que nos metemos:
… apesar do bom senso e do segredo,
Abre o cesto em cima do telhado da casa,
Deixa voar os pássaros e, como célebre macaco,
Para ver o que acontece, mete-te no cesto,
E quebra cá em baixo o teu próprio pescoço.»20«Pois é. Mas não é fácil.»21
Notas
1 William Shakespeare, Hamlet, tradução de Sophia de Mello Breyner Andresen, Lisboa, Assírio & Alvim, 2015.
2 Na comunicação que apresentei, intitulada «Como tratar os registos do processo de criação do espectáculo Ifigénia na Táurida do Teatro da Cornucópia», in Colóquio Internacional Percursos da Genética Teatral: Do Laboratório da Escrita à Cena, 2009, 9 a 11 de Dezembro, FLUL, Lisboa.
3 Luis Miguel Cintra, oficina de «Preparação do Actor», Casa da Achada, Outubro a Dezembro 2018.
4 Colóquio Internacional «Percursos de Genética Teatral: Esboço(s), (Re)Escritas e Transmodalização(ções) Dramática(s)», 17 e 18 de Setembro de 2015, FLUL.
5 Georges Banu apud Maria Helena Serôdio, in Questionar Apaixonadamente: A Vida no Teatro de Luis Miguel Cintra, Lisboa, Cotovia, 2001.
6 Ibidem.
7 Maria Helena Serôdio, Questionar Apaixonadamente: A Vida no Teatro de Luis Miguel Cintra, Lisboa, Cotovia, 2001.
8 José Maria Vieira Mendes, «Dentro do Círculo: Sobre Teatro e Literatura Dramática», Sinais de Cena, Série II, n.º 3, Lisboa, Orfeu Negro, 2018.
9 Sophie Proust, La direction d’acteurs, Vic la Gardiole, L´Entretemps Éditions, 2006.
10 William Shakespeare, Hamlet, tradução de Sophia de Mello Breyner Andresen, Lisboa, Assírio & Alvim, 2015.
11 Maria Helena Serôdio, Questionar Apaixonadamente: A Vida no Teatro de Luis Miguel Cintra, Lisboa, Cotovia, 2001.
12 Luis Miguel Cintra apud Maria Helena Serôdio, «Este Espetáculo», Programa de Os Sete Infantes, 1997.
13 Luis Miguel Cintra apud Maria Helena Serôdio, in Questionar Apaixonadamente: A Vida no Teatro de Luis Miguel Cintra, Lisboa, Cotovia, 2001.
14 Konstantin Stanislavski, A Preparação do Actor, no seu Processo Criador de Vivência das Emoções, tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra, Lisboa, Teatro Nacional D. Maria II & Bicho do Mato, Lisboa, 2018.
15 Lembro aqui a diferença fundamental entre comunicação e arte, tal como foi definida por Gilles Deleuze em «Qu’est-ce que l’acte de création?», feita no contexto do programa «Des Mardis de la fondation Femis», de 17 de Maio de 1987, in Le Peuple qui manque, Plateforme Curatoriale Arte/Recherche, última consulta a 22 de Novembro de 2018).
16 Rui Teigão, Criação de um Espectáculo e Direcção de Actores no Teatro da Cornucópia: Apontamentos de um Estagiário, dissertação de mestrado em Estudos de Teatro, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2014. pp. 69-72.
17 Entrevistas que realizei durante os ensaios, no Teatro da Cornucópia, a Guilherme Gomes, Nídia Roque e Isac Graça, em Setembro de 2015.
18 Em entrevista que saiu nos dias da estreia na Agenda Cultural de Lisboa.
19 Luis Miguel Cintra, «Este Espectáculo de Hamlet», Programa de Hamlet, 2015.
20 William Shakespeare, Hamlet, Lisboa, Assírio & Alvim, 2015.
21 Luis Miguel Cintra, «Este Espectáculo de Hamlet», Programa de Hamlet, 2015.