Mapa de uma Paisagem Comestível

Uma Paisagem Comestível

Imagine-se o mapa de uma cidade.

Ruas; vias rápidas; edifícios de habitação; escolas; igrejas; fábricas; hospitais; túneis; viadutos; estações de metropolitano; paragens de autocarro… e hortas. Hortas nos interstícios da cidade, nos intervalos dos túneis, viadutos ou vias rápidas. Imagine-se, então, uma dessas hortas na cidade, um lugar onde o som dos motores é interrompido pelo modo ritmado com que a enxada talha a terra.

Figura 1. Teresa Palma Rodrigues, Mapa de uma Paisagem Comestível, 2016, escala: c. 1:500. Aguarela e tinta da china sobre papel, 50 x 65 cm

Figura 1. Teresa Palma Rodrigues, Mapa de uma Paisagem Comestível, 2016, escala: c. 1:500. Aguarela e tinta da china sobre papel, 50 x 65 cm

Figura 2. Teresa Palma Rodrigues, Mapa de uma Paisagem Comestível, 2016, escala: c. 1:500. Aguarela e tinta da china sobre papel, 50 x 65 cm, pormenor.

Figura 2. Teresa Palma Rodrigues, Mapa de uma Paisagem Comestível, 2016, escala: c. 1:500. Aguarela e tinta da china sobre papel, 50 x 65 cm, pormenor.

 
Mapa de uma Paisagem Comestível (Figura 1) é, na sua essência, mais do que um mapa. É uma pintura que representa doze meses do ano e o passar das estações num terreno em Chelas, na freguesia de Marvila (Lisboa), onde existe uma horta clandestina e onde, inesperadamente, se interrompem não só os sons, mas também as cores e os costumes que são próprios de uma cidade.

Esta pintura, com a qual pretendo chamar a atenção para uma horta urbana, insere-se num corpo de trabalho plástico mais vasto, realizado no âmbito do meu projeto de investigação artística e teórica, intitulado «Zona V (de Vago)», desenvolvido no curso de Doutoramento em Belas Artes — Pintura, da Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa.

«Zona V (de Vago)» tem como ponto de partida um terreno, uma área expectante reservada, desde 1964, para a construção de infraestruturas1 que se encontra ao abandono desde há muitos anos, mantendo-se como que em suspenso no tempo e sem ligação ao tecido urbano circundante. Este segmento de território está localizado numa área da freguesia de Marvila genérica e vulgarmente designada por Chelas2.

Neste mapa, melhor dizendo, nesta pintura, são descritos vários momentos temporais da paisagem observada da janela, paisagem essa que, ao longo do ano, vai sofrendo alterações de cores, texturas e odores, muitas delas produzidas pelo ciclo de vida dos vegetais da horta cultivada por um solitário hortelão (Figura 2).

O presente texto pretende observar de que modo a referida horta transforma esta paisagem urbana, tornando-a produtiva, profícua e comestível. Ao explorar o potencial do seu solo, o hortelão parece atribuir-lhe um significado e uma função diferentes dos significados e das funções das paisagens que as cidades modernas configuraram.

Parte do princípio, este texto, de que paisagem e o lugar podem ser entendidos como elementos relevantes na construção da identidade, ou da chamada «place-identity», um conceito estudado por Proshansky, Fabian e Kaminoff (1983). A relação simbiótica do indivíduo com o local por ele habitado tem sido densamente analisada por autores vindos, sobretudo, da Geografia, tais como Yi-Fu Tuan (2001; 2007), Doreen Massey (1994) ou Eva Bigando (2008), mas também por autores mais próximos do mundo das Artes, como Lucy Lippard (1997), que aborda, entre outros assuntos, o «sentido de lugar» [sense of place] e o modo como este é gerador de sentimento de pertença e identidade.

Com base nestes conceitos, levantam-se as seguintes questões: Conseguirão os horticultores furtivos, através das suas hortas, da sua ação sobre os espaços esquecidos das cidades, modificar os significados das paisagens urbanas? Por outras palavras, poderá a presença desta horta alterar o modo como é feita a leitura da paisagem por parte dos habitantes que a observam das janelas das suas casas em Marvila?

E até que ponto uma horta poderá fornecer dados úteis para a compreensão e conhecimento de um território, para saber mais sobre o seu passado e sobre a identidade dos que o habitam?

 

1. O Tema ou Criar Raízes

«The topography changes slowly, but the landscape is constantly transforming itself. (So are we; the depth of individual emotion engendered by place is also unpredictable).» (Lippard, 1997, p. 79)

No centro da paisagem urbana marvilense observada a partir da janela. encontra-se a referida área expectante, onde (entre outros discretos acontecimentos aí ocorridos) foi criada a horta, pelas mãos do anónimo habitante da freguesia e, desde 2012 até hoje, a horta tem crescido e assim se tem mantido, fecunda e viçosa.

Ao verificar as ligeiras alterações na paisagem que esta provocou, tornou-se inevitável, para mim enquanto artista, focar a questão da horta como tema.

A existência de hortas nesta zona não é um dado novo. Marvila esteve desde sempre ligada a estes pequenos espaços agrícolas e tem sido um território continuamente fértil. O seu nome indicia a proximidade à área de estuário do Tejo, o «Mar da Palha», que lhe cede a primeira sílaba — «mar». Por seu turno, aos bem irrigados terrenos desta zona ribeirinha, com o seu sistema orográfico de vales e de belíssimas vistas sobre o rio, associa-se «vila», de origem latina, na terminação da palavra, significando «local de descanso e lazer» (Consiglieri e Abel, 2002, p. 18).

As favoráveis condições geográficas e climatéricas não propiciaram apenas a exploração agrícola, muita da qual ligada aos conventos existentes na zona3; a aprazibilidade do lugar levou também ao surgimento de quintas de recreio e palacetes, sobretudo a partir do século XVII.

Em 1846, no livro Viagens na Minha Terra, Almeida Garrett referia-se ao local do seguinte modo:

«Assim o povo, […] os seus passeios favoritos são a Madre de Deus e o Beato e Xabregas e Marvila e as hortas de Chelas. A um lado a imensa majestade do Tejo em sua maior extensão e poder, que ali mais parece um pequeno mar mediterrâneo; do outro a frescura das hortas e a sombra das árvores, palácios, mosteiros, sítios consagrados a recordações grandes ou queridas. Que outra saída tem Lisboa que se compare em beleza com esta?» (Garrett, 1846, pp. 4-5)

Atualmente Marvila possui uma paisagem de múltiplos contrastes, característica que teve início logo no século XIX, com o desenvolvimento da industrialização4 nesta zona Oriental.

Com um total de 7,12 km2, o seu território é, hoje em dia, composto por densos aglomerados habitacionais, alguns núcleos de património edificado mais antigos (ainda ligados ao seu passado eclesiástico, nobiliárquico ou industrial), edifícios de antigas fábricas (algumas desativadas e ao abandono, outras, muito poucas, ainda em funcionamento) e consideráveis áreas de hortas espontâneas que lhe invadem os inúmeros vazios urbanos, ou terrenos desocupados.

Figura 3. Parque Hortícola do Vale de Chelas (Fonte: Teresa Palma Rodrigues, 2014).

Figura 3. Parque Hortícola do Vale de Chelas (Fonte: Teresa Palma Rodrigues, 2014).

 
Por toda a extensão desta freguesia, proliferam essas hortas, ou «quintais» (como preferem chamar-lhes os homens e mulheres que os cultivam). Segundo Maria Inês Adagói, de uma forma geral, estes espaços «contribuem positivamente, em termos ecológicos, histórico-culturais, sociais, de saúde e bem-estar para toda a sociedade e paisagem urbana» (2015, p. 4). Para esta arquiteta paisagista, as hortas ilegais de Marvila «são pólos saudáveis de concentração e desenvolvimento social» (idem, p. 80).

A inauguração do Parque Hortícola do Vale de Chelas (Figura 3), em 2013, veio reduzir um pouco o número de hortas espontâneas, mas não foi razão suficiente para as erradicar da freguesia. A falta de informação dos horticultores, a ausência de oferta de condições que estes consideram essenciais ou mesmo a falta de vontade ou interesse em partilhar espaços com outros horticultores (Adagói, 2015), continuam a ser fatores que contribuem para que estes agricultores ilegais não abram mão destes «seus» terrenos, onde se sentem livres, isentos de encargos e à margem de regulamentação e limitações.

Os vazios urbanos têm a capacidade de se apresentar como um campo aberto de possibilidades a explorar, são facilitadores da realização de desejos individuais e de reinterpretações da paisagem, como aponta Adagói:

Perante um território cada vez mais urbanizado e concentrado de edifícios, os vazios urbanos, espaços sem usos definidos, são potenciais valorizadores da paisagem. Com a aproveitação destes espaços para a prática de agricultura urbana, está, não só, a definir-se um uso, como a aumentar-se os valores deste espaço, pelo aumento da produção de serviços de ecossistema e pela recuperação de valores rurais.» (Adagói, 2015, p. 81)

Conscientes disso, ou não, os horticultores clandestinos vão transformando a paisagem urbana, adaptando-a às suas necessidades.

O ancestral e contínuo contributo da ação humana na modelação da superfície terrestre é um facto sobejamente estudado em ciências como a Geografia, pois desde o momento em que as primeiras comunidades deixaram de ser nómadas e se foram fixando que a conquista, o domínio, a modelação e a adequação do território à função de habitar se tornaram fatores inerentes à sua sedentarização.

Ao depararem-se com um novo cenário, uma nova paisagem, os primeiros indivíduos sabiam identificar se aí tinham garantidas duas condicionantes essenciais à sua sobrevivência: alimento e abrigo.

Com a Agricultura, desde a sua origem no período neolítico, deu-se início a ao processo de domínio, transformação e reorganização da Paisagem e interpretação dos sinais da Natureza.

Com a domesticação de plantas e animais selvagens, o ser humano tornou-se, também ele, criador5.

Ao fixar-se, o indivíduo adquiriu aquilo a que poderemos chamar «pertences» [«belongings»] (Shepard, 1998). Tomou posse da terra, fez dela sua morada e aí criou as plantas e os animais essenciais ao seu sustento. A terra, bem como os seres e objetos por ele criados, passaram a pertencer-lhe e ele passou a pertencer à terra, arquitetando o seu lugar no mundo, cimentando o seu «sentimento de pertença», criando raízes e protegendo o seu território.

Se na era pré-científica o ser humano se adaptava à Natureza (consumindo apenas aquilo que a terra lhe podia dar, através da caça, pesca e recoleção), posteriormente, o indivíduo passou a dominá-la (Tuan, 2007), o que conduziu a uma intensa exploração dos recursos naturais existentes e à posterior conquista de mais territórios ainda por explorar.

E, após um grande salto temporal, as enormes transformações produzidas pelo aparecimento das cidades e dos grandes aglomerados urbanos vieram agitar o sedentarismo das comunidades campesinas, levando ao êxodo rural, fenómeno que teve o seu apogeu no período da Revolução Industrial.

E é aqui, neste período da História, que o destino de Marvila se cruza com os destinos de tantos outros territórios urbanos.

Muitos dos habitantes de Marvila têm as suas raízes no campo, provêm de antigas zonas rurais do país, de onde um dia partiram em busca de melhores condições de vida. Esse fluxo migratório deu-se a partir dos primeiros anos de industrialização, ainda no século XVIII, mas intensificou-se nos anos 50 do século XX6.

A industrialização desta área dotou-a, então, de problemas idênticos aos de todas as áreas industrializadas.

Em 1960, segundo os dados que constam no Plano de Urbanização de Chelas (1965), 30% da população de Marvila e Chelas vivia em barracas. Essas barracas eram erguidas em terrenos rurais ao abandono, situados próximo de fábricas (GTH, 1965). Era uma população maioritariamente jovem (vinda de todas as partes do país, principalmente do distrito de Viseu) e com baixa qualificação profissional, da qual 79% não tinha sequer instrução primária completa (GTH, 1965, Anexos).

Para esta franja da população de Chelas — novos operários, antigos camponeses que não tinham esquecido as técnicas de cultivo — os terrenos junto às fábricas e às suas precárias habitações foram desde logo aproveitados para suprir as carências alimentares.

Yi-Fu Tuan (2007) refere que um dos fatores comuns a todos os habitantes das cidades é a enorme distância que separa o seu trabalho da maneira como obtêm o alimento essencial à sua vida. Isto significa que, para os habitantes da cidade moderna, a paisagem deixou de ter relação direta com aquilo que se come; isto é, não é da paisagem que se extrai o alimento, a paisagem urbana não é, em si, uma paisagem «comestível». No entanto, o saber-fazer, aliado à necessidade e à existência de solo cultivável, fez com que estes novos habitantes de Marvila mantivessem e pusessem em prática determinados hábitos da sua cultura rural.

Deste modo, Mapa de uma Paisagem Comestível trata de um esquecido pedaço de terra que foi conquistado à cidade, alterando, assim, o significado e a função da paisagem urbana na qual se insere; porém, recuperando não apenas a memória do lugar, mas também o passado rural do hortelão. Este hortelão conjuga a memória do lugar, memória geral, com a sua própria memória, memória individual, identificando-se com este sítio que escolheu para fazer a horta, como se relembrasse e reencontrasse o seu lugar de pertença. Para Pierre Nora, o “pertencimento” é o “princípio e segredo da identidade” (Nora, 1993, p. 18).

Segundo Paul Shepard (1998), a paisagem não é somente um lugar físico, é também um lugar psicológico. Este mesmo autor refere o seguinte: «In farming, the land itself becomes a tool, an instrument of production, a possession that is at once the object and implement of vocation as well as a definer of the self.» (Shepard, 1998, p. 36)

 

2. A Composição ou O mapa da horta

A pintura intitula-se mapa7 porque começa precisamente pela ideia de delimitação de um campo de ação. Na sua acepção clássica (aquela que diz respeito à cartografia), o mapa, ao reduzir os territórios geográficos a uma representação gráfica e sintética, quase abstrata, observada de cima e distante, dá-nos uma sensação de domínio e de poder, talvez semelhante à que tinham os colonizadores quando, de um ponto alto, olhavam os territórios conquistados.

Nesta pintura, sirvo-me da configuração do mapa como uma espécie de metáfora da ideia de poder e de domínio, de demarcação de fronteiras e de território. Ao escolher o lugar a ocupar, aí se instalar e fazer a sua horta, o horticultor clandestino como que «colonizou» aquele pedaço de terreno, tirando partido e apropriando-se dele.

O mapa possui a capacidade de nos colocar numa outra dimensão8, de nos dar a impressão de que não somos apenas criaturas; somos também criadores, capazes de dominar, transformar, interpretar e reorganizar o mundo que conhecemos.

Figura 4. Willem Janszoon Blaeu, 1617, Africæ nova descriptio, (The Library of Congress, 2016).

Figura 4. Willem Janszoon Blaeu, 1617, Africæ nova descriptio, (The Library of Congress, 2016).

 
A pintura que aqui tem vindo a ser analisada inspira-se em Africæ Nova Descriptio, de Willem Janszoon Blaeu (1571-1638) (Figura 4), reproduzindo até alguns dos seus elementos, tais como o friso decorativo que emoldura todo o perímetro desta antiga e amplamente reproduzida gravura, difundida por volta dos anos 30 do século XVII.

A razão de ser desta espécie de citação prende-se com a ideia de território descrito que é dado a conhecer; neste caso, a África de Seiscentos. No caso de Mapa de uma Paisagem Comestível, o território que é descrito e dado a conhecer é aquele onde se situa a horta, na Lisboa dos dias de hoje.

O recurso a um mapa, mais especificamente um mapa do século XVII, está relacionado com o facto de nesse século, como referi anteriormente, terem sido edificadas inúmeras quintas de recreio em Marvila, Chelas, Olivais, entre outros arrabaldes a Oriente da Lisboa da época, onde os solos foram (ou continuaram a ser) amplamente aproveitados para exploração agrícola.

Figura 5a. Coleções de fósseis e fragmentos de azulejos encontrados na horta. Teresa Palma Rodrigues, Seguindo a Espera de um Vazio, 2014-2015.

Figura 5a. Coleções de fósseis e fragmentos de azulejos encontrados na horta. Teresa Palma Rodrigues, Seguindo a Espera de um Vazio, 2014-2015.

Figura 5b. Coleções de fósseis e fragmentos de azulejos encontrados na horta. Teresa Palma Rodrigues, Seguindo a Espera de um Vazio, 2014-2015.

Figura 5b. Coleções de fósseis e fragmentos de azulejos encontrados na horta. Teresa Palma Rodrigues, Seguindo a Espera de um Vazio, 2014-2015.

 
Nesta horta, o hortelão separa da terra arável aquilo que não lhe interessa. E no meio de pedras e raízes de ervas daninhas encontram-se fósseis, fragmentos de azulejo e faiança (Figura 5), que constituem interessantes vestígios de antigas ocupações, não só históricas como também pré-históricas. Estes achados são testemunhos do Passado que ficaram guardados na terra e que, ao remexer o solo, esta horta recupera. Os pedaços de azulejos (alguns dos século XVIII e XIX) poderão ser provenientes dos palacetes dessas antigas quintas desta zona. E os pedaços de faiança fazem-nos imaginar os antigos habitantes que aqui viveram e que as utilizaram à mesa.

 

3. A Técnica e o Suporte ou O Campo e a Cidade

Aguarela é a técnica. O papel é o suporte. Nesta pintura, a utilização da aguarela sobre papel surge associada à sua ligação com a cartografia e restantes ciências que, desde os seus primórdios, se fizeram valer da leveza, portabilidade, rapidez e fluidez desta técnica, sobretudo em expedições e trabalhos de campo (de natureza geológica, arqueológica, botânica, geográfica, etc.).

Surge também associada à pintura de paisagem, género no qual a aguarela teve grande impulso, sobretudo no século XVIII. Curiosamente, foi nessa altura que surgiu uma certa melancolia em relação à vida no campo. O bucolismo setecentista nasceu da complexidade social, política e burocrática da vida na cidade, o que fez com que «a paz rural» parecesse atrativa (Tuan, 2007). Para Yi-Fu Tuan, a atração romântica pela ruralidade nos séculos XVIII e XIX, considerada moral e fisicamente virtuosa e sã, resulta da mente de autores que «nunca tiveram calos nas mãos» (2007, p. 136). Para este geógrafo, o trabalho do campo nada tem de brando e suave, a sua dureza imprime-se nos corpos dos agricultores, sendo observável através do desenvolvimento muscular e das cicatrizes que estes habitualmente possuem (Tuan, 2007). Terá sido essa dureza um dos fatores que, associado ao desemprego e isolamento, levou a que o campo deixasse de seduzir quem nele nasceu; porém, ao mesmo tempo, é como se esse lugar de origem tivesse ficado impresso para sempre no coração e na mente dos indivíduos que dele provêm, como uma herança genética:

Juvenile imprinting on terrain (that is, indelible fixation on specific sites, giving them lifetime supersignificance) continues among modern urban people as well, so it is not unlikely that some form of dynamic integration of the identity formation of the individual with features of the terrain is part of human biology, a genetic heritage. (Shepard, 1998, p. 24)

O horticultor, pegando na sua própria herança cultural e genética, confere novos conteúdos a este terreno do seu bairro onde fez a horta, influenciando também o modo como a paisagem é vista e sentida pelos seus vizinhos e por quem diariamente a observa.

A aguarela, neste trabalho, enfatiza aquilo que esta horta no meio da cidade poderá parecer ter de recreativo, associado ao lazer9; e de rústico, ligado a uma ruralidade quase desaparecida que aqui se vê representada de forma irónica e intencionalmente pitoresca. Porque existe um outro lado da história, aquele em que a Agricultura é vista como algo obsoleto e pouco sofisticado.

Boaventura de Sousa Santos refere que «o camponês surge tarde na história social, [… surge] quando lhe ditam a sentença de morte» (Santos, 1981, p. 560); isto é, quando o campesinato se tornou uma realidade cada vez mais rara, ou mesmo extinta, cada vez mais estranha e incomum.

A distância entre o campo e a cidade parece ser tal que estas duas entidades quase se tornam polos opostos, como que antagónicos e estrangeiros, um em relação ao outro; o que faz com que uma horta na cidade pareça ser um acontecimento insólito.

 

Conclusão

O agricultor consegue a sua colheita com um labor contínuo. Domesticar a Natureza exige um trabalho constante, feito de êxitos e frustrações, tantas vezes à mercê do tempo, da chuva, ao sabor do vento, de sol a sol… a colheita está intimamente ligada aos ciclos da Natureza. Há o tempo de semear e o tempo de colher. Habitualmente, a cidade não permite observar esses ciclos.

Uma horta provém de um ato criativo e recreativo.

Ao entender a paisagem como algo plástico, modelável, pode estabelecer-se uma analogia entre a ação do artista e a ação do agricultor. São ambos criadores, capazes de alterar funções e sentidos de objetos e ambientes que constituem o nosso mundo.

Criar uma horta numa área expectante ou num vazio urbano pode ser mais do que uma questão de sobrevivência; pode ser um exercício de manutenção do bem-estar físico e mental; uma atividade de lazer, de recreio; ou, pura e simplesmente, uma manifestação cultural e identitária. Pode ser também uma atitude política; ou mesmo um ato de inconformismo, ou de demarcação de um território (o que, afinal, não difere assim tanto de outras manifestações urbanas, tais como um graffito ou um tag).

Uma horta pode ser pensada como um lugar de autossubsistência, no qual se aplica o saber-fazer de um indivíduo; e pode estar relacionada com a preservação de uma memória e de uma identidade, nas quais o ato recreativo perpetua a tradição. Este lugar em Marvila torna-se um lugar mais rico de sentidos ao ser invadido pelas tradições rurais de outros lugares, cuja manifestação é espoletada pela identificação com as marcas deixadas pelo próprio passado rural desta zona da cidade.

Desta forma, a identidade dos seus habitantes horticultores nasce de uma reação de identificação com o entorno e o entorno transforma-se, dialógica e reciprocamente, em função dessa reação identitária. Ou seja, o indivíduo reconhece alguns indícios de ruralidade na paisagem urbana atual e encontra neles a possibilidade de recriar o seu próprio passado rural, de recuperar as suas raízes, transportando o «campo» que traz dentro de si (técnicas de cultivo, experiência, memórias) para a sua horta na cidade.

Ao transformar a paisagem da cidade, a que todos têm acesso através das suas janelas, está também a trazer o «campo» até aos outros habitantes, alterando o significado dessa paisagem.

Por fim, de forma quase poética, da terra de uma simples horta, podem surgir achados geológicos e arqueológicos que nos dão pistas sobre o passado deste território: fósseis, fragmentos de azulejos e faiança, são testemunhos da memória do lugar que o hortelão desenterra e traz à superfície.

A conjugação e interpenetração das diferentes identidades dos membros do grupo que habita determinado lugar (identidades essas que não são estáticas e que evoluem em conjunto), juntamente com as memórias do próprio lugar, vão dando novos sentidos a esse mesmo território habitado por todos e dando origem a diferentes formas de viver a cidade e a sua paisagem.

 

Adagói, M. (2015). «Os Alimentos que vêm dos Vazios»: As Hortas Urbanas Dispersas e Serviços de Ecossistema. Caso de Estudo dos Bairros da Freguesia de Marvila, Lisboa. Dissertação para obtenção do Grau de Mestre em Arquitetura Paisagista. Instituto Superior de Agronomia da Universidade de Lisboa.

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Notas

1 O projeto delineado para os seus 22.887,00 m2 contempla um estabelecimento de ensino superior afeto ao futuro Parque Hospitalar Oriental de Lisboa.

2 O Plano de Urbanização de Chelas, que teve início em 1965, foi concebido pelo Gabinete Técnico da Habitação da Câmara Municipal de Lisboa (mais conhecido por GTH) com o intuito de colmatar a crise habitacional de um número significativo da população residente na capital e na sua zona suburbana (Mangorrinha, 2010). Nessa data, o GTH optou por chamar «Chelas», à «área compreendida entre: o caminho de ferro e o troço final da Avenida do Estados Unidos, a sul; a 2ª Circular, a norte; a Avenida Infante Dom Henrique e o caminho de ferro, a nascente; a Avenida Gago Coutinho, a poente.» (GTH, 1965, p. 1).

3 As rendas e terras de Marvila que possuíam mesquitas foram doadas à Mitra de Lisboa por D. Afonso Henriques, por volta do ano de 1149 (Consiglieri e Abel, 2003). Dessa doação resultou uma extensa propriedade, a Herdade de Marvila, que foi dividida ao meio no ano seguinte, por Dom Gilberto de Hastings (primeiro bispo de Lisboa após a Reconquista). Uma das partes foi compartimentada em 31 courelas e entregue aos cónegos da Sé, que as cederam aos Mosteiros de Chelas, de S. Vicente de Fora e de Santa Cruz de Coimbra, entre outras instituições religiosas medievais. Através do arrendamento, ou aforamento perpétuo, esses terrenos vieram, mais tarde, a dar origem a muitas das quintas de Marvila.

4 Em 1862, lia-se no Archivo Pittoresco: «A Fábrica de fiação, de Xabregas, […] fica mesmo à entrada do vale de Chellas, um dos mais frescos e amenos dos arredores de Lisboa, e que fornece esta cidade de variadas e saborosas hortaliças. […] É cultivado todo de hortas na parte baixa e plana, e de olivaes e terras de semeadura pelas encostas, tudo entremeado pitorescamente de habitações e várias fábricas, apresentando excelentes paisagens realçadas pela majestade do rio, […] e pelas animadas scenas do caminho de ferro de léste.» (Caldeira, 1862, p. 44)

5 Segundo Mircea Eliade, a descoberta da agricultura transformou não só a economia do homem primitivo, mas sobretudo a sua «economia do sagrado» (Eliade, 1987, p. 128).

6 A industrialização da Lisboa Oriental teve três gerações distintas. Uma primeira geração de manufaturas (sobretudo ligadas aos tecidos: estamparias, tinturarias e afins) que teve início na segunda metade do século XVIII, tendo como ponto de partida o Vale de Chelas; uma segunda geração, com a introdução da máquina a vapor a partir dos anos 40 do século XIX (Ferreira, Sanchez e Figueiredo, 1995); e uma terceira geração, já dotada de eletricidade que atinge grande dinamismo durante o Estado Novo. Para melhor compreender o processo de industrialização da zona Oriental de Lisboa, sugere-se a consulta de: Folgado, D. e Custódio, J. (1999). Caminho do Oriente: Guia do Património Industrial. Lisboa: Livros Horizonte.

7 A palavra mapa tem a sua origem em mappa, termo latino utilizado pelos romanos para designar «toalha» ou «guardanapo» (Doll, 2006; Jacob, 2006; Monsaingeon, 2011; Azzolini, 2017). Sobre a mesa, os cartagineses desenhavam os limites dos territórios descobertos, delineando estratégias comerciais e rotas de navegação. A ligação do objeto mapa ao objeto mesa (suporte sobre o qual eram colocados os mappæ), carrega consigo a ideia de superfície plana.

8 A ação de mapear consistiu, desde logo, numa planificação; isto é, na transformação de um território espacial (uma realidade a três dimensões — ou mais, se tivermos em conta os cheiros, as cores, os sons desse território), numa representação gráfica, esquemática e bidimensional.

9 Carl Sauer (1952) defendia que a agricultura não tinha sido inventada por necessidade ou escassez, muito pelo contrário; em sua opinião, só o lazer, o ócio e a abundância poderiam permitir a experimentação.