Notas sobre a Possibilidade da Impossibilidade da Ideia de Concerto no Projecto Haarvöl

Pensar a actividade colectiva de um grupo, nomeadamente as suas prestações em ambiente live, a partir da noção derridiana de possibilidade da impossibilidade é, antes de mais, colocar a questão de forma desafiadora. Em Derrida a impossibilidade apresenta-se com uma carga de positividade que determina a sua inversão semântica. Um simples ajuste linguístico: o hífen que agora separa a «im» da possibilidade. E é exactamente a partir dessa premissa que o projecto Haarvöl tem pautado a sua existência. De im-possibilidade em im-possibilidade, tem construído a possibilidade de continuar e de, problema maior, conseguir apresentar as suas composições em “concerto”. Não é inocente, como veremos, a colocação de aspas na palavra concerto pois esta aparece neste contexto como uma espécie de significante vazio a que apenas se poderão fazer aproximações possíveis. Qual fronteira que apresenta um exterior e um interior como constituintes decisivos, em Haarvöl a ideia de concerto concretiza-se a partir da aproximação exógena ao seu significado. Para tal, serão testadas todas as possibilidades em aberto, quer dizer, as formas de lidar com contingências limitadoras no sentido de as ultrapassar e como consequência potenciar a im-possibilidade de uma nova ideia de concerto: o “concerto”. Para já, e no sentido de esclarecer as ideias em discussão, será necessária uma espécie de introdução ao universo conceptual e operativo do projecto.

O colectivo Haarvöl formou-se no início de 2012 como projecto e identifica o seu campo de intervenção com o que normalmente é designado como a área da música de carácter eminentemente electrónico e experimental. É constituído por um núcleo permanente de três elementos. É, podemos afirmar, um produto bem definido das potencialidades tecnológicas caracterizadoras do nosso tempo: a exploração das imensas facilidades da virtualidade da rede ao nível da comunicação entre os elementos é aqui decisiva. Porque habitam em cidades distintas, esta condição determina a impossibilidade física da reunião e sobretudo da ideia canónica de ensaio. Em alternativa, a metodologia utilizada potencia a troca de elementos construtivos das músicas, sempre compostos no âmbito do individual e depois partilhados para futuras composições. É um método heterodoxo mas que funciona bem e que introduz, de certo modo, uma distinção clara em termos de formas de trabalhar para cada um dos elementos sem, no entanto, deixar que cada idiossincrasia seja posta em causa. São coisas feitas à distância que se vão construindo paulatinamente e que, devido ao processo utilizado, têm cambiantes temporais de realização que são altamente divergentes: desde a quase improvisação com as guitarras e com os vários sintetizadores construídos digitalmente para o efeito que vão fornecer as bases sonoras das composições até à composição final. É nesta última fase que o processo desacelera decisivamente. Trata-se de uma construção muito mental e inexpressiva que pode, em certos casos, levar semanas até aparecerem as sonoridades certas para se conjugarem com as bases entretanto compostas. Este processo de compor coloca as grandes questões relativas à passagem das músicas para a abordagem de concerto. Quer dizer, nada da espontaneidade, tão necessária a uma performance em palco, Aqui, pelo contrário, as condições determinam um posicionamento que se coloca muito longe dessa possibilidade. Antes de mais, porque o processo insere-se, de algum modo, numa forma de fazer que se encontra imersa na experimentação sonora com máquinas digitais e que inviabilizam a sua reprodução em ambientes de concerto.

À falta de um melhor termo, uma instalação audiovisual imersiva será por ora uma das hipóteses que o projecto tem experimentado em palco. Esta possibilidade coloca em jogo vários problemas com que a música electrónica se tem confrontado, sobretudo na sua passagem para o registo ao vivo. Assim, todos aqueles que frequentam este tipo de concertos são, na maior parte das vezes, confrontados com algumas destas situações: os músicos encontram-se por detrás de computadores portáteis e a concentração do público, na maior parte das vezes, faz-se unicamente na luminosidade da «maçã» que está virada para a plateia; os músicos estão a operar com maquinaria diversa, quais cientistas em cima de uma plataforma, normalmente ensimesmados no seu confronto directo com a parafernália de fios, botões e outros artefactos que têm que manejar com segurança deixando de lado qualquer hipótese de diálogo ou empatia com o público. Em ambos os casos, por vezes, as performances dos músicos são acompanhadas de imagens que, também aqui, sofrem, quase sempre, de uma confrangedora falta de qualidade: ou são as chamadas imagens generativas que os próprios computadores produzem e que, salvo raras excepções (hoje já desaparecidas devido à sua repetição infinita), se apresentam como elemento decorativo que, mais que acrescentar qualidade à prestação, diminuem qualitativamente as sonoridades que se confrontam com tal tipo de imagens; ou o recurso a imagens que servem, quase sempre, apenas para preencher a luminosidade da sala e que ou nada têm a ver com a intensidade dos sons ou que se apresentam pura e simplesmente como uma espécie de screensaver permanente, com as cambiantes conhecidas. Ficam, então, algumas perguntas pertinentes para serem respondidas: o que pensar das prestações ao vivo neste tipo da ambiências sonoras? Até que ponto é que são verdadeiras as actuações em palco quando, por vezes, mais de 80% da música está pré-gravada na maquinaria apresentada?
Contudo, para que não se gerem equívocos, não poderemos generalizar estas situações à totalidade. Existem casos que tentam escapar saudavelmente a elas e que o vão conseguindo com mais ou menos sucesso.

Aquilo que o projecto Haarvöl tem proposto para as suas prestações ao vivo é a conjugação de vários factores que são determinantes para a ideia de verdade de uma actuação frente a um público. Assim, a actuação, ao partir de uma situação em que existe uma consciência aguda das questões anteriormente levantadas, será necessariamente pautada por opções diferenciadas. Em primeiro lugar, uma consideração fundamental: as prestações ao vivo, muito mais do que as outras componentes que envolvem a actividade dos projectos, estão directamente ligadas à ideia de singularidade de um evento que, por isso mesmo, é irrepetível e que apenas comporta no seu universo operativo a ideia de aproximação. Esta é a questão central de toda a ideia de concerto: fruir um acontecimento único. O projecto Haarvöl posiciona-se aqui de forma clara ao trazer para esta problemática uma noção do artista plástico alemão Tino Sehgal que designa as performances que vai fazendo como «live encounters».

 

 

Sabemos que as obras construídas por Sehgal se caracterizam pela sua linguagem performática. Sabemos, também, que o autor se movimenta, desta forma, no âmbito das artes que jogam com o tempo, o que quer dizer que a obra ou é fruída directamente — os live encounters — ou, então, não é visionada pelo espectador. Nas situações performativas, hoje vulgares nas práticas artísticas contemporâneas, remete-se, sempre, para a documentação que é realizada: visual, audiovisual, escrita, etc. Ora, em Tino Sehgal esta documentação não existe. A possibilidade de um a posteriori não é sequer equacionada.

Da mesma forma, nos «concertos» em que o projecto tem estado envolvido o que tem sido apresentado são performances únicas de composições audiovisuais compostas especificamente para o evento. Tal como em Sehgal trata-se de um encontro que é potenciado pelo acontecimento, irrepetível, e do qual também não existe um a posteriori.

Tem existido nesta singularidade uma aproximação possível, aquela que o projecto pretende ter, ao universo das chamadas «prestações ao vivo A consciência da sua importância determinou, por isso, uma estratégia que passou da recusa liminar para a construção de possibilidades alternativas de resolução do problema. O exemplo de Tino Sehgal tem sido determinante nas opções que o projecto decidiu tomar.

O que tem tentado fazer é colocar em perfeito paralelismo uma performance física com um novo tipo de performance que jogará mais na imersão do público na música do que na prestação do músico.

Desta forma, a verdade da apresentação está garantida, e essa é uma constatação importante quando se está perante o público. Neste âmbito de peculiaridade «performativa» tudo está pré-gravado e pré-preparado. Os músicos transfiguram-se em técnicos e, na mesa de som, nas luzes, no controlo das imagens, mas não no palco, tudo é feito para que a prestação seja realizada sem falhas.

A estranheza da ausência de músicos em cima de um palco pode ser colmatada de várias formas: antes de mais, instalando todo o aparato técnico aí ou numa outra opção, decisivamente mais importante, nas possibilidades imensas de apresentar a performance em ambientes que não privilegiem a dupla plateia/palco, antes procurem soluções que possam determinar a existência de acontecimentos de uma outra tipologia mas que apesar de quererem estar integrados na ideia mais genérica de «concerto» potenciam o seu alargamento a uma espécie de «expanded field». Uma vez mais, auxiliamo-nos de uma noção cara às Artes Plásticas e que veio redefinir todo um universo conceptual e operativo. Perante a proposta de objectos ou situações que escapavam à ideia canónica do objecto pictórico ou escultórico, a historiadora de arte americana Rosalind Krauss decidiu instituir estes novos objectos/situações como representativos de uma nova configuração conceptual e que, ao fazê-lo, escapavam decisivamente ao fechamento do anterior território. Segundo a autora americana o novo território era agora expandido e essa constatação determinava a possibilidade aberta de uma abrangência alargada que funcionava por inclusão e já não por exclusão. Essa é exactamente a organização espacial do território conceptual do concerto em que o projecto Haarvöl quer estar situado. Num campo expandido de possibilidades que ampliem e/ou divirjam da dualidade palco/plateia. É o que tem sido tentado com mais ou menos sucesso. Uma primeira conclusão, ainda sem grande espessura e, contudo, já afirmativa é a de que é possível, e o projecto tem-no provado, agarrar uma assistência de forma decisiva utilizando estas estratégias. O futuro determinará até que ponto é possível esticar o campo na sua expansão continuada. Mas este é um dos estímulos maiores que o projecto tem para continuar a avançar na sua peculiar noção de «concerto». A afirmação de vitalidade da ideia é clara e as possibilidades experimentais também. As contingências do local, do tempo, dos espectadores determinarão todo o resto.

Como é visível, todo o universo que está a ser experimentado ainda se encontra numa fase de amadurecimento. Nada que impeça, contudo, um querer que é muito mais forte do que todas as limitações que se apresentam e que, de algum modo, ao condicionarem o evento se apresentam como saudáveis desafios a superar. Mas isso é natural, ou não fosse desde o seu início decidido que uma das premissas da existência deste projecto seria uma necessária condição de risco. Ou, dito no mesmo tom derridiano com que começámos este texto, a possibilidade da impossibilidade como Leitmotiv para um percurso que só assim faz sentido.

Porque é verdade.

 

«Ausência em Construção (LXIV)», 2014