O Atelier Verde (no IC 19)

«Nos casos de ocupações agrícolas não regulamentadas, os agricultores urbanos, maioritariamente imigrantes, não possuem quaisquer certezas no que diz respeito ao direito de utilização da respetiva parcela de terra, e a sua atividade pode terminar a qualquer momento por via de decisão politica onde, de um modo geral estão implicadas infraestruturas ou construções para desenvolvimento urbano. O estatuto da propriedade determina o grau de precariedade, com implicações também para a escolha das técnicas de cultivo a aplicar, não condicionando, no entanto, a forte dedicação dos seus ocupantes.» (Cabannes & Raposo)

Em 1929 foi construída uma estrada de asfalto entre Sintra e Lisboa. Nesses tempos as pessoas deslocavam-se em cavalos, burros e carruagens, com mercadorias e bens para os palácios reais. Ao longo da estrada, foram construídas casas nobres com terreno agrícola, «quintas de recreio» perto dos palácios de Oeiras, Queluz e Sintra. As imediações desta estrada têm sido palco de uma transformação agrícola; segundo Juliana Turquato & Silvia Jorge, com a expansão e crescimento urbano, desde o século XVI até aos anos 70, a prática da agricultura urbana passou por diferentes mudanças sociais, políticas, económicas, culturais e ambientais. A agricultura que em tempos estava dependente de trabalho escravo1, de pessoas trazidas brutalmente das ex-colónias para território continental, mudou depois de a catástrofe da peste negra de 1348 ter morto dois terços da população portuguesa nessa altura. Em 1375 uma nova lei foi então implementada pelo rei Dom Fernando, a Lei das Sesmarias, segundo a qual era obrigatório o cultivo da terra por quem a possuísse, e no caso de impossibilidade teria de a dar a alguém que o pudesse fazer. Em Quatrocentos, com a expansão colonial, as populações de países africanos continuaram a migrar para o território continental, e com elas migraram também novas espécies de flora.

Após os anos 50 os campos nas imediações da Amadora sofreram mudanças dramáticas com o desenvolvimento industrial. Isabel Raposo menciona que os campos agrícolas da Quinta do Outeiro, onde se situa hoje o bairro do Alto da Cova da Moura, foram abandonados e que as primeiras construções precárias e hortas começaram a aparecer. A população do bairro cresceu substancialmente neste período2 e a paisagem entre Lisboa e Sintra mudou para uma mistura de rural com urbano. Este é também um período de fluxo migratório intenso, tanto das ex-colónias como do interior do país; bairros como o do Alto da Cova da Moura emergem em espaços que anteriormente eram agrícolas e com hortas urbanas adjacentes, onde na maioria dos casos as pessoas constroem a sua própria casa3.

As hortas começam nessa altura a constituir um espaço de socialização, entre o privado e o público, e que se relaciona com o modo de vida caboverdiano (Varela, 2016). Em termos da paisagem agrícola, mudanças significativas ocorreram com a independência das colónias, tanto do ponto de vista social como visual. A análise de Juliana Turquato & Silvia Jorge aponta para a relação entre o aparecimento das hortas e a degradação da área metropolitana urbana, visto que o desenvolvimento da construção está associada, segundo as mesmas autoras, a tipologias de ocupação e a movimentos migratórios4. Ou seja, a agricultura urbana ultrapassa a simples produção de alimentos, uma vez que constitui uma tipologia social e espacial, como se evidencia, por exemplo, nos espaços de habitação. É também referido por estas autoras que a horta funciona como um local de afetos5, e que existe uma relação directa das hortas com eventos históricos do colonialismo, integração territorial e discriminação económica.

 

Ensaio Visual

Este ensaio pretende ser uma reflexão sobre a construção de uma imagem associada às hortas do IC 19. Trabalho no ensaio através da criação de um filme que registo deslocando-me num território de espaços apropriados para o cultivo da terra, pedaços de terra6. As hortas surgem como um espaço entre a familiaridade da casa e a inospitabilidade da rua, um tipo particular de socialização e apropriação, um espaço onde os relacionamentos se baseiam na confiança mútua, um espaço de socialização para além da sustentabilidade (Varela, 2016).

O trabalho de câmara estabelece uma relação com a fisicalidade dos espaços, apropria a materialidade que lhes é inerente; o modo de percorrer os caminhos trilhados, a lente que embate nas plantas, na terra, na chuva. Os objetos fazem parte das narrativas das encenadas entrevistas e a materialidade envolvida no ato de filmar; várias estratégias de manuseamento de câmara foram utilizadas de modo a revelar a natureza dos materiais de cena. Misturam-se as ferramentas do atelier do artista e as ferramentas do agricultor, um atelier simbólico é montado nesses momentos, nos quais tripés, câmaras, aparelhos de som, computadores e outros se misturam com regadores, enxadas, mangueiras, estabelecendo deste modo e/ou fazendo referência a memórias do que se passou naquela mesma horta noutros meses já passados.

Vejo na representação visual dos objetos a possibilidade de reorganizar uma entidade social desconhecida, uma nova construção que fala da invisibilidade social. O projecto de Bruno Latour reforça a ideia da importância de olharmos para assemblages, aglomerações que nos são estranhas, de modo a possuir de novo um certo «atordoamento mental», olhando para lá da sociedade e da natureza, questionando aquilo de que somos feitos, olhando para outras explicações que não as de natureza social7.

A produção destes espaços torna-se uma questão de invisibilidade social comprometida com os aspectos históricos e políticos, o Portugal colonial e pós-colonial (Santos, 2014). Impõem-se então algumas considerações de ordem teórica, fundamentais para prosseguir o diálogo com o trabalho empírico8.

 

Contemporâneo Pós-Colonial

«O espaço de um quarto, sala, casa ou jardim, talvez esteja separado do espaço social por barreiras e paredes, por todos os signos de propriedade privada, no entanto permanecem fundamentalmente parte desse espaço. Nem esses espaços podem ser considerados “meios” vazios, no sentido de contentores diferentes do seu conteúdo.» (Walter Prigge)

Poder-se-á dizer que nestas hortas a produção de espaço se faz no sentido em que Lefèvre a concebe: estes bocados de terra intencionalmente ocupados constituem um espaço social e um produto social, e investigá-los é aceder ao espaço mental e à prática social dos seus ocupantes9. O que pretendo é criar um novo repertório10, por intermédio de ferramentas do domínio da estética; as imagens captadas nas hortas representam a aquisição de linguagem gestual e verbal dos participantes nestes nossos encontros, e embora não constituindo um ato público, estes encontros dos ocupantes e da artista retêm um corpo de experiência que fica gravado, e que será posteriormente transmitido a outros. Este espaço é poroso, feito de intersubjectividades, e passa também para a imagem captada.
Por outro lado, a invisibilidade das pessoas que trabalham a terra está associada, como disse anteriormente, a uma Lisboa colonial e pós colonial; a pergunta coloca-se: como se representa essa invisibilidade? Pode estar relacionada com as referências verbais das histórias contadas? Essa é a procura do/a artista.

Pedro Varela menciona «estórias silenciadas e branqueamento dos negros em Portugal»11, e por isso a presente incapacidade de, por exemplo, se saber quais as espécies de flora trazidas para Portugal. Relacionado com a invisibilidade contemporânea pós colonial (Santos, 2014) está o facto de as hortas continuarem a ser ignoradas e devastadas pelas autoridades locais, assim como a demolição de bairros «precários», sempre ligada a uma imagem de violência transmitida pelos meios de comunicação de massas12.

O quê e quem participa nesta imagem que estou a construir? As entrevistas revelam um carinho profundo pela terra e pela agricultura. Semear, plantar, observar, colher, são tudo atividades caras a estas pessoas, as quais na maioria dos casos têm antecedentes familiares relacionados com a atividade agrícola. Os seus relatos áudio revelam também a necessidade de produzir alimentos para sobreviver ou ajudar a sobreviver; ouvem-se palavras que refletem a incerteza no que respeita ao futuro económico das suas vidas, um estado de «precariedade»13. Por trás da imagem de vigor das frutas e vegetais, escondem-se histórias de cansaço.

Boaventura de Sousa Santos define a racionalidade moderna em termos de um modo abissal de pensamento (Barreto, 2014) e relaciona-o com o que ele define como pós-colonialismo contemporâneo. Estou a referir-me aos territórios coloniais portugueses. Na sua crítica ao pensamento ocidental moderno, define linhas invisíveis tanto do pensamento científico como do jurídico e do epistemológico. O que tem caraterizado o pensamento ocidental moderno em termos da tensão entre a regulação e a emancipação social é, segundo este autor, uma fachada, algo que mascara a existência de uma separação de facto entre territórios coloniais e metropolitanos. Esta linha invisível por ele traçada estabelece uma divisão entre «este lado da linha», ou seja, a sociedade metropolitana, onde operava a dicotomia regulação/emancipação, e o «outro lado da linha» onde operava a dicotomia apropriação/violência, nos territórios coloniais. O «Pensamento Abissal Moderno»14, para Boaventura de Sousa Santos, providencia sempre um modo de eliminar a linha abissal que distingue duas realidades sociais, num e no outro lado da linha, e fá-lo encenando erradamente visíveis distinções sociais15. No que diz respeito ao aspeto jurídico e à interpretação da lei, Santos escreve que «este lado da linha é determinado pelo que conta como legal ou ilegal […] o legal e o ilegal existem perante a lei como duas formas relevantes», e refere que esta dicotomia exclui territórios sociais onde a mesma não corresponde ao seu princípio organizador. É este o caso destas hortas urbanas, as quais se encontram numa encruzilhada, sem lei própria (Cabannes e Raposo, 2013).

Tem sido relatada pelos entrevistados uma frequente ação destruidora da polícia em relação a barracas de apoio à agricultura e às próprias hortas, em muitos dos casos sem aviso prévio. Uma vez que estas construções são espontâneas, ilegais, e não estão regulamentadas institucionalmente, pertencem ao domínio de um comportamento subjetivo, intuitivo, de uma população mal integrada; por isso, vista como uma realidade não aceitável e onde a polícia pode por direito atuar. O estudo de Yves Cabannes e Isabel Raposo conclui que a integração da população migrante é deficiente16. O contexto legal do Plano Director Municipal de Lisboa permite a ocupação de terrenos com o propósito de os cultivar, mas de acordo com o estudo destes autores, não existe regulamentação mais específica17. A inexistência de leis específicas próprias e adequadas a cada situação e a permissividade disfarçada das autoridades (o deixar ou não fazer, aleatoriamente) conduz a uma falta de autoridade por parte de quem trabalha estas terras; não tendo quaisquer direitos legais, sentem-se à margem da restante população. O estudo de Isabel Raposo e Yves Cabannes, de 2013, conclui que a agricultura urbana praticada por cabo-verdianos mantém e reforça os laços da comunidade mas que o oposto já não se verifica. Boaventura de Sousa Santos escreve: «a lei moderna parece ter algum precedente histórico sobre o científico na criação do Pensamento Abissal»18; o colonial é descrito por ele como um estado da natureza, e afirma que as nações coloniais não estavam interessadas em ordenar internamente o território colonial, mas sim em aplicar a dicotomia apropriação/violência para organizar a estrutura social, os selvagens no seu estado natural. Segundo Santos, a estranheza com que se encarava as pessoas que habitavam os territórios coloniais deu origem à negação da sua natureza humana e a considerá-los como agentes não participantes, porque as suas práticas eram consideradas incompreensíveis ao olho metropolitano, os selvagens eram então sub-humanos. A cartografia moderna envolve para Santos um lado legal e um lado epistemológico: «O Pensamento Abissal Moderno continua a operar por linhas abissais que dividem o humano do sub-humano, de tal modo que princípios humanos não se comprometem por praticas não humanas». O seu argumento é o de que as colónias providenciavam um modelo de exclusão que prevalece hoje no pensamento e prática ocidentais19.

Por que é que estes aspectos são relevantes hoje e em particular na construção destas hortas urbanas sem lei que são, na maioria dos casos, associadas à precariedade da autoconstrução?

Porque considero que, nas hortas urbanas, a invisibilidade advém de uma herança colonial; o modo como as autoridades de hoje se relacionam com práticas fora do domínio do legal/ilegal ou verdadeiro/falso cria políticas de destruição. A imagem dos bairros associados a estas hortas e que os meios de comunicação dão a ver corresponde a uma imagem de uma população que «não encaixa»20, que pertence a uma categoria sub-humana e que está sempre a ser equiparada à violência de um modo de vida estranho e precário de quem tem uma horta na estrada.

Porquê reflectir sobre o colonialismo aqui entre Sintra e Lisboa?

Foi para este local que um número considerável de migrantes viajou após a revolução de 1974, com a independência das colónias. Esta área parece ser palco de dois eventos históricos relevantes: os dois abalos mais significativos dos últimos 60 anos, de acordo com Boaventura Sousa Santos; o primeiro logo a seguir à revolução com as lutas anticoloniais, quando se pensava ser possível deixar de excluir pessoas que tinham sido submetidas ao paradigma apropriação/violência, integrando-as no da regulação/emancipação. Nessa altura as linhas abissais jurídicas e epistemológicas pareciam ter diminuído de tamanho. O segundo abalo é descrito por Boaventura de Sousa Santos como uma expansão do lado da linha pertencente ao novo mundo21 (o outro lado da linha), denominando o evento como o regresso do colonial e do colonizador. Santos escreve também que se tem verificado até hoje e desde os anos 60-80.

Os agricultores encontram-se, como já foi mencionado, numa encruzilhada legal, num limbo22, suspensos, como se estes pedaços de terra estivessem sempre à espera do progresso, de uma urbanização adiada, como se a cidade esperasse pelo progresso a acontecer num futuro qualquer. As ocupações, como eventos temporários; em vez de a cidade assumir os benefícios das mesmas no presente, concedendo-lhes permanência e direitos legais, vai apenas tolerando a sua presença. Isto permite a construção mental de uma imagem de medo; as hortas são frequentemente associadas a uma imagem de falta de asseio, de pobreza e de violência23.

 

O direito a reinventar a cidade

«As comunidades Cabo Verdianas em Lisboa estão a usar a cidade, ou, parafraseando Lefèbvre, “apropriando-a”, em oposição a “possuí-la” no sentido convencional. A transformação positiva, por um dos grupos mais excluídos em Lisboa, de terrenos baldios em espaços verdes produtivos faz ecoar o conceito de “contribuição para a ouvre”, o que significa uma cidade que não retorna ao passado mas que cria uma cidade nunca vista anteriormente. Estes elementos sugerem que comunidades fortes migrantes cultivando terrenos não regulamentados reproduzem ideais do direito à cidade.» (Cabannes & Raposo)

Reclamar o direito à cidade é no meu entender o que estes cidadãos estão a fazer, por intermédio de uma reinvenção de meios e dos processos de urbanização; a ideia de progresso baseada na linearidade histórica e na verdade científica fica como que invertida. Refiro-me ao direito de reclamar a cidade no “presente” (Chakrabarti, 2007). Esta autora defende o pensamento histórico não linear, onde o progresso não é sinónimo de uma avenida moderna com compartimentos temporais definidos, mas sim um local onde as pessoas têm o direito de participar nas decisões comunitárias, mesmo que o seu grau de literacia esteja abaixo do mínimo considerado24.

Através do ato de contar a(s) estória(s), pretendo interromper a existente invisibilidade. Estou a construir um arquivo de som com as estórias contadas pelos ocupantes das hortas. Este arquivo, apesar de ter um caráter subjectivo, e conter inúmeros espaços vazios, pretende funcionar como um espaço mental para o ouvinte. É uma tentativa de relacionar o que Mirzoeff entende como o direito alicerçado no sentido social da coletividade, ligado a todos os sentidos, para além do visual, mas dentro da complexidade do visual, e que diz respeito à capacidade de nos olharmos mutuamente, a possibilidade de criar uma plataforma ligada ao fazer o bem comum25. Para este autor, contra-visualidade está relacionada com a imaginação e comunhão na ação.

Neste projecto, é importante para mim relacionar a procura do evento por meio das estórias contadas com a metodologia de trabalho, a qual supostamente permite a realização de uma imagem constituída através de um novo arquivo e de intervenções nas hortas. Aspectos profundamente entrosados com a ideia de fazer o bem comum aparecem segundo Mirzoeff ligados a uma contra-visualidade do Antropoceno26. O campo da visualidade pode ser também político, a autonomia artística liga-se à autonomia política, no sentido do estabelecimento de leis próprias não desligadas do comum (Virno, 2014). A ideia de contra-visualidade27, neste caso, poderá estar associada à produção de um repertório feito da interação entre a agricultura e a arte e especificamente direcionado para abordar estas produções urbanas e agrícolas. O relacionamento criado com as pessoas que trabalham estas terras tem-me permitido perceber a relação da sua profissão com a minha; por exemplo, a relação do local onde assenta o tripé da câmara de filmar com as ferramentas de trabalho agrícola (enxadas, etc.), dentro do espaço agrícola, que se transforma em atelier de artista por algumas horas, ou a relação entre a movimentação das pessoas a trabalhar a terra e aquelas que trabalham a imagem computorizada. Fabricar uma imagem é para mim abrir ao espectador a possibilidade de construir a sua própria imagem; poder navegar por entre elementos que não são necessariamente de ordem social; são, por outro lado, uma construção do “social” que é estética e política.

À luz do projecto teórico de Charkrabarti, coloco a seguinte questão: será possível imaginar a cidade como um local onde os seus cidadãos têm autoridade de participação nas decisões que afectam o bem comum, independentemente da sua origem e das suas habilitações literárias? Uma cidade que vive o presente, que assume as suas hortas como uma mais-valia comum e permanente e não uma cidade de hortas temporárias à espera da construção do próximo hipermercado28? Na história desta estrada (IC19), as hortas, fruto da imaginação e necessidade de cada ocupante, são o reflexo de um modo de vida alternativo, permitem melhorar a qualidade de vida de quem a trabalha, bem como de outros. Estes espaços tornam-se comunitários nas suas ligações aos bairros (Torquato e Jorge, 2011) e a todos os que circulam na estrada.

Cabannes e Raposo escrevem: «estas são ocupações que enchem não lugares, deixados vazios por uma urbanização que se demora». A dimensão estética das hortas é uma dimensão sócio-estética de espaços heterotópicos (Lefèbvre, 1991) de futuras possibilidades, constituindo no espaço urbano modos de resistência. Neste sentido, o filme pode ser um elemento que contribui para fortalecer a natureza emancipatória destes lugares.

Como pode a obra de arte constituir uma imagem alternativa à difundida pelos meios de comunicação de massas?

Na sua crítica à cultura moderna ocidental, relativamente à conquista da natureza pelos europeus em setecentos, com a abertura de caminho marítimo sem limites (res nullius)29, Nicholas Mirzoeff, encontra no modo europeu de apropriar violentamente, vendo o «outro» como sub-humano, a origem da frase policial também referida por Jacques Rancière «não há aqui nada para ver», ligando, portanto, o colonialismo a atos contemporâneos abusivos de negação do «outro». É interessante também notar que é através da visão de espaço coletivo de Winstanley, relativo a um pequeno grupo de agricultores que não admite o direito à propriedade exclusiva da terra, que Mirzoeff dá ênfase à noção do comum, de espaço coletivo que resiste e que se afirma muito mais de que um modo de vida auto sustentável, representando a activação do «democrático» e um modo de visualização diferente30. Também para Júlia Carolino, Juliana Torquato e Sílvia Jorge, Isabel Raposo e Pedro Varela, as hortas do IC 19 representam mais do que um espaço dedicado à agricultura de subsistência, representam espaços de socialização. Nas estratégias adotadas para a filmagem, procuro dar a ver a construção de um espaço comum, público e privado, que num só local coincide com o espaço de produção da obra de arte. Eu diria então que podem ser também espaços resistentes ao nível visual/social. Nas conversas e estórias recolhidas, ouvem-se modos de ocupar e trabalhar pelos/as que praticam essa resistência diária.

Pelas razões expostas, e por todas as que poderão surgir no encontro com a obra de arte31, penso que a tarefa de enfrentar os leviatãs32 deste mundo passa por encenar estratégias como as destes ocupantes, os quais, apesar de o fazerem em silêncio, são a imagem da contra-visualização. Eles criam uma extensão produtiva das suas casas (estética, social, económica e politica), que pode proporcionar o encontro com um espaço mental que ligue o visível ao falado.

 

Bibliografia

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Notas

1 «Os escravos, negros mas também mouros, foram uma massa humana fundamental ao longo de séculos na agricultura portuguesa. Por exemplo, as cortes de 1472 solicitavam ao rei D. Afonso que não deixasse sair os escravos para fora do reinado: “[os escravos] fazem grande povoação em vossos reinos e são causa de se fazerem terras novas e romper os matos e abrir pauis e outros proveitos” (Cortes de 1472 in Barradas, 1995: 31). Esses servos rurais foram levados fundamentalmente para o sul do reino, onde desbravavam matos e pauis, lavravam solos e colhiam cereais. Nos campos de Portugal, eram explorados por lavradores, num interior que se desertificou devido à peste negra, de onde o povo desertava em caravelas e onde se alteravam as formas de exploração humana.» (Pedro Varela, NNovas Raízes na Cidade: Sociabilidades nas Hortas Urbanas de Cabo-Verdianos na Amadora. Dissertação de Mestrado, ISCTE, 2016, p. 34.) .

2«Nos finais da década de 1950, com o desenvolvimento industrial da então freguesia da Amadora, os campos de cereais verdejantes da Quinta do Outeiro são abandonados e ocupados por habitações precárias e hortas de uma mão-de-obra de origem rural que procura emprego nas imediações fabris. Cerca de 360 pessoas vivem, em 1974, no bairro do Alto da Cova da Moura (CMA 1983), mas é a partir desta data que acelera o seu crescimento populacional, com a instalação de portugueses retornados das ex-colónias, seguidos de imigrantes na sua maioria provenientes de Cabo Verde e, de forma mais residual, de outros PALOPs, do Brasil, ou, mais recentemente do Leste europeu. Desde aquela data, assiste-se igualmente à metamorfose do bairro com a (auto-) construção de habitações em alvenaria, de raiz, ou em substituição das primeiras barracas.» (Isabel Raposo, «Intervenção Pública num Bairro “Crítico”, o Alto da Cova da Moura», VI Seminário Internacional de Arquitectura: Arquitectura e Cosmologia. Do Retorno da Diáspora às Arquitecturas em Equilíbrio, Investigação em Arquitectura, Urbanismo e Design, 2009).

3Eduardo Ascenção, «Following Engineers and Architects through Slums: The Technoscience of Slum Intervention in the Portuguese-Speaking Landscape», Análise Social, 206, p. 163.

4«Como marco […] aproximadamente 3 anos (Valença, 2001)» (Juliana Torquato e Sílvia Jorge. Hortas Urbanas Cultivadas por Populações Caboverdianas na Área Metropolitana de Lisboa: Entre a Produção de Alimentos as Sociabilidades no Espaço Urbano Não Legal. Miradas en Movimiento, n.º especial, Janeiro de 2012, pp. 146-147.)

5 Idem, p. 124.

6 Pedro Varela, op. cit.

7 Bruno Latour, Reassembling the Social: An Introduction to Actor-Network Theory. Nova Iorque: Oxford University Press, p. 248.

8 Henri Lefèbvre, The Production of Space. Oxford: Blackwell, 1991, p. 37.

9 Idem, pp. 27 e 31. Cf. http://www.mom.arq.ufmg.br/mom/arq_interface/1a_aula/A_producao_do_espaco.pdf.

10 «Repertório, etimológico, tesouro, um inventário, também permite agência individual, referindo-se também, o descobridor, o que encontra, encontrar. O repertório exige presença; pessoas participando na produção e reprodução de conhecimento, através do estar lá, fazendo parte da transmissão. Como o oposto aos supostamente estáveis objectos do arquivo, as ações que fazem parte do repertório não permanecem sempre as mesmas […] O repertório, quer em termos de acções verbais ou não verbais, transmite ao vivo acções corporais. Deste modo, tradições são guardadas no corpo, através de várias mnemónicas e transmitidas ao vivo, no aqui e agora a uma audiência viva.» (Diana Taylor, The Archive and the Repertoire: Performing Cultural Memory in the Americas. Durham e Londres: Duke University Press, 2003, pp. 20 e 24.)

11 «Infelizmente, muito ainda está por descobrir da história silenciosa, silenciada e branqueada dos negros em Portugal. E será caminhando sobre os alicerces dessa história que os estudos antropológicos e sociológicos devem olhar para a presença negra em Portugal atual.» (Idem, p. 35)

12 «A Cova da Moura torna-se, ao longo dos anos, referência espacial central na construção de identidades cabo-verdianas no Portugal pós-colonial, no que concerne em particular os trabalhadores migrantes e a sua descendência, associados a alguns bairros em particular (cf. Batalha [7]). No entanto, com raras excepções (Letria e Malheiros [8]), a produção do espaço na Cova da Moura continua a ser abordada quase exclusivamente como um foco de problemas, em contraste com o sentido atribuído a outras expressões culturais cabo-verdianas, como a música ou a gastronomia, que vêm concretizando uma “multiculturalidade lusófona” de sentido positivo.» (Júlia Carolino, «Contributions of an Anthropological Focus on Place for the Question of Housing Qualification: The Case of Cova da Moura», Congresso Internacional da Habitação no Espaço Lusofono, 2013, p. 2)

13 «Se há razão para a existência de um movimento revolucionário nos nossos tempos, pelo menos na nossa parte do mundo (o oposto da China industrializada), o ‘trabalho precario’ desorganizado e problematico deverá ser pensado. […] O constante nunca acabado trabalho de fazer e manter a vida urbana é muitas vezes feito em part-time, trabalho mal pago e desorganizado, o chamado “trabalho precário” tomou o lugar do “proletariado”.» (David Harvey, Rebel City, Nova Iorque e Londres: Verso, 2012, prefácio, p. xiv.)

14 «O pensamento moderno ocidental é um pensamento abissal. Consiste num sistema de distinções visíveis e invisíveis, sendo que as invisíveis fundamentam as visíveis. As distinções invisíveis são estabelecidas através de linhas radicais que dividem a realidade social em dois universos distintos: o universo “deste lado da linha” e o universo “do outro lado da linha”. A divisão é tal que “o outro lado da linha” desaparece enquanto realidade, torna-se inexistente, e é mesmo produzido como inexistente. Inexistência significa não existir sob qualquer forma de ser relevante ou compreensível. Tudo aquilo que é produzido como inexistente é excluído de forma radical porque permanece exterior ao universo que a própria concepção aceite de inclusão considera como sendo o Outro. A característica fundamental do pensamento abissal é a impossibilidade da co-presença dos dois lados da linha. Este lado da linha só prevalece na medida em que esgota o campo da realidade relevante. Para além dela há apenas inexistência, invisibilidade e ausência não-dialéctica.» (Boaventura Sousa Santos, Epistemologies of the South, Justice against Epistemicide. Boulder e Londres: Paradigm Publishers, 2014, p. 118. Cf. também http://www.boaventuradesousasantos.pt/media/pdfs/Beyond_Abyssal_Thinking_Review_2007.PDF.

15 Idem, p. 1.

16 Yves Cabannes e Isabel Raposo, Peri-Urban Agriculture, Social Inclusion of Migrant Population and Right to the City, Londres: Routledge, 2013.

17 Idem, p. 241.

18 Op. cit., p. 120.

19 «O colonial constituiu o grau zero a partir do qual são constituídas as modernas concepções de conhecimento e direito.» (Idem, p. 31) «Hoje, como então, a criação e ao mesmo tempo a negação do outro lado da linha fazem parte integrante de princípios e práticas hegemónicos. Actualmente Guantánamo representa uma das manifestações mais grotescas do pensamento jurídico abissal, da criação do outro lado da fractura enquanto um não-território em termos jurídicos e políticos, um espaço impensável para o primado da lei, dos direitos humanos e da democracia.» (Idem, pp. 122 e 124)

20 «No entanto, com raras excepções, a produção do espaço na Cova da Moura continua a ser abordado quase exclusivamente como um foco de problemas. Tal contrasta com o sentido atribuído a outras expressões culturais cabo-verdianas, como a música ou a gastronomia, que vêm concretizando uma “multiculturalidade lusófona” de sentido positivo.» (Julia Carolino, op. cit., p. 2)

21 Op. cit., p, 125.

22 «A lógica da apropriação/violência tem vindo a ganhar força em detrimento da lógica da regulação/emancipação. Numa extensão tal que o domínio da regulação/emancipação não só está a encolher, como também está a ficar contaminado internamente pela lógica da apropriação/violência.» (p. 11)

23 «No MLA, como Martins afirma, agricultura urbana que não é regulamentada, não tem um estatuto legal. Adicionalmente, tambem não tem sido integrada no plano ecológico regional nem no plano municipal. (op. cit., p. 236) «A segregação territorial e discriminação racial afetam intensamente as populações destes lugares, responsabilizados muitas vezes pela criminalidade e insegurança do resto da sociedade. Os meios de comunicação (Batalha, 2008a) e estruturas de poderes são, em larga medida, responsáveis por este racismo, legitimando uma atuação desproporcional e, muitas vezes, violenta da polícia, como relatam as recentes reportagens da BBC, “They hate black people” […], e do Público, “Os polícias disseram que nós, africanos, temos de morrer” […].» (op. cit., p. 42)

24 «O argumento histórico de Mill, remete indianos, africanos e outras nações “rudes” para uma imaginária sala de estar da história. Ao fazê-lo, converteu a própria história numa versão desta sala de estar. Estamo-nos todos a encaminhar na mesma direção, declarou Mill, mas algumas pessoas estão destinadas a chegar antes das outras. Aquilo era o que a consciência histórica era: o conselho ao colonizado para esperar.» (Dipesh Chakrabarti, Provincializing Europe, New Haven: Princeton University Press, 2007, p. 8)

25 «É o reclamar de uma subjectividade a qual tem a autonomia para construir e desconstruir as relações entre o visível e o dizível. Quer dizer, requer o reconhecimento do outro de modo a obter um estatuto que lhe possa dar direito a reclamar um direito e determinar (decidir) o que está certo.» (Nicholas Mirzoeff, «The Right to Look», Critical Inquiry, 37(3), p. 474)

26 «Há uma maior tradição de emprestar ao comunismo a acção directa e democracia directa do que ao capitalismo industrial estatal da nação. O que sugere que o poder de imaginar foi ele mesmo colonizado e dominado, para que possamos compreender o impulso humano fundamental de estar em conflito em vez de em acção comum. A teoria e a prática da conquista da natureza tem sido integrada na estética do ocidente através do Antropoceno. O conceito moderno de estética é ele próprio uma transformação do longo discurso que impera de aesthesis, ou seja, a totalidade do aparato sensorial do corpo transformado num discurso especifico da arte (Buck-Morss 1992). Esta transformação deveu-se a uma nova configuração do sujeito imperial moderno, como sendo constituído pela sua “superioridade sobre a natureza”, como Kant (1987: 120-121) o posiciona. (Nicholas Mirzoeff, «Visualizing the Anthropocene», Public Culture 26(2), p. 219)

27 «Contravisualidade tem tido três aspectos constituintes: a afirmação da saída do lugar, ligada ao lugar de nascimento, afirmar a democracia pela parte que não tem parte, e um modo de manter estas afirmações para além do momento espontâneo da revolta. Embora estas categorias não aparentem ser “visuais”, isso não é o campo da visualidade ou da contravisualidade. Em vez disso, o projecto é criar um espaço mental de acção que possa ligar o visível ao dizível. Em relação à visualidade do Antropoceno, mover-se do próprio lugar seria o fim da factual hierarquia da humanidade que continua a afectar populações de todo o mundo, muito depois de antropólogos e outros cientistas terem abandonado as tentativas formais de classificar os humanos.» (idem, p. 226)

28 «Os intelectuais marxistas do ocidente e os seus seguidores noutras partes do mundo têm desenvolvido uma serie de sofisticadas estratégias, as quais lhes permitem reconhecer a evidente incompletude da transformação capitalista na Europa e outros locais, mantendo a ideia da existência de um movimento histórico geral de um estádio pré-moderno até um estádio moderno. Estas estratégias incluem, em primeiro lugar, o antigo e agora desacreditado paradigma evolucionista do século XIX: a linguagem dos “sobreviventes” e “remanescentes”, por vezes encontrada na própria prosa de Marx.» (idem, p. 218.)

29 «Assim, esta transformada terra nação indigena em terra nullius (a terra do nada), significava que cada Europeu era livre de “saqueá-la”, e abrir os mares à navegação internacional sem limites, como res nullius (coisa de nada).» (idem, p. 218) Em suma, o mundo não humano/não Europeu tornou-se um espaço no qual não havia nada para ver: «não há nada para ver aqui».

30 “Assume-se que a terra como planeta ou simplesmente terra, é propriedade comum, de todos, o tesouro de uma terra sem estado. A sua visão era uma retransmissão de inspiração divina, direitos internos, e justiça a ser alicerçada num senso comum de igualdade. Por cultivar terra numa base de igualdade, negando a possibilidade de propriedade exclusiva da terra, Winstanley previu cultivo sustentável de pequena escala como a base da vida social. A sua forma não violenta de resistência seria para defender o direito dos trabalhadores de trabalhares por conta de outrem, era o principio da recusa do sistema de salário mínimo. O historiador Christopher Hill chamou a esta acção a primeira greve geral. De facto, de um modo que ainda hoje é familiar em movimentos sociais, Winstanley declarou: “Acção é a vida de todos, e se não agirdes, não fazeis nada”.» (idem, p. 218)

31 «Apesar de as condições de existência do individuo e o seu imaginário poderem situar-se do ponto de vista cientifico, cientificamente, não será por isso que um destes aspectos se inclui no domínio da verdade e fora do domínio ideológico, porque não existe uma “verdade” e uma forma não ideológica de conhecimento. Apenas existem ideologias dominantes e dominadas, as quais nunca podem ser divididas em dois mundos (o da “verdade” e o da “ideologia”). Confrontos ideológicos no dia-a-dia procuram aumentar o seu espaço de manobra e a sua articulação de interesses, através da mudança dos limites espaciais entre dominante e dominado. Uma possibilidade de aumentar este espaço de manobra está nas práticas espaciais estéticas, onde o poder das imagens pode chegar para alem das fronteiras no sentido de encontrar utopias livres de domínios.
Isto permite às pessoas imaginar possibilidades banidas do domínio da ideologia. Um exemplo ´´o imaginário urbano moderno, onde o inconsciente colectivo funcionalidade da da vida metropolitana se pode tornar acessível aos seus habitantes por via do choque de experiências na linguagem, imagem e cinema. Isto serve para permitir aos habitantes encontrar as suas próprias ideias acerca das suas verdadeiras condições de existência, as quais podem contradizer a representação da ideologia dominante respeitante a essas condições. (op. cit., p. 54)

32 «Como Horst Bredekamp (2007: 33) nos lembra, Hobbes imaginou o Leviatã como um “Deus mortal”, uma figura equivalente a Hércules e outras criaturas legendárias. Hobbes estava interessado na questão de que estas “criaturas compostas” como ele lhes chamava, como um caso especial do poder da imaginação, ou “chique”. “Chique” não era simplesmente um atributo artístico ou criativo: “O que quer que seja que distingue a civilidade na Europa, da Barbaridade das Américas selvagens, é a fabricação de “Chique” (cit. in Tralau 2007: 65). Chique criou imagens, o que quer dizer “qualquer representação de uma coisa na outra” (ibid.: 66). Leviathan colonizou, portanto, a terra por via da imaginação, como se de uma forma estética se tratasse, a qual composta da autoridade colonial e soberania, estas com o poder de representar.» (op. cit., p. 219)