Fruta à Mão: Um Pomar Público Urbano como Projecto Colaborativo

Fora do pátio, começando junto às portas, estendia-se
o enorme pomar, com uma sebe de cada um dos lados.
Nele nascem altas árvores, muito frondosas,
pereiras, romãzeiras e macieiras de frutos brilhantes;
figueiras que davam figos doces e viçosas oliveiras.
Destas árvores não murcha o fruto, nem deixa de crescer
no inverno nem no verão, mas dura todo o ano.
Continuamente o Zéfiro faz crescer uns, amadurecendo outros.
A pêra amadurece sobre outra pêra; a maçã sobre outra maçã;
Cacho de uvas sobre outro cacho; figo sobre figo.
Homero, Odisseia, Canto VII

 
O projecto Fruta à Mão / Urban Orchards: Pick Your (City) Fruits propõe criar pomares públicos urbanos enquanto obras de arte colaborativa, geridas, cuidadas e, acima de tudo, co-criadas pela comunidade. O projecto centra-se na ideia de que o processo de implementação de um pomar no espaço público urbano constitui uma plataforma para abordar diversas temáticas: da sustentabilidade ecológica e económica (soberania alimentar; como alimentar um número crescente de citadinos; que custos — directos e indirectos — implica importar os alimentos para a cidade; qual a possibilidade de futuro numa cidade sem acesso a alimentos?) à política (quão público é o espaço público; qual o espaço para a participação pública na construção da cidade; de que forma a apropriação do espaço público poderá proporciona uma maior integração e valorização do indivíduo e do colectivo; como tomar em mãos o acesso aos alimentos ou quão aptos somos para alimentarmos as nossas famílias?) à estética (será a percepção estética alterada pela acção; poderá um jardim produtivo ser objecto de apreciação estética; a existência de árvores de fruto pode alterar a apreciação estética de um jardim?) e à produção artística (quais os limites da colaboração, autoria e mediação artística; qual o papel do artista numa obra de criação conjunta com «não-artistas»; o papel e função do espaço público e da arte na criação de laços comunitários e participação cívica; qual o papel da arte na experiência estética de árvores de fruto?), entre outros tópicos.

Em 2014 o projecto Fruta à Mão candidatou-se a dois programas: à iniciativa «Idea Camp» da European Cultural Foundation (ECF) e ao Orçamento Participativo da Câmara Municipal de Lisboa (OP). Foi selecionado para ambos, tendo sido um dos vencedores do OP 2014 e um dos participantes do encontro Idea Camp Marseille 2014. Ao Idea Camp seguiu-se uma bolsa de I&D financiada pela ECF, que permitiu todo o trabalho de pesquisa e desenvolvimento do projecto de execução que foi entregue à CML em Novembro de 2015, e cujos resultados procurarei, sucintamente, dar conta de seguida.

 

Acção e Participação na Cidade

O pomar pretendia-se, desde o início, um lugar de partilha, de construção de cidade e de cidadania — de construção em conjunto. Para tal visitaram-se projectos desenvolvidos em Helsínquia, Varsóvia, Abruzzo e Londres, procurando pontos em comum e troca de ideias e de experiências quer ao nível da participação e envolvimento comunitários e da relação com as instituições locais, quer ao nível técnico, das formas de implantação e das metodologias de manutenção em uso. Realizaram-se aprendizagens nesta área também em Portugal, através do estudo de árvores de fruto em formações de Food Forests (Permacultura), fruticultura tradicional, visita a pomares, jardins botânicos, viveiros especializados, e através da realização de encontros na Quinta dos Lilases — passeios, conversas, lanches e desenhos conjuntos abertos à comunidade. Contactaram-se escolas e desenvolveram-se actividades no Centro de Artes e Formação (Junta de Freguesia do Lumiar) com crianças do primeiro ciclo. Procurou-se desenhar, em conjunto, um pomar que fosse ao encontro das pessoas, das suas expectativas, que tivesse em consideração o passado da quinta, que compreendesse o desenho de recuperação da quinta elaborado pelo Gabinete de Espaços Verdes da Câmara Municipal de Lisboa em 2006 e que tomasse o Orçamento Participativo como momento impulsionador, procurando uma participação que fosse para além do voto ou da demonstração de desejos para a cidade («gostaria que existisse no meu bairro um parque infantil», «gostaria que a CML instalasse uma ciclovia na minha zona de residência», «sugiro que se plantem mais árvores» ou «tapem os buracos da minha rua»).

Desde logo, esta ideia de participação «esbarrou» com a ideia de orçamento participativo [OP] da CML. O OP pretende auscultar a população, dar voz aos cidadãos para que se manifestem sobre o que gostariam de ver acontecer na cidade e a forma como (uma parte do) orçamento municipal é gasto. Contudo, é à CML que cabe o desenvolvimento dos projectos, procedendo esta muitas vezes a substancial reformulação e alteração; são os seus técnicos que os (re)desenham, e a sua implementação ou é adjudicada directamente a um fornecedor da CML ou é alvo de concurso público. Ao(s) promotor(es) da ideia não está aberta a possibilidade de pôr em prática o projecto que é «oferecido» à CML, e muito menos que faça a gestão da verba atribuída, para que o OP não se torne uma forma de criar o próprio emprego. Não será aqui o lugar para analisar a fundo as regras do OP. A questão de base não é a necessidade de os projectos de execução passarem pelos serviços técnicos da CML (o que se poderá compreender, para acautelar o cumprimento das normas de segurança exigidas, mas para tal bastaria certamente o acompanhamento por parte das equipas técnicas). Já o restringir-se a participação ao voto, bem como a impossibilidade de gestão orçamental directa dos projectos aprovados, para não falar da participação de facto no desenho e implementação da proposta, são, a nosso ver, fundamentais e são os pontos que colidem, a nosso ver, com a própria ideia de participação. Que as contas tenham de ser públicas não só é justo como deveria ser exigido a todos os projectos OP, já que a verba despendida foi votada pelos cidadãos.

Porquê a insistência na gestão orçamental? No caderno de encargos entregue pela Fruta à Mão à CML, o montante atribuído ao pomar contemplava a realização de actividades de teor prático específicos do cuidado de árvores de fruto (como plantar, cuidar, podar, colher, etc.) e de teor cultural e cívico (palestras, workshops, passeios, e outros eventos de consciencialização para a existência de árvores de fruto no espaço público e a relevância do seu cuidado). Estas iniciativas propostas ancoram-se na convicção de que sem uma comunidade alargada de cuidadores e de simpatizantes o sucesso do pomar será nulo. Não basta plantar árvores no espaço público; é necessário por um lado envolver as pessoas na discussão da escolha das variedades e dos locais onde serão plantadas e dar-lhes formação para poderem cuidar do pomar a longo prazo, e, por outro lado, envolver a comunidade alargada, dar-lhe a conhecer o pomar, a sua razão de ser e a razão de ser, reforçar não só a sua utilidade como a sua beleza. Pode mesmo dizer-se que a formação e as actividades em torno do pomar eram o foco principal do projecto entregue, para que o pomar pudesse ser plantado pela comunidade de acordo com o resultado final de um desenho onde certamente os técnicos teriam um papel fundamental, mas apenas se tal desenho acompanhasse e integrasse a voz daqueles que serão responsáveis por manter e cuidar do pomar. É tempo de compreender que «dar voz» implica estar lá para ouvir; a construção de uma comunidade requer a possibilidade de discussão aberta, de cada um dar o seu input, sendo que tal não acontece de um dia para o outro — numa assembleia de voto –, requer tempo, dedicação e espaço de reflexão e partilha. A verba do OP não contempla manutenção a longo prazo, é uma verba de aplicação única, concluída com a inauguração da obra. No entanto, projectos como o pomar questionam essa metodologia, já que, após a instalação do pomar, não estão exactamente finalizados e a sua conclusão não coincide com o fim da obra, mas, pelo contrário, pode dizer-se que a obra apenas iniciou. Uma vez finalizada a festa de inauguração, quem assegurará a rega, a poda (especializada), o cuidado e verificação da saúde e estado das plantas e frutos?

Pelo contrário, incluir os cidadãos na concepção e criação do pomar, chamar a cidade a participar — activamente, não apenas votando — não só é um garante de continuidade e de manutenção como é uma forma de capacitação social.

Se a cidade é o espaço público por excelência — o lugar de manifestação da política — a forma como concebemos e projectamos o espaço público da cidade espelha o modo como pensamos e valorizamos o exercício da cidadania. O espaço físico da cidade reflecte o lugar dado à acção individual e colectiva no fazer da própria cidade. Analogamente, ser cidadão não dispensa a participação na tomada de decisão política e na construção da própria cidade. É uma estrada de duas vias.

A capacidade de prover alimento, que corre em paralelo com a de abrigar e proteger a família, é das tarefas mais elementares que se colocam a cada um de nós e que desde sempre acompanhou a história humana. Se até aos finais do século XIX muitas cidades produziam grande parte da sua alimentação, o século XX agudizou a separação entre urbano e rural, as cidades cresceram para além das cinturas agrícolas que as rodeavam e a produção alimentar foi empurrada para zonas cada vez mais distantes. Não só o espaço foi atribuído a outros usos como o saber necessário à produção de alimento se perdeu para a maioria das famílias. Hoje, se para muitos de nós a vida não se desenrola já unicamente em torno da subsistência alimentar, e isso possa ser motivo de orgulho, esta ausência de necessidade é acompanhada de uma ausência de conhecimento de como prover alimento. Quantos de nós sabem distinguir uma erva comestível de uma venenosa? Quantos de nós saberiam identificar o momento de maturação ou colheita dos vegetais e hortícolas que diariamente temos à nossa mesa?

 
Ainda no que toca ao debate sobre a cidade, nomeadamente no que concerne à sua alimentação, a implementação de pomares no espaço público não toca apenas questões de ordem da política como também de cariz ambiental. O pomar contribui para a soberania alimentar, mas traz consigo outras consequências que beneficiam a qualidade ambiental urbana, e estas não são de somenos importância. A existência de pomares, aliada às árvores de alinhamento e às matas citadinas:

  • diminui o chamado “efeito ilha de calor”, provocado pela abundância de asfalto e betão (controlo climatérico);
  • contribui para a boa gestão de águas pluviais, para a sua infiltração no subsolo e subsequente reposição dos níveis de água dos lençóis freáticos;
  • melhora a qualidade do ar, da água (as raízes das árvores servem de filtros para a água) e dos solos (através da matéria orgânica caída (folhas, troncos, frutos) contribuindo para a formação de solo, receptáculo de composto urbano);
  • tem impacto no sequestro de carbono;
  • tem um papel de relevo no aumento da biodiversidade urbana, não só pela diversidade de fruteiras e outras plantações que as acompanham como pelo facto de atraírem insectos, pássaros e pequenos mamíferos.

Além destes factores de índole ambiental, os pomares na cidade trazem benefícios de ordem societal, como seja o seu contributo pedagógico — os pomares são importantes locais de aprendizagem, lugares onde nutrir o interesse e respeito pela natureza, pela alimentação saudável e pelo cuidado partilhado de espécies comestíveis. Em torno do pomar, através da observação directa, podem ser estudadas temáticas escolares específicas dos vários ciclos de ensino (quantas aulas de estudo do meio, de ciências e biologia — para não falar de desenho e de educação física — poderiam ser dadas debaixo das árvores de um pomar!); bem como, naturalmente, a formação específica do cuidado e manutenção de um pomar, tais como formação em plantação, poda, enxertia, sementeiras, preparação de solos, etc., isto é, formação em auto-subsistência. Mas o pomar urbano é também um valioso contributo em termos de educação para a cidadania e participação política, a valorização do espaço público, a consciencialização ambiental, pela participação activa dos indivíduos na comunidade e na construção da cidade, convocando tanto crianças como adultos. Esta ligação entre acção e virtude é explorada por alguns autores, em particular por David E. Cooper, para quem a prática de jardinagem conduz inequivocamente à vida boa, adquirindo a jardinagem sentido e significado através da execução repetida de práticas desenvolvidas ao longo do tempo, o que, defende, induz virtudes como a humildade, o cuidado, a responsabilidade. Contudo, a realidade é que este desenvolvimento de virtudes está vedado à maioria dos habitantes de cidades como Lisboa, tão-só porque apenas uma minoria das habitações tem jardim. No entanto, se os jardins forem lugares abertos à participação e não lugares de passividade (se em vez de tabuletas com «não colha as flores» existirem locais onde plantar, podar, regar, nutrir, …), a cidade poderá oferecer a todos os seus habitantes a possibilidade de desenvolver as suas virtudes, já que é no acompanhamento continuado das plantas, segundo Cooper, que se desenrola e se vive a excelência de carácter (eudaimonia). Paralelamente, a importância do jardim terá também a sua raiz na descoberta, ou epifania, de uma íntima codependência entre a actividade criativa humana no mundo e o próprio mundo (Cooper 2006, 144-6), hipótese que por si só justificaria a implementação de lugares onde jardinar.

Por outro lado, esta possibilidade de acção no espaço público conduz à transformação de um espaço neutro (um espaço de todos, mas simultaneamente de ninguém) em espaço comum experienciado como nosso, fazendo do espaço público um lugar. A implantação de um pomar público permite a apropriação do espaço público pelos cidadãos, tornando-o lugar de encontro, de coesão social, de criação de laços intercomunitários e intergeracionais de partilha de saberes, experiências, de convívio e de entreajuda.

Quanto às questões estéticas suscitadas pelo pomar, é incontornável convocar Rosario Assunto, um dos filósofos que mais atenção dedicou ao jardim. Mas antes será pertinente olhar para Lisboa e para as suas árvores.

Distribuídas por ruas, jardins e parques, existem em Lisboa cerca de 600 mil árvores de cem espécies diferentes, algumas das quais frutíferas. Contudo, exceptuando as nespereiras, figueiras e bananeiras, estes frutos são na sua grande maioria incomestíveis (laranjas amargas, ameixas bravas, romãs e pereiras ornamentais, …). Mas, quer seja por não terem utilidade alimentar ou por não serem reconhecidas como alimentares, os frutos não são colhidos, criando sujidade e perigo de acidentes. Uma das questões que se coloca prende-se com a escolha de variedades «ornamentais» em detrimento das chamadas «produtivas», terá esta escolha um fundamento estético? Serão as árvores produtivas e os seus frutos menos belos do que os ornamentais?

 
Para Assunto, o jardim é o lugar específico onde ocorre uma específica forma de fruição em que o sujeito se contempla a si mesmo no acto de contemplação do jardim. Este é o lugar onde nos apaziguamos, através da experiência estética, com a nossa própria finitude temporal. Assunto radica nas descrições do Éden a experiência de prazer na contemplação do jardim enquanto beleza da natureza que tem o seu fim em si mesma, em concordância com o benefício da nutrição, desde sempre procurada pela humanidade. O belo é aqui inerente ao uso — beleza útil e utilidade bela (Assunto 1994, 119). O útil (frutos, flores, plantas) devém ornamento, a par de uma estátua de jardim, uma vez que, para este autor, a nossa vida necessita da beleza tanto quanto necessita de alimento. Importa ainda referir que para Assunto o jardim é sempre fusão de arte e natureza — uma obra de arte cuja matéria é, sobretudo, a própria natureza (naturalidade vital). Mais, o jardim é uma obra de arte que resulta do engenho do artista (jardineiro), mas que não existe sem o consentimento e a participação da natureza, que colabora e é cocriadora do jardim. Esta colaboração, encontro entre a obra humana e a autopoiese natural, toma forma na contemplação enquanto imersão sensitiva e reflexiva. A fruição estética não se resume à observação visual das formas que se apresentam; pelo contrário, não abdica das sensações físicas que experimentamos ao estar/ser presente, fisicamente na natureza (jardim ou paisagem). A esta relação de intimidade Assunto chama sentimento vital (a alegria de nos sentirmos vivos, de tomarmos prazer físico pelo próprio acto de respirar) (Assunto 2011, 268). Podemos dizer que a contemplação (a reflexão sobre a vida e sobre si mesmo) vem depois, junta-se ao sentimento vital que é suscitado pela experiência imersiva e multissensorial de se estar/ser no jardim. Esta perspectiva assuntiana do jardim é clarificadora, a nosso ver, da pertinência de plantar árvores produtivas nos jardins da cidade, acrescendo à ideia de Cooper que vimos acima, porque para além das consequências políticas, ambientais e sociais já referidas, fica demonstrado o seu valor estético, contemplativo e reflexivo.

Também Arnold Berleant entende a experiência estética com base na abertura do sujeito à amplitude de sensações que perfazem a própria experiência, sublinhando que a experiência estética não se resume a um determinado tipo de situações (artísticas), mas que se dá igualmente em situações do quotidiano (como num passeio pelo bosque, durante o percurso diário para o emprego, ou ao deambular por uma cidade) em que contemplação exige uma total imersão perceptiva do sujeito (através de um corpo que não está imóvel, mas que, pelo contrário, se movimenta no espaço), enfatizando-se o carácter multi-estésico, por oposição a uma percepção unicamente visual. Berleant defende que é na apreensão por todos os sentidos que podemos verdadeiramente experienciar uma paisagem, uma cidade, um jardim. A experiência estética ultrapassa a mera fruição porque exige o comprometimento somático no campo estético (Berleant, 2011, 282-9) — e a relação entre o corpo do sujeito e o espaço que é percorrido por este.

Já segundo Nathalie Blanc (2012) a estética é uma forma de aprendizagem colectiva das dimensões sensíveis, sociais, do nosso mundo. A existência de árvores de fruto na cidade, em pomares cuidados pelos cidadãos, possibilita uma experiência sensível de comprometimento sensorial e estético na apreciação da cidade. Permite aos cidadãos desfrutarem da beleza de árvores diversas na cidade, uma beleza que é também útil: o pomar urbano propõe uma a valorização das qualidades produtivas das árvores, que contribuem tanto para a beleza da cidade como para a sua alimentação.

Para que essa aprendizagem colectiva e apropriação do espaço possa efectivamente ter lugar, importa que a comunidade esteja envolvida em todo o processo de implementação do pomar — no desenho, organização, planificação, criação, manutenção e fruição — acompanhando os técnicos municipais ou a instituição promotora. O pomar idealizado pela Fruta à Mão deve ser aberto a todos (cuidadores permanentes, pontuais e visitantes), para que possa constituir-se como um lugar público no espaço público. Fruta à Mão é um ensaio para a transformação da relação entre o citadino e a cidade, ampliando a ideia de contemplação para integrar um pensar e agir em comunidade. Perspectiva ainda uma nova percepção estética das árvores de fruto na cidade, na qual colher um fruto e saboreá-lo faz parte da fruição do jardim.

Para finalizar, importa ainda abordar, ainda que de forma breve, as questões artísticas que o pomar urbano pode levantar. Uma obra de arte apenas se torna colaborativa se um participante puder entrar em diálogo com a obra e com os outros intervenientes, agir, reagir e ver o seu contributo espelhado no resultado final. A obra é negociada, procuram-se consensos, estabelecem-se relações interpessoais ao longo de uma duração de tempo indeterminada, onde não é a vontade do artista que impera, mas antes o desenvolvimento de uma obra que integre a sensibilidade de todos. Isto reflecte-se no resultado final: uma obra de arte colaborativa em que todos os colaboradores partilham a autoria (por oposição a serem meros figurantes ou «estatística»). É o que procura Jay Koh (2016, 60-72) com Art-Led Participative Processes. No processo de construção do desenho de implementação do pomar Fruta à mão realizaram-se actividades onde todos puderam contribuir e cada um poderia ser, se assim o quisesse, cocriador da idealização do pomar. O projecto entregue em Novembro de 2015 à CML espelhava essa participação colectiva, mas a grande aposta centrava-se na comunidade a criar através da discussão, estudo e plantação conjunta e na construção ao longo do tempo. Esse seria o modelo idealizado, mas não se chegou a constituir um grupo de cidadãos (apenas se levou em consideração todos os inputs recebidos no desenvolvimento da proposta inicial) porque nunca tivemos a confirmação, por parte do OP, de que o projecto de obra levaria em conta o trabalho realizado e não poderíamos garantir aos participantes que o seu pomar viria a existir. O projecto entregue à CML em Novembro de 2015 tinha como pressuposto a construção do pomar como obra conjunta, mas apenas em finais de Novembro de 2016 soubemos que a CML estava já a edificar o pomar (edificar, aplanando o terreno, construindo um casinhoto), pelo que pudemos ver, sem ligar ao desenho entregue e sem sabermos se levaria em conta algum dos pontos sublinhados no projecto, aliás, sem nunca ter trocado qualquer palavra connosco durante este intervalo de um ano, apesar dos nossos pedidos de reunião, telefonemas, emails.

Concluindo, o pomar na Quinta dos Lilases foi plantado na primavera de 2017, não segundo o projecto entregue à CML pela Fruta à mão, mas segundo o projecto desenhado pelos técnicos da CML. Relativamente aos benefícios ambientais resultantes da implementação de um pomar, é indiferente este ser plantado por funcionários ou pela comunidade. Já quanto à oportunidade de capacitação dos cidadãos e de construção de cidadania, se a plantação do pomar for o culminar do OP, aquele não terá muito impacto. Contudo, se a comunidade for chamada a cuidar do pomar (no momento em que terminamos a escrita deste artigo recebemos o convite, por parte da Junta de Freguesia do Lumiar, para uma reunião onde se discutirá a gestão comunitária do pomar) este pode ainda vir a ser um lugar de cocriação, de aprendizagem colectiva, de eudaimonia, e de apreciação multi-estésica e (auto)contemplação. Assim o esperamos.

 

Referências bibliográficas

Assunto, Rosario (1999). «Il Giardino come Filosofia e l’agonia della Natura», in Ontologia e Teleologia del Giardino. Milão: Guerini e Associati.

Berleant, Arnold (2011). «The Aesthetics of Art and Nature», trad. port. «A Estética da Arte e a Natureza». In Adriana Veríssimo Serrão (coord.) Filosofia da Paisagem: Uma Antologia. Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, pp. 282-298.

Blanc, Nathalie (2012). Les nouvelles esthétiques urbaines. Paris: Armand Colin, Kindle edition.

Cooper, David E. (2006), A Philosophy of Gardens. Oxford e Nova Iorque: Oxford University Press.

Homero, Odisseia (2012). Lisboa: Livros Cotovia.

Koh Jay (2016), Art Led Participative Processes: Dialogue & Subjectivity within Performances in the Everyday. Petaling Jaya, Malásia: Strategic Information and Research Development Center.