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 Para uma Semiótica do corpo

  [ Maria Augusta Babo ] *

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> O Corpo: soma ou sema

> A corporeidade na perspectiva fenomenológica

> O Corpo enquanto pele

> O corpo e as suas próteses

> Como mudar de corpo

> Marcações do/no corpo

> Espectacularização do corpo

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O corpo e as suas próteses

Fontanille, no artigo inserido neste número da RCL, serve-se dessa forma que é o moi-peau para encetar toda uma topologização das relações do ego com o mundo, se assim se pode dizer. Por um lado a ideia de eu-pele permite pensar a reversibilidade do corpo: a forma do corpo enquanto pele estabelece ao mesmo tempo uma pregnância do corpo no mundo, como matéria formada, protuberância, mas por outro, permite pensar o negativo do corpo que a ergonomia hoje desenvolve. O par funcional vestígio (do corpo)/forma, leva-nos a um tratamento específico das formas dos objectos-extensão, objectos que acoplados ao corpo lhe aumentam a performance, de modo a ver neles essa marca moldada do corpo ausente-presente. A ergonomia tem como sustentáculo a ideia de corpo como interface, estabelecendo na proliferação de objectos-extensão que fabrica, aquilo a que Fontanille chama "um mundo povoado de corpos e de simulacros e de projecções do corpo sensível". Assim também essa reversibilidade do eu-pele permite a tais dispositivos extensionais do sujeito tornarem-se próteses incorporadas. É que, ao contrário dos dispositivos de reflexão do corpo, espelhos e écrans, os dispositivos de extensão inserem-se numa dimensão semiótica particular que opera por contiguidade ou mesmo por acrescentamento, colagem ou sutura. Por isso eles não se inserem na ordem da representação, não são produtores de imagem, mas são antes amplificadores ou potenciadores de performance. Situam-se na ordem do fazer e não do ser/parecer, embora possam, uma vez soldados ao corpo, serem também produtores de imagens mais ou menos fantasmadas, do corpo próprio. As próteses instauram um regime de indicialidade que depõe o regime da iconicidade em que assentavam as representações com base na reflexão. Na verdade, e independentemente da semiose que o carácter indicial possa produzir, tais procedimentos operam por contiguidade física com o corpo, revelando a sua natureza impressiva ou de apêndice e já não reflexiva. U. Eco defende o carácter protésico do espelho, que é inegável em algumas funções que ele pode tomar, como o periscópio, etc, mas que me parece inaceitável na função reflexiva que é, por excelência, a duplicação identitária. A questão que aqui se coloca tem pois uma fundamentação semiótica distinta.

Eco propõe, no quadro das próteses, uma distinção das funções que estas podem adquirir na sua relação ao corpo. As próteses extensivas, na tipologia de Eco, são prolongamentos da acção natural do corpo e que o autor distingue das amplificativas, que têm por função um aumento até então não imaginado da performance do corpo. Sendo questionável esta distinção, ela oferece no entanto um instrumento de trabalho capaz de pensar uma semiótica do objecto que se estende do utensílio à própria tecnologia. É o caso de todos os dispositivos tecnológicos de informação que operaram uma mutação cognitiva no utilizador e que permitem desdobrar, amplificar, armazenar a informação.

Para além disso, a prótese pode ainda ser concebida como substituto de um membro ou órgão em falta. A prótese substitutiva marca uma amputação, uma ablação e assume-se como incorporação de um dispositivo substitutivo da função perdida ou enfraquecida. As próteses bióticas, entre o biológico e o maquínico robot da autoria de Cronemberg, são muito elucidativas do grau ou estatuto das novas próteses na sua relação com o corpo. Não se trata já ou unicamente de "high tech", como ele próprio o confessa, mas de uma tecnologia orgância, o gamepod, no caso de eXistenZ, cujo circuito tecnológico é orgânico, animal, integrando-se já numa outra postura que o realizador define como não pertencente à tecnologia mas a uma forma de biotecnologia . Trata-se de um experimentalismo onde a "fusão homem-máquina" nos é apresentada num real impossível, como aliás o confessa Cronenberg: "É o que emana do corpo que é real. A vida é formada pelo próprio processo de existência, o resto é diversão, é uma distracção daquilo que acontece ao corpo, incluindo a morte, claro/.../". Tais próteses que, para além da função utilitária que podem cumprir ou substituir, se revelam estigmas de acidentes no corpo, irrecuperáveis do ponto de vista da organicidade da carne como acontece ainda em Crash, vêm sendo cada vez mais inseridas numa certa estética do corpo protésico que não só as incorpora como lhes concede uma dimensão afeccional.

Os novíssimos fenómenos ligados ao digital vêm questionar não só o estatuto protésico conferido aos dispositivos tecnológicos, como além do mais, interrogar o próprio estatuto do corpo. Já não é a carne que é aqui afectada, como amputada, ou transplantada, ou incorporando apêndices, mas trata-se sobretudo de um devir imaterial do corpo que é também ele produtor das suas figuras imaginárias, donde o cyborg, por exemplo. Como refere Ieda Tucherman, "o que acontece hoje é que a tecnologia exibe escandalosamente o 'corpo conectado'. Mudou no entanto a consistência destas ligações: não são mais religiosas, naturalistas, antropocentradas, já que pertencem ao mundo da electrónica e da informação". Trata-se de um novo corpo, o corpo cyborg, onde a (i)materialidade da prótese se substitui por inteiro ao próprio corpo ou ao corpo dito próprio, num regime de afectação do incorporal que traz implicada a questão de como mudar de corpo e portanto do limiar do humano enquanto carne. É de uma falência do corpo que releva o cyborg, falência já apontada por Lyotard quando afirmava que "o corpo não responde às exigências e desafios futuros da humanidade", apontando claramente para uma necessidade de desencarnação do corpo.

 

 

14 - Cf. artigo inserido neste número.

15 - in Kant e o Ornitorrinco, Lisboa, Difel, 1997, pp.351/353. A este propósito, cabe referir que, ao contrário de Eco, para quem, o espelho é considerado como prótese intrusiva, dado que pode funcionar como extensão e amplificação do olho, considerámos, em "A reflexividade na cultura contemporânea", RCL nº28, o espelho com uma função distinta: de reflexividade ou produtora de imagens identificatórias.

16 - David Cronenberg, entretiens avec Serge Grünberg, Cahiers du Cinéma, 2000, p.172.

17 - Ibid, p.161.

18 - in: Breve história do corpo e de seus monstros, Lisboa, Vega, Passagens, 1999, p.165.

19 - in. O inumano - considerações sobre o tempo, Lisboa, estampa, 1997, p.69.