O corpo e as suas próteses Fontanille, no artigo inserido neste número da RCL, serve-se dessa
forma que é o moi-peau para encetar toda uma topologização das relações do ego
com o mundo, se assim se pode dizer. Por um lado a ideia de eu-pele permite pensar a
reversibilidade do corpo: a forma do corpo enquanto pele estabelece ao mesmo tempo uma
pregnância do corpo no mundo, como matéria formada, protuberância, mas por outro,
permite pensar o negativo do corpo que a ergonomia hoje desenvolve. O par funcional
vestígio (do corpo)/forma, leva-nos a um tratamento específico das formas dos
objectos-extensão, objectos que acoplados ao corpo lhe aumentam a performance, de modo a
ver neles essa marca moldada do corpo ausente-presente. A ergonomia tem como sustentáculo
a ideia de corpo como interface, estabelecendo na proliferação de objectos-extensão que
fabrica, aquilo a que Fontanille chama "um mundo povoado de corpos e de simulacros e
de projecções do corpo sensível". Assim também essa reversibilidade do eu-pele
permite a tais dispositivos extensionais do sujeito tornarem-se próteses incorporadas. É
que, ao contrário dos dispositivos de reflexão do corpo, espelhos e écrans, os
dispositivos de extensão inserem-se numa dimensão semiótica particular que opera por
contiguidade ou mesmo por acrescentamento, colagem ou sutura. Por isso eles não se
inserem na ordem da representação, não são produtores de imagem, mas são antes
amplificadores ou potenciadores de performance. Situam-se na ordem do fazer e não do
ser/parecer, embora possam, uma vez soldados ao corpo, serem também produtores de imagens
mais ou menos fantasmadas, do corpo próprio. As próteses instauram um regime de
indicialidade que depõe o regime da iconicidade em que assentavam as representações com
base na reflexão. Na verdade, e independentemente da semiose que o carácter indicial
possa produzir, tais procedimentos operam por contiguidade física com o corpo, revelando
a sua natureza impressiva ou de apêndice e já não reflexiva. U. Eco defende o carácter
protésico do espelho, que é inegável em algumas funções que ele pode tomar, como o
periscópio, etc, mas que me parece inaceitável na função reflexiva que é, por
excelência, a duplicação identitária. A questão que aqui se coloca tem pois uma
fundamentação semiótica distinta.
Eco propõe, no quadro das próteses, uma distinção das funções que
estas podem adquirir na sua relação ao corpo. As próteses extensivas, na tipologia de
Eco, são prolongamentos da acção natural do corpo e que o autor distingue das
amplificativas, que têm por função um aumento até então não imaginado da performance
do corpo. Sendo questionável esta distinção, ela oferece no entanto um instrumento de
trabalho capaz de pensar uma semiótica do objecto que se estende do utensílio à
própria tecnologia. É o caso de todos os dispositivos tecnológicos de informação que
operaram uma mutação cognitiva no utilizador e que permitem desdobrar, amplificar,
armazenar a informação.
Para além disso, a prótese pode ainda ser concebida como substituto de
um membro ou órgão em falta. A prótese substitutiva marca uma amputação, uma
ablação e assume-se como incorporação de um dispositivo substitutivo da função
perdida ou enfraquecida. As próteses bióticas, entre o biológico e o maquínico
robot da autoria de Cronemberg, são muito elucidativas do grau ou estatuto das novas
próteses na sua relação com o corpo. Não se trata já ou unicamente de "high
tech", como ele próprio o confessa, mas de uma tecnologia orgância, o gamepod,
no caso de eXistenZ, cujo circuito tecnológico é orgânico, animal, integrando-se
já numa outra postura que o realizador define como não pertencente à tecnologia mas a
uma forma de biotecnologia . Trata-se de um experimentalismo onde a "fusão
homem-máquina" nos é apresentada num real impossível, como aliás o confessa
Cronenberg: "É o que emana do corpo que é real. A vida é formada pelo próprio
processo de existência, o resto é diversão, é uma distracção daquilo que acontece ao
corpo, incluindo a morte, claro/.../". Tais próteses que, para além da função
utilitária que podem cumprir ou substituir, se revelam estigmas de acidentes no corpo,
irrecuperáveis do ponto de vista da organicidade da carne como acontece ainda em Crash,
vêm sendo cada vez mais inseridas numa certa estética do corpo protésico que não só
as incorpora como lhes concede uma dimensão afeccional.
Os novíssimos fenómenos ligados ao digital vêm questionar não só o
estatuto protésico conferido aos dispositivos tecnológicos, como além do mais,
interrogar o próprio estatuto do corpo. Já não é a carne que é aqui afectada, como
amputada, ou transplantada, ou incorporando apêndices, mas trata-se sobretudo de um devir
imaterial do corpo que é também ele produtor das suas figuras imaginárias, donde o
cyborg, por exemplo. Como refere Ieda Tucherman, "o que acontece hoje é que a
tecnologia exibe escandalosamente o 'corpo conectado'. Mudou no entanto a consistência
destas ligações: não são mais religiosas, naturalistas, antropocentradas, já que
pertencem ao mundo da electrónica e da informação". Trata-se de um novo corpo, o
corpo cyborg, onde a (i)materialidade da prótese se substitui por inteiro ao próprio
corpo ou ao corpo dito próprio, num regime de afectação do incorporal que traz
implicada a questão de como mudar de corpo e portanto do limiar do humano enquanto carne.
É de uma falência do corpo que releva o cyborg, falência já apontada por Lyotard
quando afirmava que "o corpo não responde às exigências e desafios futuros da
humanidade", apontando claramente para uma necessidade de desencarnação do corpo.
14 - Cf. artigo inserido neste número.
15 - in Kant e o Ornitorrinco, Lisboa, Difel, 1997,
pp.351/353. A este propósito, cabe referir que, ao contrário de Eco, para quem, o
espelho é considerado como prótese intrusiva, dado que pode funcionar como extensão e
amplificação do olho, considerámos, em "A reflexividade na cultura
contemporânea", RCL nº28, o espelho com uma função distinta: de
reflexividade ou produtora de imagens identificatórias.
16 - David Cronenberg, entretiens
avec Serge Grünberg, Cahiers du Cinéma, 2000, p.172.
17 - Ibid, p.161.
18 - in: Breve história do corpo e de seus monstros,
Lisboa, Vega, Passagens, 1999, p.165.
19 - in. O inumano - considerações sobre o tempo,
Lisboa, estampa, 1997, p.69.
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