A corporeidade na perspectiva
fenomenológica Uma semiótica do corpo terá necessariamente como
pano de fundo da sua reflexão a própria concepção de corpo que vem sendo trabalhada
desde sempre pela filosofia. Nessa medida, podemos fazer equivaler à linguistic turn,
de Saussure e Frege, uma corporeal turn, com origem na fenomenologia desde Husserl
a Merleau-Ponty. Ora, é talvez o pensamento fenomenológico aquele que adquiriu maior
ascendente numa semiótica do corpo, já que o perspectiva na relação com o Outro, na
intersubjectividade, e na relação ao mundo.
Além disso, Merleau-Ponty dá da dualidade corpo/alma uma visão
englobante, não separada, fazendo destas duas dimensões uma unidade significante. A
consciência não tem autonomia relativamente ao corpo, não pode ser tratada como
entidade independente uma vez que ela só existe na sua encarnação. O corpo
próprio distingue-se, em Merleau-Ponty, dos outros corpos físicos, o corpo é um todo,
indivisível da consciência. Como totalidade, o corpo, vive o espaço e o tempo e é a
própria expressão do ser-no-mundo. E é como ser-no-mundo que o corpo participa, comunga
e comunica. Trata-se, nesta perspectiva, da própria inerência do corpo às coisas,
formando uma totalidade de "conivência" com o mundo. O corpo habita o mundo,
não de uma forma racional mas como um "chez soi". O estatuto do corpo como
totalidade abrangente desloca a própria tradição do corpo clínico - corpo morto, num
primeiro momento, corpo-objecto, posteriormente - para se tornar simultâneamente
sujeito/objecto, vivente/vivido, tocante/tocado, num movimento constante de
reversibilidade apoiado no próprio sentido da experiência, como experiência vivida:
"a união do corpo e da alma não foi selada por um decreto arbitrário entre dois
termos exteriores, um objecto, o outro sujeito. Ela cumpre-se a cada instante no movimento
da existência". Existência que deve ser entendida, ela própria, como fazendo corpo
com o mundo. Assim, é por seu turno a noção de esquema corporal que, inserindo o corpo
no espaço envolvente, o redefinirá abolindo-lhe as clivagens a que ele sempre esteve
submetido. A abordagem fenomenológica integra também as coordenadas espacio-temporais em
que o corpo se move. O corpo é corpo no hábito, isto é, inserido numa vivência que é
ao mesmo tempo espacial - espaço envolvente - e temporal - determinada pelas aquisições
vivenciais levadas a cabo pelo sujeito. O hábito faz o corpo, dir-se-ia, na medida em que
o corpo o vai incorporando mas permitindo por seu lado a "ancoragem do sujeito ao
mundo" (ibid, p.169). Porque "o hábito não reside nem no pensamento nem no
corpo objectivo, mas no corpo como mediador do mundo" (ibid). É esta ideia de corpo
como mediador do mundo que faz dele o primeiro operador sígnico. É nesta simbiose que se
gera a semiose, como "nó de significações vivas" (ibid, p.177).
Ao mesmo tempo que estabelece uma fusão poscartesiana entre corpo e
alma, a fenomenologia desliga-se da partilha entre o psíquico, por um lado, e o
fisiológico, por outro. É a carne como tangibilidade e também como visibilidade que
atravessa o corpo próprio, num movimento de dessubjectivação. Outro nome para designar
o "ser bruto", a carne é uma instância de anonimização do corpo, enquanto
este é uma figuração da carne. Esta medida profilática de tratamento do corpo permite
arredar qualquer dimensão egológica, centrada no sujeito ou na consciência. É então
possível tratar da singularidade sem lhe dar um rosto, uma subjectivação.
Como espaço de mediação entre sujeito e mundo, o corpo deixa de ser
assim o indivíduo objectivo da reflexão cartesiana ou o sujeito intencional husserliano,
para se dar como relacional, lugar de interferência. Neste ponto, a fenomenologia de
Merleau-Ponty opera um corte com uma certa consciência transcendental. A corporeidade
desvela e manifesta o carácter latente que liga o sujeito humano ao mundo, nessa
dimensão de carne cósmica, já significante. É precisamente porque o corpo deixa de ser
visto nessa dualidade a que a tradição cristã desde logo o votou que ele se torna um
corpo semiósico, corpo da reversibilidade significante e por isso eminentemente
relacional.
A semiótica integra, na perspectivação do imaginário trabalhada por
Petitot, uma fundamentação fenomenológica. É a noção de lieb - carne - que
está na base da formação do imaginário como puramente tímico ou afeccional,
a-semântico, antes mesmo da simbolização que dará lugar à subjectivação. O
imaginário como carne constitui portanto uma instância heterogénea, substância donde
emana a significação, aquando da aplicação de uma sintaxe actancial, como procedimento
de subjectivação. este imaginário substancial não tem a ver com com as
representações ficcionais mas é antes um medium, entre a regulação biológica
propriamente dita e uma indecibilidade da coisa sentinte.
É também de uma abordagem fenomenológica que partem para o entendimento do corpo
certas posturas analíticas. A. Vergote ao definir a noção psicanalítica de
"imagem do corpo", considera que esta não corresponde a uma realidade
anatómico-fisiológica. Segundo ele, o corpo vivido é uma recomposição operada por
toda uma vida significativa, feita de prazeres, de sofrimentos, de desejo, de angústias e
de apropriação de figuras percebidas no mundo ou colhidas nas informações mais ou
menos científicas. Ou, dito de outra forma, o corpo é o unificador por excelência da
experiência vivida.
3 - Rusthorf, H. The body in language, Londres e NY,
cassel, 2000
4 - cf Kelkel, A., "Le corps dans
l'approche phénoménologique" - Corps, Mars 2000, p.186
5 - Galimberti, op. cit., p.85
6 - in: Merleau-Ponty, M., 1945, Phénoménologie de la
perception, Paris, Gallimard, Tel, p.105.
7 - cf. Le visible et l'invisible, Paris,
gallimard, 1964
8 - cf. "Les deux indicibles ou la sémiotique face à
l'imaginaire comme chair",
9 - "La constitution de l'ego dans le corps
pulsionel", in Etudes d'anthropologie philosophique, pp. 178/194
10 - >J.-M. Brohm, "Psychanalyse et métapsychologie du
corps", Corps, 2000, p.322
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