O Corpo enquanto pele Há
no entanto uma configuração que vem tomando o lugar do corpo e que é a pele, não como
embalagem, invólucro, mas como forma sensível e visibilidade do corpo. Numa perspectiva
antropológica, a pele tendeu realmente a funcionar como limite, zona de separação entre
o dentro e o fora, fronteira instituinte de um espaço sagrado, e de uma zona de
poluição, de interdito, de legislação das práticas do corpo, das condutas sociais e
dos valores prescritos ou interditos. Uma antropologia do corpo mostra assim a assunção
da dimensão político-sagrada dos limites identitários, organizando códigos mais ou
menos rígidos. É por referência a uma ordem do simbólico instituída que a impureza se
marca no limite do corpo e que esse limite ajuda a formar a própria identidade,
instaurada nas duas vertentes, a da rejeição, como limite para fora, e a do segredo,
como limite para dentro.-
Fenómeno curioso e que vem marcar novas abordagens ao corpo é o da
atribuição de uma espessura significante à pele, entendida comunmente como película,
limiar, fronteira e contorno da corporeidade. A espessura da pela permite olhar o corpo
aglutinando várias cadeias semiósicas e conceber assim um novo topos de análise por
onde passam muitas das questões actuais sobre o corpo. É Didier Anzieu o autor deste
novo conceito que hifeniza o eu à pele. A pele adquire a função de continente de
todo o fluxo sígnico que investe o corpo desde a alimentação à competência
linguístico-cognitiva, não deixando contudo de ser limite, couraça protectora das
agressões externas as mais variadas e demarcando os limites topológicos do corpo. Esta
perspectiva reforça, no corpo, as dimensões visual e táctil que têm na pele o seu
ponto respectivo de ancoragem. Por isso, o corpo-enquanto-pele é por excelência
superfície de contacto, abertura ao mundo e ao(s) outro(s), lugar de comunicação e
partilha. O eu-pele é entendido em Anzieu numa tripla derivação tropológica. Em
primeiro lugar, há uma correspondência metafórica entre o eu como envelope psíquico e
a pele como envelope orgânico; em segundo lugar, uma relação metonímica liga o eu à
pele na medida em que eles se inscrevem ao mesmo tempo como dentro e fora, um englobando o
outro; por fim, o eu e a pele estabelecem uma elipse, como figura englobante, da
mãe e da criança. Na verdade, este eu-pele recobre um lugar físico que serve ao
mesmo tempo de ancoragem à fabricação de uma imagem de si. E é justamente sobre este
lugar de confluência que é possível inscrever marcas, marcar o corpo, tornando-o, à
partida, superfície de inscrição.
É desmontando toda a tradição que remete a pele para o estatuto de
couraça, desempenhando uma função de protecção que argumenta François Dagognet,
quando afirma que a herança do corpo é a herança do "fantasma da interioridade
(orgânica ou mesmo ontológica), como se todo o ser se dissimulasse /.../ por detrás de
uma armadura, quando o que acontece é que ele vive na sua vibrante perifieria
(simultâneamente sólida e vulnerável, ou ainda, frágil e resistente)" . Partindo
do discurso clínico sobre o corpo, nomeadamente da dermatologia, o filósofo desenvolve
toda uma análise que designa por dermociência e que tem como argumento fundador essa
mesma ideia de que a pele é espessa dado que ela é reveladora do estado do corpo
orgânico na sua totalidade. Não sendo propriamente uma película, a pele permite olhar o
corpo como um todo, como uma forma material que possui, como todas as formas, o seu verso
e reverso, a que o corpo-pele alude: "não há montanha sem vale, nem verso sem
reverso! Não há vísceras sem a respectiva epiderme!" (ibid, p.13). Não se afirma
aqui qualquer pensamento da aparência, a pele não é puro invólucro de uma qualquer
essência velada, a pele é, por excelência, a zona de interface do corpo. Ao entender-se
como interface, a pele participa de um estatuto de reversibilidade que não possuía até
então.
A própria medicina vem operando um descentramento do interior do corpo
para a pele. Dá-se uma inversão da ideologia dentro/fora, visto que o fora não é um
simples envelope, uma fronteira, mas o próprio lugar da sensação. A importância da
pele vem do facto de ela estar em contacto com o Outro. Retomando a medicina hipocrática,
marcadamente cutânea, a sintomatologia apoia-se na pele como zona capaz de reflectir o
estado clínico do corpo. Sendo esta o espaço de teatralização somática do eu,
tem na alergia o seu revés: allos - outro+ ergon - acção. Todas as
erupções cutâneas são tratadas nesta perspectiva alergológica, como zona e efeito de
contacto ou contaminação do outro. Os problemas alergológicos serão então reacções
extremadas do corpo face ao exterior. A cutis deixou de ser barreira para funcionar como
ponto de confluência entre o corpo e o mundo, como o interface do corpo. É que, a
superfície cutânea é ainda o lugar de erupção e visibilidade das patologias
orgânicas o que indistingue, a partir daí, as categorias da medicina interna e externa.
É toda uma perspectivação nova do corpo que abandona as grandes clivagens de
especialidade, assentes numa perspectiva funcional dos órgãos, para adoptar uma visão
do corpo como um todo, de que a pele é, não um invólucro passivo, mas a verdadeira
"potência que assegura a nossa identidade e a sua defesa" (ibid).
11 - cf. M. Douglas, De la souillure,Paris, Maspero,
1971
12 - cf. Descombes, V., 1977, L'inconscient
malgré lui, Paris, ed. Minuit.
13 - Dagognet, F., 1993, La peau découverte, Paris, Les
Empêcheurs de Tourner en Rond, Délagrange/Synthélabo, p.90.
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