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  Olhar Armado e Eros Tecnológico em Heiner Müller

  [ José Galisi Filho ]

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> Olhar Armado e Eros Tecnológico em Heiner Müller

> O olho de Urânia

> Olhar fenomenólogico

> A blindagem do eu e Eros tecnológico

> O resto não dissimulado

> A Pátria e o Corpo das Palavras

O resto não dissimulado

 

Mesmo, viveu em tempos escuros.
Os tempos clarearam.
Os tempos escureceram.
Quando a claridade diz, eu sou a escuridão
Disse a verdade
Quando a escuridão diz, eu sou
A claridade, não mente

Se a própria relação com o Esclarecimento teatral em Brecht parece envolver as extremidades de um projeto literário tensionado no confronto entre claridade e zonas de sombra produzidas pelo movimento interno do próprio material, o olhar de Heiner Müller procura deduzir desta dinâmica uma nova ordem de grandeza. O circunstante inicial ("wirklich") parece pressupor um gesto enfático, quase didático; de fato, seria preciso reconhecer a opacidade do "capítulo incandescente" do Reich de Mil anos como a consumação da trajetória colonial do Esclarecimento europeu, realizando a "Grande Verdade" das relações produtivas, um relógio que o fascismo empenha-se em adiantar e sobre o qual, no exílio, Brecht procurava elaborar uma síntese que, ironicamente, racionalizava o horror e o excluía do próprio território de verossimilhança artística de seu material, na opção pela forma parábola. Por outro lado, ao problematizar o teatro, Brecht colocou-se na situação paradoxal de desempenhar a teoria e de elevá-la a uma dimensão ficcional.

Mas o "espelho" de Brecht não é o mesmo dos partidários do reflexo e não decalca a realidade, mas a reconstrói, evidenciando e refuncionalizando o caráter técnico/arqueológico das imagens. Nesta ótica, dificilmente poderíamos falar de espelho, ou mesmo numa continuidade orgânica e naturalista entre a realidade e aquilo que é formado no material, embora a imagem de um espelho retrovisor não seria inadequada no sentido prospectivo que Brecht atribuía à tradição e à pedagogia que lhe é imanente, inscrevendo a legibilidade de seu projeto numa totalidade operante que se produz e se nega nos modelos produtivos que forja.

O par claridade e opacidade, contudo, não compõe apenas uma polaridade linear. No domínio da necessidade e da causalidade mecânica são antípodas e definem-se pela exclusão recíproca. A vocação expansiva da obra estende seus predicados ao sujeito que se naturaliza. Mas a estrutura narrativa desta parábola mimetiza e subverte esta distância esclarecida, naturalizando estes atributos na causalidade cega do movimento até que uma nova reflexividade determine uma revolução copernicana da cena. O gesto soberano do primeiro verso parecia implicar uma divisão nítida do mundo entre "nós" e "eles", ainda presente em Furcht und Elend, cujo triunfo como "Erfolg" (êxito) deriva, mais uma ironia objetiva, de seu naturalismo, entre aqueles investidos na certeza histórica, sob a linha virtual que permeia seu tecido cênico, ainda capazes de reconhecer entre as forças racionais e irracionais no processo histórico.

Quando personalizadas, porém, estas duas ordens de grandeza naturais somente podem definir-se de modo mediado pelo discurso: uma deverá afirmar-se através do outra sem anulá-la. É através desta prosa dos elementos que a temporalidade torna-se histórica e constitutiva. O intervalo entre ambas não é vazio e a oscilação entre estes versos é indicativa da impossibilidade mesma em se fixar o que permanece em movimento permanente e não se permite capturar por categorias anacrônicas, cifrando uma forma de universalidade que se afirma e subtrai à sua própria imediaticidade e contingência. Ou por outra, da orquestração destes elementos surgirá um limiar que abrange simultaneamente os dois campos que é, por definição, o terreno onde não cabe juízo teleológico, anônimo como os últimos versos de Der Horatier, um resto anônimo que permanecerá para sempre além do horizonte.

Alternando dois campos de visão, o perfil de Müller visa à refração produzida na fronteira entre ambos, à "inundação" do presente pela "maré" da força ontologizante da traditio e pela avaliação das ilusões necessárias, no caso de Brecht, motivadas por razões estratégicas no plano ideológico, contaminando sua própria eficácia ("Wirkung"). É justamente desta proximidade máxima com o epicentro do projeto brechtiano que se produz uma diferenciação e continuidade como pouco se observou na arte moderna.

 

 

xvi - MÜLLER, Heiner. In: Medeamaterial e outros textos. (Tradução Christine Roehrig e Marcos Renaux). São Paulo, Paz e Terra, 1993, p. 75.