O resto não
dissimulado
Mesmo, viveu em tempos escuros.
Os tempos clarearam.
Os tempos escureceram.
Quando a claridade diz, eu sou a escuridão
Disse a verdade
Quando a escuridão diz, eu sou
A claridade, não mente
Se a própria relação com o Esclarecimento teatral em Brecht parece
envolver as extremidades de um projeto literário tensionado no confronto entre claridade
e zonas de sombra produzidas pelo movimento interno do próprio material, o olhar de
Heiner Müller procura deduzir desta dinâmica uma nova ordem de grandeza. O circunstante
inicial ("wirklich") parece pressupor um gesto enfático, quase didático; de
fato, seria preciso reconhecer a opacidade do "capítulo incandescente" do Reich
de Mil anos como a consumação da trajetória colonial do Esclarecimento europeu,
realizando a "Grande Verdade" das relações produtivas, um relógio que o
fascismo empenha-se em adiantar e sobre o qual, no exílio, Brecht procurava elaborar uma
síntese que, ironicamente, racionalizava o horror e o excluía do próprio território de
verossimilhança artística de seu material, na opção pela forma parábola. Por outro
lado, ao problematizar o teatro, Brecht colocou-se na situação paradoxal de desempenhar
a teoria e de elevá-la a uma dimensão ficcional.
Mas o "espelho" de Brecht não é o mesmo dos partidários do
reflexo e não decalca a realidade, mas a reconstrói, evidenciando e refuncionalizando o
caráter técnico/arqueológico das imagens. Nesta ótica, dificilmente poderíamos falar
de espelho, ou mesmo numa continuidade orgânica e naturalista entre a realidade e aquilo
que é formado no material, embora a imagem de um espelho retrovisor não seria inadequada
no sentido prospectivo que Brecht atribuía à tradição e à pedagogia que lhe é
imanente, inscrevendo a legibilidade de seu projeto numa totalidade operante que se
produz e se nega nos modelos produtivos que forja.
O par claridade e opacidade, contudo, não compõe apenas uma polaridade
linear. No domínio da necessidade e da causalidade mecânica são antípodas e definem-se
pela exclusão recíproca. A vocação expansiva da obra estende seus predicados ao
sujeito que se naturaliza. Mas a estrutura narrativa desta parábola mimetiza e subverte
esta distância esclarecida, naturalizando estes atributos na causalidade cega do
movimento até que uma nova reflexividade determine uma revolução copernicana da cena. O
gesto soberano do primeiro verso parecia implicar uma divisão nítida do mundo entre
"nós" e "eles", ainda presente em Furcht und Elend, cujo
triunfo como "Erfolg" (êxito) deriva, mais uma ironia objetiva, de seu
naturalismo, entre aqueles investidos na certeza histórica, sob a linha virtual que
permeia seu tecido cênico, ainda capazes de reconhecer entre as forças racionais e
irracionais no processo histórico.
Quando personalizadas, porém, estas duas ordens de grandeza naturais
somente podem definir-se de modo mediado pelo discurso: uma deverá afirmar-se através
do outra sem anulá-la. É através desta prosa dos elementos que a temporalidade
torna-se histórica e constitutiva. O intervalo entre ambas não é vazio e a oscilação
entre estes versos é indicativa da impossibilidade mesma em se fixar o que permanece em
movimento permanente e não se permite capturar por categorias anacrônicas, cifrando uma
forma de universalidade que se afirma e subtrai à sua própria imediaticidade e
contingência. Ou por outra, da orquestração destes elementos surgirá um limiar que
abrange simultaneamente os dois campos que é, por definição, o terreno onde não cabe
juízo teleológico, anônimo como os últimos versos de Der Horatier, um resto
anônimo que permanecerá para sempre além do horizonte.
Alternando dois campos de visão, o perfil de Müller visa à refração
produzida na fronteira entre ambos, à "inundação" do presente pela
"maré" da força ontologizante da traditio e pela avaliação das
ilusões necessárias, no caso de Brecht, motivadas por razões estratégicas no plano
ideológico, contaminando sua própria eficácia ("Wirkung"). É justamente
desta proximidade máxima com o epicentro do projeto brechtiano que se produz uma
diferenciação e continuidade como pouco se observou na arte moderna.
xvi - MÜLLER, Heiner. In: Medeamaterial e outros textos.
(Tradução Christine Roehrig e Marcos Renaux). São Paulo, Paz e Terra, 1993, p. 75.