A blindagem do eu e
Eros tecnológico
Se Bilder encerrava ainda uma promessa de secularização
persuasiva, o olhar em Müller pouco a pouco perde esta inocência numa sinergia crescente
com o maquinário como sua alteridade na projeção de um corpo sideral além da dor e das
cicatrizes da prosa da História. A alta tecnologia não é apenas um "tema" da
poética de Heiner Müller, mas a sua forma e seu horizonte. A desnaturalização do corpo
e de suas extensões não deve permanecer exterior aos sentidos, mas antes pensada e
entendida na enervação dos novos meios e na maneira pela qual estas novas tecnologias
organizam-se num corpo coletivo e dele fazem seu suporte imaginário. Esta é a
"Leib" (corporiedade habitado pela alma) do teatro mülleriano.
Em seu discurso fúnebre no Berliner Ensemble em 16 de janeiro de 1996, o
cineasta Alexandre Kluge referia-se à inclinação lírica da obra de Müller na
apreensão da cifra de século: o "caráter blindado"
("Characterpanzer") dos homens que emergem das trincheiras de Verdun, nas quais,
na manhã de nosso século, soletrou-se a primeira sentença da novela de Kafka na
metamorfose/blindagem da sensibilidade em duplo sentido: da batalha de material, na
diferença entre densidade de fogo e manobra, nasce uma nova "ingenuidade
narrativa" descentrada e puramente exterior como o quixotismo de brutalidade da qual
Jünger nos oferece o testemunho; porém esta blindagem conduz necessariamente a Auschwitz
como prótese e armadura dos sentidos.
O teatro da guerra total de Heiner Müller, seria, portanto, o
território avançado desta nova constelação da percepção estética, um domínio ainda
sem nome, e cujo corpo é atravessado pelas linhas de força da batalha de material. Esta
alteridade traduz-se na forma peculiar de um Eros tecnológico pela proliferação de
olhares e na rubricação permanente da textura tecnológica das imagens e dos artefatos
da economia cênica, que não se deixam traduzir na escala do corpo individual dos atores.
Walter Benjamin já observara que a máquina capta por sua objetiva a imagens do corpo
vivo, mas ela não devolve o olhar humano em sua opacidade. É deste olhar nunca
devolvido que fala muitas vezes a cena de Müller ao qual se aponta um outro olhar armado.
Se nos últimos duzentos anos a colonização do mundo natural pela
indústria refluiu no imaginário na forma de fantasmas românticos, na nostalgia de um
espaço marginal à civilização à medida em que este cerco se fechava, hoje, esta
orientação retrospectiva e expressiva com o universo tecnológico revela-se um
obstáculo a um futuro que somente é pensável num matrimônio entre homem e máquina,
entre orgânico e inorgânico. Mas em lugar da exaltação do maquinário clássico como
suporte metafórico e utópico das energias do corpo social - que já incendiara a
fantasia artística das vanguardas históricas à esquerda e à direita, fosse na
expectativa de uma convergência entre revolução social e horizonte técnico, ou como a
distopia na batalha de material, na qual estas energias apresentam-se como "forças
elementares" de qualidade metafísica, quando as máquinas da Era do Vapor e da
Eletricidade ainda dispunham de um potencial mimético, quase totêmico, para dar forma a
estes fluxos,- Müller dramatiza um outro estágio relacional da cena, no qual as novas
tecnologias de reprodução, referidas agora à hegemonia da esfera simbólica, ganharam
contornos lábeis e não são mais portadoras de uma capacidade de figuração global do
sistema. Da dissolução e ampliação do próprio conceito de "natureza", surge
em Müller, portanto, uma nova produtividade como antídoto a toda pasmaceira ecológica,
pois o metabolismo humano é necessariamente predatório e negativo, inscrevendo-se no
olhar geometrizante e convergente de nossa espécie a partir do qual o espaço
multiplica-se em várias dimensões virtuais. Poucos textos do repertório
contemporâneo avançaram tanto na exploração deste novo domínio ampliado de natureza
como as oito páginas de Bildbeschreibung.
Bildbeschreibung conduz a mise-en-scène da perspectiva a seu
limite referencial na segmentação da continuidade espaço-temporal, revertendo sobre as
categorias dialéticas o próprio princípio da identidade que lhe é subjacente; privado
de uma referência estável a seus objetos, que se transmutam aleatoriamente, o sujeito
sucumbe a seu rápido deslocamento. O texto busca delinear desta forma um "horizonte
negativo" como o avesso de uma "paisagem" imaginária na qual o olhar do
observador é permanentemente vigiado e nunca coincide com o foco da leitura. Bildbeschreibung
abre-se por um "zênite descritivo", a partir do qual desencadeiam-se todas as
metamorfoses subsequentes que lhe conferem um patamar narrativo. O olhar da subjetividade
que se constitui deve afastar inicialmente a imobilidade mítica que o contorna. Müller
busca flagrar justamente o grau zero desta constituição como um instante de
não-identidade, do qual emergirá um outro olhar, este sim, portador de sentido. O pathos
dessa utopia não é o distanciamento da contemplação serena, mas a dramatização de
"dois olhares em guerra", como observa Hans Thies-Lehmann: o olhar absoluto, e o
olhar que a ele se contrapõe para conhecer o "reverso" dos fenômenos:
pode-se concluir que o sol, ou seja o que for que lança uma luz sobre
esse lugar, no momento da imagem está no zênite, pode ser que O SOL esteja lá sempre e
NA ETERNIDADE: que ele se movimente, não se pode provar pela imagem, as nuvens também,
se é que são nuvens, flutuam talvez no lugar, o esqueleto de arame sua armação numa
tabuleta azul manchada com a tirânica inscrição CÉU*( grifos do Autor)
O primeiro olhar sem nuanças, na forma da luz branca na eternidade, é
aquele que paralisa ("matar as cores") o horizonte: o olhar da repetição é
também o reflexo das imagens de violência em Shakespeare como "eterno
retorno". O olhar mítico contempla a imagem na extremidade superior desta paisagem
"além da morte". Em sua fixidez, ele esterilizara qualquer forma fecundante de
sentido no devir, ao qual nenhum outro poderá contrapor-se. Esta paisagem torna-se apenas
"legível" quando irrompe, de sua extremidade inferior, um outro olhar: no
intervalo entre ambos, entre o que vê e aquilo que se sê sendo visto num movimento
eterno, inicia-se uma seqüência de metásteses significativas. Este processo
desenrola-se numa "invisível invisibilidade", prossegue Lehmann. Como o olhar
de Urânia, a estranheza que nasce do espelhamento deste logos prolifera-se em
outras figuras. Este outro olhar que está em guerra contra a imobilidade do zênite
descritivo, liberaria a presença eterna e fechada da imagem, plena de si mesma como
imediaticidade pura, até que intervenha uma "outra leitura" que faz implodir a
sua moldura, liberando a temporalidade nas metamorfoses que se seguem. A poética de
Müller revela-se, assim, uma hermenêutica da imagem: "Interessam-me as imprecisões
nos textos antigos", comenta a propósito de sua adaptação de Prometheus.
"É doce habitar lá onde moram os pensamentos longe de tudo", retifica Müller
o verso do Édipo, de Hölderlin. Diante da colonização progressiva da
imaginação pelos mídias, intensifica-se o obscurecimento ("Verblendung) do qual
resulta uma cegueira pela intransitividade da realidade como movimento permanente de
Capital:
Filme em negro
O visível
Pode ser fotografado
OH PARAÍSO DA CEGUEIRA
O que ainda se ouve é conserva
TAPES OS OUVIDOS FILHO
Os sentimentos são de ontem
nada de novo é pensado O mundo
Escapa à descrição
Tudo que é humano
fica estranho
O resultado deste apagamento do horizonte sensível é a elipse absoluta
do eu lírico. O gesto deste poema, já no fim de sua vida, parece apontar para o epílogo
da prosa negra da Dialética do esclarecimento:
Se o discurso pode se dirigir a alguém hoje, não é nem às massas, nem
ao indivíduo, que é impotente, mas antes a uma testemunha imaginária, a quem o
entregamos para que ele não desapareça totalmente conosco
Na máquina publicitária moderna, a própria ficção numérica assume a
eloqüência de objetividade. Somente o capital é sujeito da paisagem. O eu lírico que
se subtrai à própria descrição e se anula como mitologia, decreta a ficção do
diálogo, pois, se existem testemunhas, elas somente podem ser imaginárias, um delírio
estatistico. A autoreferencialidade desta engrenagem não é senão o autismo do capital
escarnecendo do humano.
viii - MÜLLER, Heiner. Um poeta nas trincheiras: primeiro
volume das obras completas de Heiner Müller reúne lírica do diretor alemão. Tradução
de José Galisi Filho. In: "Folha de São Paulo", 21.06.1998.