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  Olhar Armado e Eros Tecnológico em Heiner Müller

  [ José Galisi Filho ]

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> Olhar Armado e Eros Tecnológico em Heiner Müller

> O olho de Urânia

> Olhar fenomenólogico

> A blindagem do eu e Eros tecnológico

> O resto não dissimulado

> A Pátria e o Corpo das Palavras

A blindagem do eu e Eros tecnológico

Se Bilder encerrava ainda uma promessa de secularização persuasiva, o olhar em Müller pouco a pouco perde esta inocência numa sinergia crescente com o maquinário como sua alteridade na projeção de um corpo sideral além da dor e das cicatrizes da prosa da História. A alta tecnologia não é apenas um "tema" da poética de Heiner Müller, mas a sua forma e seu horizonte. A desnaturalização do corpo e de suas extensões não deve permanecer exterior aos sentidos, mas antes pensada e entendida na enervação dos novos meios e na maneira pela qual estas novas tecnologias organizam-se num corpo coletivo e dele fazem seu suporte imaginário. Esta é a "Leib" (corporiedade habitado pela alma) do teatro mülleriano.

Em seu discurso fúnebre no Berliner Ensemble em 16 de janeiro de 1996, o cineasta Alexandre Kluge referia-se à inclinação lírica da obra de Müller na apreensão da cifra de século: o "caráter blindado" ("Characterpanzer") dos homens que emergem das trincheiras de Verdun, nas quais, na manhã de nosso século, soletrou-se a primeira sentença da novela de Kafka na metamorfose/blindagem da sensibilidade em duplo sentido: da batalha de material, na diferença entre densidade de fogo e manobra, nasce uma nova "ingenuidade narrativa" descentrada e puramente exterior como o quixotismo de brutalidade da qual Jünger nos oferece o testemunho; porém esta blindagem conduz necessariamente a Auschwitz como prótese e armadura dos sentidos.

O teatro da guerra total de Heiner Müller, seria, portanto, o território avançado desta nova constelação da percepção estética, um domínio ainda sem nome, e cujo corpo é atravessado pelas linhas de força da batalha de material. Esta alteridade traduz-se na forma peculiar de um Eros tecnológico pela proliferação de olhares e na rubricação permanente da textura tecnológica das imagens e dos artefatos da economia cênica, que não se deixam traduzir na escala do corpo individual dos atores. Walter Benjamin já observara que a máquina capta por sua objetiva a imagens do corpo vivo, mas ela não devolve o olhar humano em sua opacidade. É deste olhar nunca devolvido que fala muitas vezes a cena de Müller ao qual se aponta um outro olhar armado.

Se nos últimos duzentos anos a colonização do mundo natural pela indústria refluiu no imaginário na forma de fantasmas românticos, na nostalgia de um espaço marginal à civilização à medida em que este cerco se fechava, hoje, esta orientação retrospectiva e expressiva com o universo tecnológico revela-se um obstáculo a um futuro que somente é pensável num matrimônio entre homem e máquina, entre orgânico e inorgânico. Mas em lugar da exaltação do maquinário clássico como suporte metafórico e utópico das energias do corpo social - que já incendiara a fantasia artística das vanguardas históricas à esquerda e à direita, fosse na expectativa de uma convergência entre revolução social e horizonte técnico, ou como a distopia na batalha de material, na qual estas energias apresentam-se como "forças elementares" de qualidade metafísica, quando as máquinas da Era do Vapor e da Eletricidade ainda dispunham de um potencial mimético, quase totêmico, para dar forma a estes fluxos,- Müller dramatiza um outro estágio relacional da cena, no qual as novas tecnologias de reprodução, referidas agora à hegemonia da esfera simbólica, ganharam contornos lábeis e não são mais portadoras de uma capacidade de figuração global do sistema. Da dissolução e ampliação do próprio conceito de "natureza", surge em Müller, portanto, uma nova produtividade como antídoto a toda pasmaceira ecológica, pois o metabolismo humano é necessariamente predatório e negativo, inscrevendo-se no olhar geometrizante e convergente de nossa espécie a partir do qual o espaço multiplica-se em várias dimensões virtuais. Poucos textos do repertório contemporâneo avançaram tanto na exploração deste novo domínio ampliado de natureza como as oito páginas de Bildbeschreibung.

Bildbeschreibung conduz a mise-en-scène da perspectiva a seu limite referencial na segmentação da continuidade espaço-temporal, revertendo sobre as categorias dialéticas o próprio princípio da identidade que lhe é subjacente; privado de uma referência estável a seus objetos, que se transmutam aleatoriamente, o sujeito sucumbe a seu rápido deslocamento. O texto busca delinear desta forma um "horizonte negativo" como o avesso de uma "paisagem" imaginária na qual o olhar do observador é permanentemente vigiado e nunca coincide com o foco da leitura. Bildbeschreibung abre-se por um "zênite descritivo", a partir do qual desencadeiam-se todas as metamorfoses subsequentes que lhe conferem um patamar narrativo. O olhar da subjetividade que se constitui deve afastar inicialmente a imobilidade mítica que o contorna. Müller busca flagrar justamente o grau zero desta constituição como um instante de não-identidade, do qual emergirá um outro olhar, este sim, portador de sentido. O pathos dessa utopia não é o distanciamento da contemplação serena, mas a dramatização de "dois olhares em guerra", como observa Hans Thies-Lehmann: o olhar absoluto, e o olhar que a ele se contrapõe para conhecer o "reverso" dos fenômenos:

pode-se concluir que o sol, ou seja o que for que lança uma luz sobre esse lugar, no momento da imagem está no zênite, pode ser que O SOL esteja lá sempre e NA ETERNIDADE: que ele se movimente, não se pode provar pela imagem, as nuvens também, se é que são nuvens, flutuam talvez no lugar, o esqueleto de arame sua armação numa tabuleta azul manchada com a tirânica inscrição CÉU*( grifos do Autor)

O primeiro olhar sem nuanças, na forma da luz branca na eternidade, é aquele que paralisa ("matar as cores") o horizonte: o olhar da repetição é também o reflexo das imagens de violência em Shakespeare como "eterno retorno". O olhar mítico contempla a imagem na extremidade superior desta paisagem "além da morte". Em sua fixidez, ele esterilizara qualquer forma fecundante de sentido no devir, ao qual nenhum outro poderá contrapor-se. Esta paisagem torna-se apenas "legível" quando irrompe, de sua extremidade inferior, um outro olhar: no intervalo entre ambos, entre o que vê e aquilo que se sê sendo visto num movimento eterno, inicia-se uma seqüência de metásteses significativas. Este processo desenrola-se numa "invisível invisibilidade", prossegue Lehmann. Como o olhar de Urânia, a estranheza que nasce do espelhamento deste logos prolifera-se em outras figuras. Este outro olhar que está em guerra contra a imobilidade do zênite descritivo, liberaria a presença eterna e fechada da imagem, plena de si mesma como imediaticidade pura, até que intervenha uma "outra leitura" que faz implodir a sua moldura, liberando a temporalidade nas metamorfoses que se seguem. A poética de Müller revela-se, assim, uma hermenêutica da imagem: "Interessam-me as imprecisões nos textos antigos", comenta a propósito de sua adaptação de Prometheus. "É doce habitar lá onde moram os pensamentos longe de tudo", retifica Müller o verso do Édipo, de Hölderlin. Diante da colonização progressiva da imaginação pelos mídias, intensifica-se o obscurecimento ("Verblendung) do qual resulta uma cegueira pela intransitividade da realidade como movimento permanente de Capital:

 

Filme em negro
O visível
Pode ser fotografado
OH PARAÍSO DA CEGUEIRA
O que ainda se ouve é conserva
TAPES OS OUVIDOS FILHO
Os sentimentos são de ontem
nada de novo é pensado O mundo
Escapa à descrição
Tudo que é humano
fica estranho

 

O resultado deste apagamento do horizonte sensível é a elipse absoluta do eu lírico. O gesto deste poema, já no fim de sua vida, parece apontar para o epílogo da prosa negra da Dialética do esclarecimento:

Se o discurso pode se dirigir a alguém hoje, não é nem às massas, nem ao indivíduo, que é impotente, mas antes a uma testemunha imaginária, a quem o entregamos para que ele não desapareça totalmente conosco

Na máquina publicitária moderna, a própria ficção numérica assume a eloqüência de objetividade. Somente o capital é sujeito da paisagem. O eu lírico que se subtrai à própria descrição e se anula como mitologia, decreta a ficção do diálogo, pois, se existem testemunhas, elas somente podem ser imaginárias, um delírio estatistico. A autoreferencialidade desta engrenagem não é senão o autismo do capital escarnecendo do humano.

 

 

viii - MÜLLER, Heiner. Um poeta nas trincheiras: primeiro volume das obras completas de Heiner Müller reúne lírica do diretor alemão. Tradução de José Galisi Filho. In: "Folha de São Paulo", 21.06.1998.

ix - KLUGE, Alexander. Es ist ein Irrtum, daß die Toten tot sind. In: "Kalkfell für Heiner Müller. Ein Arbeitsbuch". Theater der Zeit, Berlin, 1996, p. 145.

x - Heiner Goebbels traduz este descompasso em sua recente encenação francesa de a Hydra no Teatro Bobigny de Paris. Os atores deveriam contracenar com um objeto cênico aparentemente incomensurável na forma de um cone metalico invertido de 15 m. A tarefa de direção exige como desempenho vencer esta "ilusão" de escalas e refazer a economia cênica como domímio da Hydra que se move sob os pés.

xi - BENJAMIN, Walter. Gesammelte Werke. Surhkamp, Frankfurt/M, Bd. I, p. 646.

xii - THIES-LEHMANN, Hans. Theater der Blicke. In: "Dramatik der DDR". Suhrkamp, FrankfurtM, 1987, p. 191.

xiii - MÜLLER, Heiner. In: Medeamaterial e outros textos. (Tradução Christine Roehrig e Marcos Renaux). São Paulo, Paz e Terra, 1993, p. 75. 1993, 153-4.

xiv - Tradução do Autor.

xv - ADORNO, Theodor/HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Tradução de Guido Antonio de Almeida. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1985, p. 238-9.