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  Olhar Armado e Eros Tecnológico em Heiner Müller

  [ José Galisi Filho ]

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> Olhar Armado e Eros Tecnológico em Heiner Müller

> O olho de Urânia

> Olhar fenomenólogico

> A blindagem do eu e Eros tecnológico

> O resto não dissimulado

> A Pátria e o Corpo das Palavras

Olhar fenomenólogico

Foi a critica Genia Schulz a primeira a acentuar na sensibilidade lírica de Heiner Müller a tematização recorrente de um "olhar dissolvente" na paisagem "pós-dramática" dos "fragmentos sintéticos" dos anos setenta. A intensividade formal e o impulso redutor parecem indicar um movimento centrípeto na escritura que dissolve a referencialidade cênica e sua perspectiva ocular central de signo cartesiano. Particularmente no tríptico da historia alemã, onde se busca uma síntese em chave genealógica do modelo de uma História pulsional, além daquele território colonizado pelo Esclarecimento, no qual se cristaliza a noção de sujeito autônomo, a potência analítica deste olhar incorpóreo hipertrofia-se até implicar o zênite da constelação do meio dia, grau zero do desenvolvimento histórico.

Mais sintomático ainda é a ênfase crescente de Müller, a partir deste ponto, na categoria do material como elo reflexivo e ponto de fuga da não-identidade fundamental entre sujeito e objeto no espaço interno da forma e no horizonte da tradição, especialmente em sua relação com Brecht: a produtividade do material revela-se justamente no olhar prospectivo que, vencendo a inércia ontologizante desta traditio e a "intimidação pelos clássicos", reaviva, no momento construtivo de cada obra do passado, aquele esboço que a precede, contudo, não desaparece em sua realização, como um gesto que se projeta sobre o devir.

Por sua vez, esta constelação de reflexividade das Gedankenspiele como "material" em Müller é paralela, a uma crescente virtualização e desmaterialização da cena num movimento coerente que vai de Die Schlacht ate Bildbeschreibung, quando se fecha conseqüentemente um ciclo formal. Este é o momento em que a máquina cênica de Müller ganha seu valor emblemático como plataforma e ponto de convergência das principais tradições cênicas do século, ao proclamar a impossibilidade do teatro como visão da totalidade negativa do mundo em sua hibernação dialética, uma latência como olhar para um "teatro do futuro" e de uma cena puramente virtual, na forma da incandescência do monólogo de Lessing em Gundling, consumido em efígie diante da beleza inútil de sua lírica, sob as ruínas do edifício teatral.

VOZ (+ PROJEÇÃO) HORA DA INCANDESCÊNCIA BÚFALOS MORTOS SAINDO DOS CANYONS CARDUMES DE TUBARÕES DENTES DE LUZ NEGRA OS CROCODILOS MEUS AMIGOS GRAMÁTICA DE TERREMOTOS CASAMENTO DO FOGO E ÁGUA HUMANOS DE NOVA CARNE LAUTRÉAMONTMALDOROR PRÍNCIPE DE ATLÂNTIDA FILHO DOS MORTOS. PROJEÇÃO: APOTEOSE DE ESPARTACO UM FRAGMENTO

Sobre o palco um monte de areia que cobre o busto. Ajudantes, vestidos de espectadores de teatro, despejam sacos e baldes de areia sobre o monte, enquanto garçons enchem a cena com bustos de poetas e pensadores. Lessing cava a areia, desenterra uma mão, um braço. Os garçons, agora com capacetes, colocam sobre Lessing um busto de Lessing que cobre seus ombros e a cabeça. Lessing, de joelhos, tenta inutilmente se livrar do busto. Ouve-se seu grito surdo de dentro do bronze. Aplauso dos garçons, dos ajudantes (espectadores)

Da possibilidade de olhar diretamente no "branco dos olhos da História" como fundamento da política surgiria, portanto, um novo limiar de visibilidade no zênite e meio-dia do firmamento; não obstante, como ponto extremo deste movimento, ela aponta necessariamente para o declínio ("Untergang") de todo resíduo utópico das imagens no chão da experiência. Especialmente paradigmática e sempre retomada é a análise de Schulz do poema Bilder, interpretado em chave fenomenológica para além do interdito teológico da imagens da reconciliação

 

Imagens significam tudo em seu princípio. São sólidas. Espaçosas.
Mas os sonhos se precipitam, tornam-se forma e desilusão.
Já o céu, não o sustenta mais qualquer imagem. As nuvens, vistas
de um avião: um vapor que nos subtrai a vista. O grou nada mais
que um pássaro
Mesmo o comunismo, a imagem final, sempre rejuvenescida
ois sempre e sempre lavada pelo sangue, a vida de todos os dias
O paga em moeda miúda, sem brilho, desbotada
pelo suor
Escombros de grandiosos poemas como corpos há muito amados
E agora não mais necessários, no caminho desta espécie
de infinitas carências
No entrelinhas as queixas
sobre os ossos dos felizes carregadores de pedra
Pois a beleza significa o possível fim do espanto.

 

O poema desenha, em circuito reduzido, a imanência de um processo de secularização: a "substância" utópica das imagens, uma ilusão de perspectiva, é devorada e sedimentada pela práxis na opacidade do existente. O interdito à imagem da reconciliação depura a matéria artística, fazendo-a descer ao chão da experiência, na qual a arte nasce como privilégio que deve ser justificado. As imagens fecundam a realidade, produzem-na e a falsificam. Se a matéria-prima da lírica ingênua nutre-se desta imediaticidade, a produção da identidade é o aprendizado daquele olhar que, como em A Certeza Sensível, ignora a miragem de um "conteúdo" originário exterior. Essa secularização das imagens corresponde também a uma gradual historicização de seus conteúdos. Se as imagens significam ("bedeuten") convencionalmente, nesta mesma tradição, uma realidade "pura" e "imediata" em seu início ("alles"), pouco a pouco, elas se tornam palpáveis e portadoras de significado ("geräumig") ao desenvolver sua autonomia num tempo extenso.

"Ler" a realidade significaria, portanto, "soletrá-la" em seus fenômenos através de categorias, que existem desde já como uma tessitura que se arma e se desfaz às nossas mãos. Ela já é realidade desde sempre, por todos os textos que atualiza. Mas o poema aponta também para o gesto indicativo que precede a denotação destes conteúdos já socializados: os dêiticos "isto" ou "aquilo" indicam um vetor que nos aponta para o objeto, para a tessitura já armada do real, cujo lugar, na verdade, é uma ausência como nexo arbitrário de significação, ou da ilusão de uma significação substancial dada na experiência sensível, sobre cuja superfície deslizamos. O "isto" de nossas designações, presente como uma virtualidade no poema de Müller, não pode ser imediato, mas mediado, como uma bruma que se superpõe ao olhar ingênuo, nas metáforas de nuvens e fumaça


 

iv - SCHULZ, Genia. Der zerstsetze Blick. Sehzwang und Blendung bei Heiner Müller. In: "Heiner Müller Material". Aufbau, Leipzig, 1985, p. 165.

v - Fatzer+-Keuner. Ibidem, p. 30.

vi - GALISI FILHO, José. A constelação do zênite: imaginação histórica e utópica em Heiner Müller anos setenta e oitenta. Departamento de Teoria Literária do Instituto de Estudos das Linguagem, Unicamp, 1995, p. 219.

vii - SCHULZ, Genia. Heiner Müller. Metzler, Stuttgart, 1980, p. 169-172.