Olhar fenomenólogico
Foi a critica Genia Schulz a primeira a acentuar na sensibilidade lírica
de Heiner Müller a tematização recorrente de um "olhar dissolvente" na
paisagem "pós-dramática" dos "fragmentos sintéticos" dos anos
setenta. A intensividade formal e o impulso redutor parecem indicar um movimento
centrípeto na escritura que dissolve a referencialidade cênica e sua perspectiva ocular
central de signo cartesiano. Particularmente no tríptico da historia alemã, onde se
busca uma síntese em chave genealógica do modelo de uma História pulsional, além
daquele território colonizado pelo Esclarecimento, no qual se cristaliza a noção de
sujeito autônomo, a potência analítica deste olhar incorpóreo hipertrofia-se até
implicar o zênite da constelação do meio dia, grau zero do desenvolvimento histórico.
Mais sintomático ainda é a ênfase crescente de Müller, a partir deste
ponto, na categoria do material como elo reflexivo e ponto de fuga da não-identidade
fundamental entre sujeito e objeto no espaço interno da forma e no horizonte da
tradição, especialmente em sua relação com Brecht: a produtividade do material
revela-se justamente no olhar prospectivo que, vencendo a inércia ontologizante desta traditio
e a "intimidação pelos clássicos", reaviva, no momento construtivo de cada
obra do passado, aquele esboço que a precede, contudo, não desaparece em sua
realização, como um gesto que se projeta sobre o devir.
Por sua vez, esta constelação de reflexividade das Gedankenspiele
como "material" em Müller é paralela, a uma crescente virtualização e
desmaterialização da cena num movimento coerente que vai de Die Schlacht ate Bildbeschreibung,
quando se fecha conseqüentemente um ciclo formal. Este é o momento em que a máquina
cênica de Müller ganha seu valor emblemático como plataforma e ponto de convergência
das principais tradições cênicas do século, ao proclamar a impossibilidade do teatro
como visão da totalidade negativa do mundo em sua hibernação dialética, uma latência
como olhar para um "teatro do futuro" e de uma cena puramente virtual, na forma
da incandescência do monólogo de Lessing em Gundling, consumido em efígie diante
da beleza inútil de sua lírica, sob as ruínas do edifício teatral.
VOZ (+ PROJEÇÃO) HORA DA INCANDESCÊNCIA BÚFALOS MORTOS SAINDO DOS
CANYONS CARDUMES DE TUBARÕES DENTES DE LUZ NEGRA OS CROCODILOS MEUS AMIGOS GRAMÁTICA DE
TERREMOTOS CASAMENTO DO FOGO E ÁGUA HUMANOS DE NOVA CARNE LAUTRÉAMONTMALDOROR PRÍNCIPE
DE ATLÂNTIDA FILHO DOS MORTOS. PROJEÇÃO: APOTEOSE DE ESPARTACO UM FRAGMENTO
Sobre o palco um monte de areia que cobre o busto. Ajudantes, vestidos
de espectadores de teatro, despejam sacos e baldes de areia sobre o monte, enquanto
garçons enchem a cena com bustos de poetas e pensadores. Lessing cava a areia, desenterra
uma mão, um braço. Os garçons, agora com capacetes, colocam sobre Lessing um busto de
Lessing que cobre seus ombros e a cabeça. Lessing, de joelhos, tenta inutilmente se
livrar do busto. Ouve-se seu grito surdo de dentro do bronze. Aplauso dos garçons, dos
ajudantes (espectadores)
Da possibilidade de olhar diretamente no "branco dos olhos da
História" como fundamento da política surgiria, portanto, um novo limiar de
visibilidade no zênite e meio-dia do firmamento; não obstante, como ponto extremo deste
movimento, ela aponta necessariamente para o declínio ("Untergang") de todo
resíduo utópico das imagens no chão da experiência. Especialmente paradigmática e
sempre retomada é a análise de Schulz do poema Bilder, interpretado em chave
fenomenológica para além do interdito teológico da imagens da reconciliação
Imagens significam tudo em seu princípio. São sólidas. Espaçosas.
Mas os sonhos se precipitam, tornam-se forma e desilusão.
Já o céu, não o sustenta mais qualquer imagem. As nuvens, vistas
de um avião: um vapor que nos subtrai a vista. O grou nada mais
que um pássaro
Mesmo o comunismo, a imagem final, sempre rejuvenescida
ois sempre e sempre lavada pelo sangue, a vida de todos os dias
O paga em moeda miúda, sem brilho, desbotada
pelo suor
Escombros de grandiosos poemas como corpos há muito amados
E agora não mais necessários, no caminho desta espécie
de infinitas carências
No entrelinhas as queixas
sobre os ossos dos felizes carregadores de pedra
Pois a beleza significa o possível fim do espanto.
O poema desenha, em circuito reduzido, a imanência de um processo de
secularização: a "substância" utópica das imagens, uma ilusão de
perspectiva, é devorada e sedimentada pela práxis na opacidade do existente. O interdito
à imagem da reconciliação depura a matéria artística, fazendo-a descer ao chão da
experiência, na qual a arte nasce como privilégio que deve ser justificado. As imagens fecundam
a realidade, produzem-na e a falsificam. Se a matéria-prima da lírica ingênua nutre-se
desta imediaticidade, a produção da identidade é o aprendizado daquele olhar que, como
em A Certeza Sensível, ignora a miragem de um "conteúdo" originário
exterior. Essa secularização das imagens corresponde também a uma gradual
historicização de seus conteúdos. Se as imagens significam ("bedeuten")
convencionalmente, nesta mesma tradição, uma realidade "pura" e
"imediata" em seu início ("alles"), pouco a pouco, elas se tornam
palpáveis e portadoras de significado ("geräumig") ao desenvolver sua
autonomia num tempo extenso.
"Ler" a realidade significaria, portanto,
"soletrá-la" em seus fenômenos através de categorias, que existem desde já
como uma tessitura que se arma e se desfaz às nossas mãos. Ela já é
realidade desde sempre, por todos os textos que atualiza. Mas o poema aponta também
para o gesto indicativo que precede a denotação destes conteúdos já socializados: os
dêiticos "isto" ou "aquilo" indicam um vetor que nos aponta
para o objeto, para a tessitura já armada do real, cujo lugar, na verdade, é uma ausência
como nexo arbitrário de significação, ou da ilusão de uma significação
substancial dada na experiência sensível, sobre cuja superfície deslizamos. O
"isto" de nossas designações, presente como uma virtualidade no poema de
Müller, não pode ser imediato, mas mediado, como uma bruma que se superpõe ao
olhar ingênuo, nas metáforas de nuvens e fumaça
iv - SCHULZ, Genia. Der zerstsetze Blick. Sehzwang und
Blendung bei Heiner Müller. In: "Heiner Müller Material". Aufbau, Leipzig,
1985, p. 165.