Outros estratos
Os estratos das caixas, dos
caixilhos, molduras e caixotes, dos tubos de ferro galvanizado,
do vidro, dos revestimentos sintéticos, do bronze pintado
com tinta branca industrial, das dobradiças, lâmpadas,
fechos, fios e torneiras e ainda os dos panos de um branco alvo
para os corpos que já lá não estão.
Os estratos de um alfabeto que predomina na escultura de Sanches
até ao princípio da década de 90, e que foram
escolhidos não apenas pela sua fácil acessibilidade
mas pela sua autonomia simbólica, ready-mades da indústria
com as suas histórias próprias que se demarcam das
das imagens que citam. Estratos de assemblages que constróem
composições com uma aparência funcional, semi-mecânica
e que em muitos casos aligeiram a dimensão simbólica
ou trágica dos motivos. Será o caso do tema dos martírios
na série "Santos e Frangmentos"- os olhos de Sta
Luzia simbolizados por duas lâmpadas com casquilho e fio
eléctrico, os olhos de S.
João Baptista prolongados por dois tubos "que
quase se vêem como dois chifres"- mas é também
o caso da banheira de Marat ou das caixas de Mme.
De Verninac, segundo David de 1991 que são aparelhadas
com tubos de canalização em ferro que sugerem irrigações,
circuitos líquidos, reforçados nesta última
por uma torneira que encima a obra sugerindo-se como fonte ou chuveiro,
suavizando o soturno da evocação funerária
e agonizante.
Se todos estes objectos já
funcionam como eco das experimentações e da «cultura
dos materiais» das vanguardas do princípio do século
ou das novas vanguardas dos anos 60, são as caixas, os elementos
mais assíduos até à década de 90, que
mais reverberam o dadaísmo pelo seu recurso aos receptáculos
e à sua diegese conteúdo/contentor. Caixas vazias,
pneumáticas, abertas ou fechadas, sobrepostas, inclinadas
ou invertidas, que servem de moldura nas naturezas mortas, de recipiente
para os corpos de bronze que a tinta branca disfarça de gesso.
Porque vazias, secretas. Porque vazias a sua forma reforça-se
enquanto totalidade, a totalidade de "objecto específico"
(Judd) não redutível às suas partes, de "formas
unitárias" (Morris), indivisíveis mas relacionais.
São caixas colocadas com rigor e aprumo, respeitando em cada
exposição a (sobre)posição correcta
prevista, apesar da aparente aleatoriedade da colocação.
Trata-se de um "controlo do acaso", de um acaso
onde está "tudo (ou quase tudo) prestes a desconjuntar-se,
tudo «preso por alfinetes»" como descreve Filomena Molder,
"mas seguramente acabado, perfeito- subtileza, tensão
e escândalo próprio destas obras."(7)
São estas caixas que construídas em variações
de módulo e com a matéria industrial do aglomerado
e contraplacado contribuem para a aparência de um trabalho
em curso, imprevisivelmente interrompido pelos seus actores ou personagens.
São caixas para corpos ausentes, e a ausência, esclarece
a comissária, "é diferente do nada".
(7)
Molder, Maria Filomena, "Há esculturas que são vestígios", Matérias
Sensíveis, Lisboa, Relógio d'Água, 1999, p. 68.
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