Estrato I
O Centro de Arte Moderna da
Fundação Calouste Gulbenkian apresenta a primeira
retrospectiva da carreira do artista Rui Sanches através
de um conjunto de 115 obras repartidas entre a escultura e o desenho,
os dois géneros a que se tem dedicado nos últimos
dezassete anos do seu percurso artístico e que com alguma
regularidade tem exposto no país. Pautado pela consistência
das linguagens e das técnicas praticadas, este percurso agora
em retrospectiva já foi em vários artigos da crítica
reconhecido como um meio percurso, fortemente promissor no que ainda
tem por produzir. Na introdução ao seu texto do catálogo,
Nuno Faria afiança "Momento de pausa, de balanço,
uma retrospectiva de meio percurso é frequentemente, também,
o lugar onde se exprime a energia vital de uma obra e em que se
adivinha o seu caminho posterior, por vezes o mais estimulante."(1)
Esta sensação em torno do que ainda nos reserva a
obra de R.S. será em grande parte resultante de uma expectativa
relativamente à continuidade e ao possível desenvolvimento
da linguagem que R.S. iniciou no princípio dos anos 90 com
a escultura por camadas. Sintomáticas da potencialidade e
do ainda longe esgotamento desta linguagem das «estratificações»
são as últimas obras de 2001 aqui inauguradas e que
abrem esta exposição sinalizando a gramática
em torno da qual pulsou a sua última década mas também
prenunciando que o ponto de partida para a mostra bem que poderá
coincidir com um ponto de continuidade publicamente aguardada para
o seu trabalho.
Logo na sala de entrada Sem
Título de 2001 anuncia dois volumes
semi-esféricos construídos em sobreposições
de placas de contraplacado criando um motivo ora orgânico
ora geológico que é reforçado por reentrâncias
cavernosas em forma de anfiteatro e de cratera de um corpo tanto
informe quanto decisivamente mutante. Esta abertura para a retrospectiva
lança a pedra de toque para uma itinerância arqueológica
e crítica na obra de R.S. desde cedo debruçada nos
processos de formação, de acumulação
e de reinterpretação dos legados históricos.
Estruturada cronologicamente
pelos períodos, temas e linguagens que delinearam o trabalho
de R.S. desde a sua primeira exposição individual
na Galeria Diferença ("Et in Arcadia Ego", 1984),
esta retrospectiva comissariada por Leonor Nazaré acompanha-nos
desde a sua fase das construções e montagens de inspiração
construtivista (período apresentado: de 1984 a 1987), às
esculturas inspiradas nos temas barrocos e neoclássicos de
Poussin, David e Zurbarán (com obras de 1984 a 1991), às
composições em desenho e escultura dos temas hagiográficos
e mitológicos (com obras de 1990 e 1991) até às
esculturas laminadas que marcaram toda a década de 90 até
este ano.
Mas não será
arriscada ou imprecisa a interpretação de todas estas
fases à luz desta última linguagem das estratificações,
porventura menos recente do que uma primeira leitura poderá
prever. Isto porque o dispositivo da acumulação e
da sobreposição é o do interface entre estratos,
entre planos discursivos, temporais, espaciais e até perceptivos
que desde os anos 80 situaram as suas obras num processo dialéctico
e dialógico. A prática da montagem de pedaços
de madeira com ripas e pequenas faixas de contraplacado que tanto
caracteriza as construções de 1984 Pássaro,
Sítio
e a Natureza
Morta II, são exemplares
dessa sobreposição de planos, desse encaixe de superfícies
diversas por níveis e tempos desfasados. Na mesma assemblage
reúnem-se os múltiplos pontos de vista, contraídos
e sobrepostos, numa atitude anti-ilusionista e sintética
tão própria do cubismo e dos seus compósitos
perceptivos. E ainda porque fixadas à parede criam também
com ela um novo estrato. O plano bidimensional da parede perde a
neutralidade e instala-se com a obra, tal como acontece em Tlim,
Tlim de 1987, o counter-relief tão evocador
de Tatlin e da sua "perseguição" às
dobras de parede na exposição do seu lançamento
em 1915
Com um trabalho paralelo a
este período e que se estendeu até 1990, R.S. reincide
na sua proposta de confronto ou de "toque" entre estratos
convocando para o desenho e para as três dimensões
imagens históricas da arte dos séculos XVII a XIX
da autoria de Poussin, Zurbarán, Chardin e David. Daqui resultariam
composições com caixas de madeira e contraplacado,
tubos de ferro galvanizado, bronze pintado e panos para um estudo
reinterpretativo do barroco e do neoclassicismo sob uma linguagem
construtivista. Et
in Arcadia Ego, segundo Poussin de 1984 e a escultura
Marat,
segundo David de 1987 acompanhada da série de desenhos
de 1999 A
Marat executados sobre fotografias serigrafadas, são
as obras mais conhecidas desta intertextualidade e da reperspectivação
formal das imagens na obra de R.S. Enquanto que "Et in Arcadia
Ego" recupera a famosa inscrição do sarcófago(2)
presente na enigmática pintura de Nicolas Poussin Les
Bergers d’Arcadie de 1638, já Marat recria o ambiente
dramático e emocional do assassinato de um dos chefes políticos
da Revolução Francesa que Jacques-Louis David havia
policialmente retratado em 1793 na célebre A Morte de
Marat. Para além de sintetizarem o tema da morte e da
agonia- também recorrente nas esculturas aos santos martirizados-
assunto responsável pelo preenchimento de todas as agendas
da actualidade política à noticiosa e à estética,
estas obras funcionam sempre sob referência, sob reenvio às
fontes históricas e aos estratos visuais da cultura ocidental.
"Sempre existiu em
todas as artes uma componente de intertextualidade. Só no
período romântico e modernista achámos que tínhamos
que inventar tudo e abolir o que estava para trás. Felizmente,
as pessoas hoje estão muito mais à vontade para lidar
com os materiais e as fontes históricas que entenderem. As
relações que faço com artistas anteriores não
têm a ver com o aspecto de «citação» ou de «apropriação»,
no sentido que lhes era dado nos anos 80, mas com uma reinterpretação.
Um pouco da mesma maneira que Picasso fez quadros a partir das Meninas
de Velásquez… Sempre me interessou tentar entrar, de forma
consciente, nessa tradição."(3)
É esta tradição
da reinterpretação temática através
dos instrumentos e dos modelos visuais das diferentes épocas
e dos diferentes movimentos estéticos que constitui um dos
mais pulsantes pólos de interesse da imagem e da sua análise.
Ao ingressar nesta tradição, R.S. demarca-se da programada
atitude de varrimento nihilista ou de "zerificação"
de que partiram muitos modernistas obcecados em limpar o território
visual dos estilos, das regras e, porque não também,
das "reinterpretações". Por sua vez, Sanches
reconhece nessas sedimentações a vitalidade simbólica
dos planos Infinitos do passado que se vão empilhando
e cuja descoberta e reconhecimento só é agenciada
no futuro: "Julgo que se deve olhar para os trabalhos do
passado, não como algo que teve a sua função
numa determinada «evolução» estética, mas como
coisas actuantes ainda hoje e que são recriadas pelas obras
do presente. Ficaram parte do vocabulário. Olho para eles
(...) como maneiras de fazer que transportam em si determinado sentido"(4).
Em 1994 Sanches cria essa sua visão dos Infinitos:
três conjuntos de placas de madeira sobrepostas intercaladamente
com rectângulos de vidro e cobertas por um espelho onde várias
esferas de borracha preta- quais órbitas e planetas desconhecidos-
se desmultiplicam num outro espelho colocado contra a parede e perpendicular
à obra. Se esta é a composição situada
a meio trajecto da exposição não será
apenas pela sua surpreendente força estética mas sobretudo
porque concretiza a reflexão das estratificações
e liga-nos com o respectivo período de 90 exposto nos compartimentos
seguintes. As três composições não resistem
a uma leitura em tríptico e é assim que percepcionamos
uma subtil deslocação temporal para a direita das
placas de madeira- tectónicas, arquivísticas, epistemológicas,
tábuas da Lei e da Bíblia-, desocultando assim os
estratos de vidro- sedimento humano por excelência- agora
transparentes e mais vulneráveis ao estilhaço e à
interpretação- elementos aqui não dissociáveis.
Como explica Leonor Nazaré, "Em muitas esculturas
R.S. faz do desalinhamento uma condição de progressão.
Em Infinitos a entropia é sugerida pelo aumento progressivo
do grau de desencontro das placas horizontais:"(5)
Na superfície permanecem os espelhos e os seus jogos de não-transparência.
É aqui que os infinitos se rebatem e confundem, é
aqui que o espectador é levado a entreter-se e a esquecer
os outros estratos, os do vidro transparente, pilares mais frágeis
e menos lúdicos de si mesmo. Leonor Nazaré esclarece
ainda que "o modo perceptivo tem que ser arqueológico
porque o modo de fabrico é geológico."
(1)
Nuno Faria, A(RS) lucidus ordo, no Catálogo "Rui Sanches.
Retrospectiva", CAMJAP, Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p.30.
(2)
"Et in Arcadia Ego" traduz-se normalmente por "Mesmo na Arcádia
eu, morte, existo".
(3)
In "Rui Sanches: a autonomia de uma obra", entrevista a Rui Sanches
por Cecília Martins, publicada na artlink.
(4)
In "Corpos Mutantes", entrevista a Rui Sanches por Alexandre Melo,
Expresso, 1993
(5)
Leonor Nazaré, "Páginas em Volume" in Catálogo da exposição, op.
cit., p.14.
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