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  Uma realidade acrescentada. Rui Sanches em retrospectiva

  [ Victor Flores ]

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Natureza Morta II, 1984

 

 

sem titulo 2001

 

 

pássaro, 1984

 

 

a marat, 1999

 

 

marat segundo david, 1984

Estrato I

O Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian apresenta a primeira retrospectiva da carreira do artista Rui Sanches através de um conjunto de 115 obras repartidas entre a escultura e o desenho, os dois géneros a que se tem dedicado nos últimos dezassete anos do seu percurso artístico e que com alguma regularidade tem exposto no país. Pautado pela consistência das linguagens e das técnicas praticadas, este percurso agora em retrospectiva já foi em vários artigos da crítica reconhecido como um meio percurso, fortemente promissor no que ainda tem por produzir. Na introdução ao seu texto do catálogo, Nuno Faria afiança "Momento de pausa, de balanço, uma retrospectiva de meio percurso é frequentemente, também, o lugar onde se exprime a energia vital de uma obra e em que se adivinha o seu caminho posterior, por vezes o mais estimulante."(1) Esta sensação em torno do que ainda nos reserva a obra de R.S. será em grande parte resultante de uma expectativa relativamente à continuidade e ao possível desenvolvimento da linguagem que R.S. iniciou no princípio dos anos 90 com a escultura por camadas. Sintomáticas da potencialidade e do ainda longe esgotamento desta linguagem das «estratificações» são as últimas obras de 2001 aqui inauguradas e que abrem esta exposição sinalizando a gramática em torno da qual pulsou a sua última década mas também prenunciando que o ponto de partida para a mostra bem que poderá coincidir com um ponto de continuidade publicamente aguardada para o seu trabalho.

Logo na sala de entrada Sem Título de 2001 anuncia dois volumes semi-esféricos construídos em sobreposições de placas de contraplacado criando um motivo ora orgânico ora geológico que é reforçado por reentrâncias cavernosas em forma de anfiteatro e de cratera de um corpo tanto informe quanto decisivamente mutante. Esta abertura para a retrospectiva lança a pedra de toque para uma itinerância arqueológica e crítica na obra de R.S. desde cedo debruçada nos processos de formação, de acumulação e de reinterpretação dos legados históricos.

Estruturada cronologicamente pelos períodos, temas e linguagens que delinearam o trabalho de R.S. desde a sua primeira exposição individual na Galeria Diferença ("Et in Arcadia Ego", 1984), esta retrospectiva comissariada por Leonor Nazaré acompanha-nos desde a sua fase das construções e montagens de inspiração construtivista (período apresentado: de 1984 a 1987), às esculturas inspiradas nos temas barrocos e neoclássicos de Poussin, David e Zurbarán (com obras de 1984 a 1991), às composições em desenho e escultura dos temas hagiográficos e mitológicos (com obras de 1990 e 1991) até às esculturas laminadas que marcaram toda a década de 90 até este ano.

Mas não será arriscada ou imprecisa a interpretação de todas estas fases à luz desta última linguagem das estratificações, porventura menos recente do que uma primeira leitura poderá prever. Isto porque o dispositivo da acumulação e da sobreposição é o do interface entre estratos, entre planos discursivos, temporais, espaciais e até perceptivos que desde os anos 80 situaram as suas obras num processo dialéctico e dialógico. A prática da montagem de pedaços de madeira com ripas e pequenas faixas de contraplacado que tanto caracteriza as construções de 1984 Pássaro, Sítio e a Natureza Morta II, são exemplares dessa sobreposição de planos, desse encaixe de superfícies diversas por níveis e tempos desfasados. Na mesma assemblage reúnem-se os múltiplos pontos de vista, contraídos e sobrepostos, numa atitude anti-ilusionista e sintética tão própria do cubismo e dos seus compósitos perceptivos. E ainda porque fixadas à parede criam também com ela um novo estrato. O plano bidimensional da parede perde a neutralidade e instala-se com a obra, tal como acontece em Tlim, Tlim de 1987, o counter-relief tão evocador de Tatlin e da sua "perseguição" às dobras de parede na exposição do seu lançamento em 1915

Com um trabalho paralelo a este período e que se estendeu até 1990, R.S. reincide na sua proposta de confronto ou de "toque" entre estratos convocando para o desenho e para as três dimensões imagens históricas da arte dos séculos XVII a XIX da autoria de Poussin, Zurbarán, Chardin e David. Daqui resultariam composições com caixas de madeira e contraplacado, tubos de ferro galvanizado, bronze pintado e panos para um estudo reinterpretativo do barroco e do neoclassicismo sob uma linguagem construtivista. Et in Arcadia Ego, segundo Poussin de 1984 e a escultura Marat, segundo David de 1987 acompanhada da série de desenhos de 1999 A Marat executados sobre fotografias serigrafadas, são as obras mais conhecidas desta intertextualidade e da reperspectivação formal das imagens na obra de R.S. Enquanto que "Et in Arcadia Ego" recupera a famosa inscrição do sarcófago(2) presente na enigmática pintura de Nicolas Poussin Les Bergers d’Arcadie de 1638, já Marat recria o ambiente dramático e emocional do assassinato de um dos chefes políticos da Revolução Francesa que Jacques-Louis David havia policialmente retratado em 1793 na célebre A Morte de Marat. Para além de sintetizarem o tema da morte e da agonia- também recorrente nas esculturas aos santos martirizados- assunto responsável pelo preenchimento de todas as agendas da actualidade política à noticiosa e à estética, estas obras funcionam sempre sob referência, sob reenvio às fontes históricas e aos estratos visuais da cultura ocidental.

"Sempre existiu em todas as artes uma componente de intertextualidade. Só no período romântico e modernista achámos que tínhamos que inventar tudo e abolir o que estava para trás. Felizmente, as pessoas hoje estão muito mais à vontade para lidar com os materiais e as fontes históricas que entenderem. As relações que faço com artistas anteriores não têm a ver com o aspecto de «citação» ou de «apropriação», no sentido que lhes era dado nos anos 80, mas com uma reinterpretação. Um pouco da mesma maneira que Picasso fez quadros a partir das Meninas de Velásquez… Sempre me interessou tentar entrar, de forma consciente, nessa tradição."(3)

É esta tradição da reinterpretação temática através dos instrumentos e dos modelos visuais das diferentes épocas e dos diferentes movimentos estéticos que constitui um dos mais pulsantes pólos de interesse da imagem e da sua análise. Ao ingressar nesta tradição, R.S. demarca-se da programada atitude de varrimento nihilista ou de "zerificação" de que partiram muitos modernistas obcecados em limpar o território visual dos estilos, das regras e, porque não também, das "reinterpretações". Por sua vez, Sanches reconhece nessas sedimentações a vitalidade simbólica dos planos Infinitos do passado que se vão empilhando e cuja descoberta e reconhecimento só é agenciada no futuro: "Julgo que se deve olhar para os trabalhos do passado, não como algo que teve a sua função numa determinada «evolução» estética, mas como coisas actuantes ainda hoje e que são recriadas pelas obras do presente. Ficaram parte do vocabulário. Olho para eles (...) como maneiras de fazer que transportam em si determinado sentido"(4). Em 1994 Sanches cria essa sua visão dos Infinitos: três conjuntos de placas de madeira sobrepostas intercaladamente com rectângulos de vidro e cobertas por um espelho onde várias esferas de borracha preta- quais órbitas e planetas desconhecidos- se desmultiplicam num outro espelho colocado contra a parede e perpendicular à obra. Se esta é a composição situada a meio trajecto da exposição não será apenas pela sua surpreendente força estética mas sobretudo porque concretiza a reflexão das estratificações e liga-nos com o respectivo período de 90 exposto nos compartimentos seguintes. As três composições não resistem a uma leitura em tríptico e é assim que percepcionamos uma subtil deslocação temporal para a direita das placas de madeira- tectónicas, arquivísticas, epistemológicas, tábuas da Lei e da Bíblia-, desocultando assim os estratos de vidro- sedimento humano por excelência- agora transparentes e mais vulneráveis ao estilhaço e à interpretação- elementos aqui não dissociáveis. Como explica Leonor Nazaré, "Em muitas esculturas R.S. faz do desalinhamento uma condição de progressão. Em Infinitos a entropia é sugerida pelo aumento progressivo do grau de desencontro das placas horizontais:"(5) Na superfície permanecem os espelhos e os seus jogos de não-transparência. É aqui que os infinitos se rebatem e confundem, é aqui que o espectador é levado a entreter-se e a esquecer os outros estratos, os do vidro transparente, pilares mais frágeis e menos lúdicos de si mesmo. Leonor Nazaré esclarece ainda que "o modo perceptivo tem que ser arqueológico porque o modo de fabrico é geológico."

(1) Nuno Faria, A(RS) lucidus ordo, no Catálogo "Rui Sanches. Retrospectiva", CAMJAP, Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p.30.

(2) "Et in Arcadia Ego" traduz-se normalmente por "Mesmo na Arcádia eu, morte, existo".

(3) In "Rui Sanches: a autonomia de uma obra", entrevista a Rui Sanches por Cecília Martins, publicada na artlink.

(4) In "Corpos Mutantes", entrevista a Rui Sanches por Alexandre Melo, Expresso, 1993

(5) Leonor Nazaré, "Páginas em Volume" in Catálogo da exposição, op. cit., p.14.