Estrato III
Camadas de tempo que pairam
sobre as coisas, poisam nelas, reconstroem-nas, ocultam-nas. Sedimentação
pelicular dos milénios geológicos dos corais, dos
desfiladeiros, dos magmas, dos meteoritos e das camadas rochosas
que se incrustam, que se crostificam, que se coisificam. Rui Sanches
deixou-se desde cedo seduzir pelos tratados arqueológicos
que representavam em mapas e diagramas a grafia das situações
diacrónicas reveladas pelas escavações no seu
corte transversal às civilizações- megalítica,
romana, medieval-, coexistindo à distância de diferentes
estratos de pó, de variáveis graus de descoberta.
Foi sobretudo através do desenho que numa primeira fase foi
sendo densificada a preocupação de R.S. pelo tempo
e pelas suas camadas, em grande parte como resultado de um interesse
arqueológico e estético pela acumulação
e estratificação laminar da cultura, dando origem
no princípio dos anos 80 a desenhos em grafite, barra de
óleo e carvão mapeadores de estruturas desconjuntadas,
aqui e ali geometrizadas em estudos reticulados que agarram formas
e suscitam a profundidade dos achados.
Grande parte destes seus desenhos
e do grosso da sua escultura são facilmente confrontáveis
com o registo do palimpsesto, com um plano interdiscursivo dos diferentes
momentos históricos, resultando com isto a possibilidade
de uma recuperação de imagens, formas e ideias cuja
interpretação, no entanto, nem sempre é a mais
fiel ou a mais precisa, mas nem por isso menos produtiva. Por ocasião
de várias entrevistas Sanches refere a pluralidade de discursos
e de leituras erradas ("por inocência, ironia ou cinismo")
que as diferentes épocas fazem das épocas anteriores.
Esta consciência do erro histórico e arqueológico,
dos múltiplos discursos de uma realidade acrescentada, apresenta-se-lhe
tanto como um sedimento imparável e indestrutível
como uma estratificação profícua e dinâmica
da qual a sua arte não se pode demarcar.
Tal consciência vem resultar
numa projecção desta linguagem na sua escultura da
década de 90 através dos laminados montados em estratos.
Germina aqui uma fase da sua carreira que se prolonga até
hoje. Trata-se de um processo de produção que se celebrizou
com duas exposições de 1991 e de 1992 (respectivamente,
na Galeria Cómicos/Luís Serpa e na Loja da Atalaia
com o título "Body Building") e que se inicia na
maior parte dos casos pela modelação em barro de um
protótipo feito "numa escala mínima, entre
as mãos". Segue-se um trabalho de produção
artesanal em que Sanches, partindo desse modelo, recorta placas
de aglomerado de madeira que de baixo para cima vai acumulando até
constituirem um volume dinâmico e à escala humana.
Uma sobreposição de placas "de forma a sugerirem
um processo de metamorfose geológica, topográfica,
física"(6)
e que simbolicamente reproduz os sinais da mão deixados no
trabalho prévio do barro. Essas formas geológicas
de desfiladeiros (Sem
Título (C) de 1999) ou biomórficas
de torsos (Sem
Título (L2) de 1992) ostentam assim o processo de
modelação manual do gesso e barro praticada desde
a escultura tradicional e combinam--na com os materiais industriais
e "inexpressivos" que já os minimalistas apreciavam.
Estes aglomerados e contraplacados
de madeira e a sua montagem em obras de relativa escala dão
às obras um aspecto provisório de si mesmas aparentando
poderem ser "ampliadas ou reconstruídas noutro material".
Esta aparência de maquetas de si mesmas valeu-lhes desde cedo
a associação com motivos de mobiliário. A série
Corpos(e)Móveis, inaugurada em 1994 na Galeria Comícos/Luís
Serpa, reforça essa tendência e confere um valor mais
biomórfico às estruturas redondas e torneadas organicamente
que em contraposição se suportam num mobiliário
geométrico de altos bancos e baixíssimas mesas brancas
que servem de plintos. Tal tendência vitalista vem por fim
confirmar-se em 1999 nas obras Reflexão
III e Eco
I onde também sobre uma mesa, uma cabeça,
ora direita ora invertida, reflecte-se num espelho e tem com ele
um ponto de ligação visual ou auditiva através
de uma ripa. O laminado mantém-se e no orgânico ele
torna-se ainda mais enigmático, lancinante e denunciador
da técnica, lembrando-nos aqui o processo contemporâneo
de materializar esculturas modeladas digitalmente através
da técnica do entitulado rapid prototyping que também
consiste em recortar superfícies de material em função
do modelo projectado para as sobrepor em camadas e com elas constituir
o objecto 3D.
Sanches não procura
dissimular os materiais e a sua história nem mesmo a forma
como estão trabalhados. Interessa-lhe que com esta linguagem
as obras beneficiem de um efeito de presença e de factualidade
comparável ao dispositivo minimalista mas sem que se elidam
para o público as potencialidades simbólicas das formas
ou a sua valência associativa: "grandes paisagens ou
pequenos objectos, pedras, árvores, corpos...", apesar
de se verificar que gradualmente as obras estratificadas vão
perdendo o título, deixando maiores margens de interpretação
ao espectador. O confronto que essa presença procura é
em grande parte permitido pela ausência dos plintos em muitas
esculturas a partir de 1999. A sua presença é a do
solo, o mesmo plano do espectador que para conhecer e apreender
as formas descontínuas e irruptivas terá inevitavelmente
que circumnavegar as obras e, por vezes, surpreender-se com os seus
dorsos. Sempre lhe interessaram os pontos de vista, as linhas de
visão que simulava com ripas nas suas primeiras obras já
eram disso sinal. Mas aqui o ponto de vista é o do corpo
que se movimenta- num processo que apela segundo Sanches à
consciência de si próprio- e que, bastante à
imagem do trabalho pós-minimalista de Robert Morris (artista
fortemente associável às preocupações
de Sanches e que Leonor Nazaré refere e cita repetidas vezes
no catálogo), impede a apreensão imediata da obra
através de um único ponto de vista, exigindo-lhe uma
"interactividade" que o remove da sua posição
retiniana e ilusionista. A Sanches agrada-lhe esta dimensão
temporal da escultura, esta entrada em campos narrativos e cenográficos
que associados à tal "presença concreta"
haviam garantido a uma parte do minimalismo o rótulo de "teatral"
por parte de um greenberguismo atávico e purista. Mas essa
dimensão teatral deixou há muito de ter a conotação
pejorativa desses tempos e permitiu a expansão da escultura,
dos seus ambientes e das suas interpelações na instalação.
Assim, o "insuflar dos fragmentos com nova vida" readquirirá
aqui um sentido ainda mais pleno e persistente.
(6)
"Um trabalho mais livre e mais obscuro", entrevista a Rui Sanches
por João Pinharanda, Público, 1992, publicada no catálogo
desta retropectiva.
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