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  Uma realidade acrescentada. Rui Sanches em retrospectiva

  [ Victor Flores ]

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mapa, 1983

 

 

sem título, 1986

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Estrato III

Camadas de tempo que pairam sobre as coisas, poisam nelas, reconstroem-nas, ocultam-nas. Sedimentação pelicular dos milénios geológicos dos corais, dos desfiladeiros, dos magmas, dos meteoritos e das camadas rochosas que se incrustam, que se crostificam, que se coisificam. Rui Sanches deixou-se desde cedo seduzir pelos tratados arqueológicos que representavam em mapas e diagramas a grafia das situações diacrónicas reveladas pelas escavações no seu corte transversal às civilizações- megalítica, romana, medieval-, coexistindo à distância de diferentes estratos de pó, de variáveis graus de descoberta. Foi sobretudo através do desenho que numa primeira fase foi sendo densificada a preocupação de R.S. pelo tempo e pelas suas camadas, em grande parte como resultado de um interesse arqueológico e estético pela acumulação e estratificação laminar da cultura, dando origem no princípio dos anos 80 a desenhos em grafite, barra de óleo e carvão mapeadores de estruturas desconjuntadas, aqui e ali geometrizadas em estudos reticulados que agarram formas e suscitam a profundidade dos achados.

Grande parte destes seus desenhos e do grosso da sua escultura são facilmente confrontáveis com o registo do palimpsesto, com um plano interdiscursivo dos diferentes momentos históricos, resultando com isto a possibilidade de uma recuperação de imagens, formas e ideias cuja interpretação, no entanto, nem sempre é a mais fiel ou a mais precisa, mas nem por isso menos produtiva. Por ocasião de várias entrevistas Sanches refere a pluralidade de discursos e de leituras erradas ("por inocência, ironia ou cinismo") que as diferentes épocas fazem das épocas anteriores. Esta consciência do erro histórico e arqueológico, dos múltiplos discursos de uma realidade acrescentada, apresenta-se-lhe tanto como um sedimento imparável e indestrutível como uma estratificação profícua e dinâmica da qual a sua arte não se pode demarcar.

Tal consciência vem resultar numa projecção desta linguagem na sua escultura da década de 90 através dos laminados montados em estratos. Germina aqui uma fase da sua carreira que se prolonga até hoje. Trata-se de um processo de produção que se celebrizou com duas exposições de 1991 e de 1992 (respectivamente, na Galeria Cómicos/Luís Serpa e na Loja da Atalaia com o título "Body Building") e que se inicia na maior parte dos casos pela modelação em barro de um protótipo feito "numa escala mínima, entre as mãos". Segue-se um trabalho de produção artesanal em que Sanches, partindo desse modelo, recorta placas de aglomerado de madeira que de baixo para cima vai acumulando até constituirem um volume dinâmico e à escala humana. Uma sobreposição de placas "de forma a sugerirem um processo de metamorfose geológica, topográfica, física"(6) e que simbolicamente reproduz os sinais da mão deixados no trabalho prévio do barro. Essas formas geológicas de desfiladeiros (Sem Título (C) de 1999) ou biomórficas de torsos (Sem Título (L2) de 1992) ostentam assim o processo de modelação manual do gesso e barro praticada desde a escultura tradicional e combinam--na com os materiais industriais e "inexpressivos" que já os minimalistas apreciavam.

Estes aglomerados e contraplacados de madeira e a sua montagem em obras de relativa escala dão às obras um aspecto provisório de si mesmas aparentando poderem ser "ampliadas ou reconstruídas noutro material". Esta aparência de maquetas de si mesmas valeu-lhes desde cedo a associação com motivos de mobiliário. A série Corpos(e)Móveis, inaugurada em 1994 na Galeria Comícos/Luís Serpa, reforça essa tendência e confere um valor mais biomórfico às estruturas redondas e torneadas organicamente que em contraposição se suportam num mobiliário geométrico de altos bancos e baixíssimas mesas brancas que servem de plintos. Tal tendência vitalista vem por fim confirmar-se em 1999 nas obras Reflexão III e Eco I onde também sobre uma mesa, uma cabeça, ora direita ora invertida, reflecte-se num espelho e tem com ele um ponto de ligação visual ou auditiva através de uma ripa. O laminado mantém-se e no orgânico ele torna-se ainda mais enigmático, lancinante e denunciador da técnica, lembrando-nos aqui o processo contemporâneo de materializar esculturas modeladas digitalmente através da técnica do entitulado rapid prototyping que também consiste em recortar superfícies de material em função do modelo projectado para as sobrepor em camadas e com elas constituir o objecto 3D.

Sanches não procura dissimular os materiais e a sua história nem mesmo a forma como estão trabalhados. Interessa-lhe que com esta linguagem as obras beneficiem de um efeito de presença e de factualidade comparável ao dispositivo minimalista mas sem que se elidam para o público as potencialidades simbólicas das formas ou a sua valência associativa: "grandes paisagens ou pequenos objectos, pedras, árvores, corpos...", apesar de se verificar que gradualmente as obras estratificadas vão perdendo o título, deixando maiores margens de interpretação ao espectador. O confronto que essa presença procura é em grande parte permitido pela ausência dos plintos em muitas esculturas a partir de 1999. A sua presença é a do solo, o mesmo plano do espectador que para conhecer e apreender as formas descontínuas e irruptivas terá inevitavelmente que circumnavegar as obras e, por vezes, surpreender-se com os seus dorsos. Sempre lhe interessaram os pontos de vista, as linhas de visão que simulava com ripas nas suas primeiras obras já eram disso sinal. Mas aqui o ponto de vista é o do corpo que se movimenta- num processo que apela segundo Sanches à consciência de si próprio- e que, bastante à imagem do trabalho pós-minimalista de Robert Morris (artista fortemente associável às preocupações de Sanches e que Leonor Nazaré refere e cita repetidas vezes no catálogo), impede a apreensão imediata da obra através de um único ponto de vista, exigindo-lhe uma "interactividade" que o remove da sua posição retiniana e ilusionista. A Sanches agrada-lhe esta dimensão temporal da escultura, esta entrada em campos narrativos e cenográficos que associados à tal "presença concreta" haviam garantido a uma parte do minimalismo o rótulo de "teatral" por parte de um greenberguismo atávico e purista. Mas essa dimensão teatral deixou há muito de ter a conotação pejorativa desses tempos e permitiu a expansão da escultura, dos seus ambientes e das suas interpelações na instalação. Assim, o "insuflar dos fragmentos com nova vida" readquirirá aqui um sentido ainda mais pleno e persistente.

(6) "Um trabalho mais livre e mais obscuro", entrevista a Rui Sanches por João Pinharanda, Público, 1992, publicada no catálogo desta retropectiva.