Interact 12

 

Textos

 

Pedro Eiras

 

 


Turismo
(in Estiletes, 2001)

(...)

Pintado entre mil quinhentos e – acho que é assim, esgueiro-me sobre os meus pés de veludo vermelho. Se eu fosse um instrumento dir-me-iam um órgão, se eu fosse dir-me-iam. Então eu estranho que não tenha vontade de gritar; e mesmo a Sacra Adrenalina goteja com irregularidades. A técnica do sfumato, que permitiu a revolução da perspectiva, foi desenvolvida. Então esse é o meu pensamento. E penso que as ideias são aragens do corredor. Esgueiro-me porque não existem linhas rectas. Quem passar nos espaços é sonhado pelas ideias dos espaços. A arquitectura precede a essência. A linguagem é o palácio do ser. Como uma aranha a quem arredondassem os ângulos da teia. Mas será a teia recta no início – a priori? Quem sou, quem posso ser, se construo a minha filosofia como um medidor de consequências, se copio num caderno toda a Ética de Espinosa, verificando implicações, e um pensamento súbito nasce em mim? Quem dizia: não é eu penso que se deve dizer, mas sim pensam-me? Não me lembro. Não é lembrado em mim por alguém. Não é em mim sabido quando alguém em mim leu. Non cogito, non sum. Quem dizia: todos os problemas filosóficos são apenas erros de linguagem? Quem nele dizia isso? Quem o diz em eu dizer? Sou um feto num balão placentário; rolo por um corredor cheio de luz.

Desço; no início era a curva, a linha ondulada, o caminho íngreme, a diferença. No início eu digo o plural, o bem e o mal. No início as bolhas de oxigénio fazem delirar como a palavra de Deus, explodindo na capital das células. Se eu fosse um toque dir-me-iam o angelus; mas o que é ser? e o que é ser dito? No início é nada ser dito; esgueiro-me; mas não peço qualquer socorro mesmo se sinto, como quando sentia, os milagres prontos a jorrarem da palma da mão. Eu sou – eu era o semeador de tudo isso, como um louco gritando o nome de Deus. E porque o orgulho lia por cima do meu ombro, eu fechava a mão com firmeza. Eu a mão tinha assinado o pacto com o diabo? Verweile doch, du bist so schoen... E nesta sala os Bórgias erravam de um lado para o outro. E nestas salas o tratado foi discutido. E nestas salas Trento. E nestas salas – flashlashlash! – o CONCÍLIO ECUMÉNICO. O feto rebola, aquém, além, verme no sol do tempo.

Descerei até chegar ao centro do mundo.

 

Epifania
(do livro inédito Campânulas)

Aqueles começam mal o dia, lá vem a polícia, as pessoas não se afastam a tempo, não percebo de que estão à espera para, não há feridos, parece, mas que ficou num mau estado ficou, mais um dia estragado,

quando há uma passadeira há sempre um carro que pára, outro que choca, atropelam, fogem, alguém tem um retrato robot da matrícula, a esperança de uma ambulância como suplemento de excitação, e eu estou a ficar atrasado, se o trânsito não se resolver, o homem das castanhas atravessa a rua, berram com ele, isto só a mim, esta música é insuportável, procuro outra frequência,

os putos que me roubaram a antena, como é que os pais deles, brrr, brrr, está?, sim, pode, não, como deixei indicado, depende, depende, se for pequena ou média empresa, então um enorme cartaz: preços de sonho para viagens de sonho, dois anjos sobre Havana, é esta, 104.6, vão começar as notícias, publicidade, diabo, os pássaros deixaram-me o vidro de trás numa lástima, não tenho tempo agora,

não, eles têm razão, deviam encontrar uma solução de compromisso com a tributação do património para, ó colega, então e ligar os piscazinhos, anda lá, tenho mais que fazer, prevêem-se aguaceiros, trouxe guarda-chuva?, sim, seca de canal, deixa ver, deixa ver, se você morresse hoje o que deixaria por fazer?, raio de pergunta, é de começar o dia mal disposto, dói-me aqui atrás, devo ter dormido mal, dado um jeito,

senhor doutor, é aqui atrás, entre o pescoço e o ombro, depois pelas costas, chega a meio e endireita, segue ao longo da coluna, uma dor em forma de campânula, cure-me senhor doutor, sim, de campânula, deve ter sido da almofada, já há dias que, é como lhe digo, devia pôr uma pomada, de campânula pois,

raio de padreco, se eu morresse hoje, é para isto que ligo o rádio?, pôr-se assim a, em vez de, em vez de quê? que frequência era? os mediadores imobiliários apresentaram uma moção de censura ao governo por, uma campânula que começa entre o pescoço e o ombro, está verde, estás à espera de quê?,

a despenalização do consumo de marijuana volta a estar na ordem do dia, outra publicidade dependurada entre dois postes: não queremos informar, queremos seduzir, o resto não se lê, uma capa de revista com uma mulher cortada pelas dobras da tira, não tenho tempo de ler, ver, viro à esquerda, o trânsito parado, antes tivesse ficado a dormir, ao menos deixei a pasta do consórcio pronta, sugeri a redução dos efectivos, brrr brrr, sim?, não, no trânsito, pois é, como? um cano que rebentou? não, o chão está seco, pois, abra a file das empreitadas, tenho a certeza, até logo, enterrar a almofada entre a cabeça e os pulmões, a voz esganada sabe bem, não tenho tempo agora,

a Procuradoria-Geral da República decidiu que, o carro da frente tem a porta mal fechada, faço-lhe sinal de luzes, levou a mal, vá em paz, de qualquer modo já fechou a porta, antes tivesse ficado em casa, aguaceiros, a escola fechou para obras, sempre seria verdade aquela história da desinfestação? nunca perceberei este ponto de exclamação dentro de um triângulo, como se diz? outros perigos, brrr brrr, sou, não, desse ano fiscal já entreguei, se quiser verifico, de qualquer modo as receitas declaradas, desculpe, está ali um polícia, ligo-lhe já outra vez, pode ser? agora é não olhar, passar como qualquer condutor de qualquer carro, ele olha para mim, se eu morresse hoje, ele vira-se para outro lado, alguém gritou, ele afasta-se no sentido oposto, eu passo, eu passo, a segunda está a desenvolver tão mal,

o guarda-chuva tem uma vara partida, se chover vou entrar com um guarda-chuva estragado, tenho de ver se arranjo uma desculpa,

tenho de deixar de estacionar o carro por baixo daquelas árvores, o prémio do seguro é indecente, olho para o céu, penso que talvez não chova, estamos nesta cisterna quase a romper, lembro-me duma cisterna na base de um mosteiro, há muitos anos, o útero que gotejava, esta linha de cola entre as pálpebras, a interferência na estação de rádio, pedem desculpa, retomam a emissão, o carro da frente está com os pneus em baixo, prefiro não avisar, sou um meteorito em silêncio, tenho de pensar em mudar de carro, presto muita atenção aos meus pensamentos, às pequenas fendas, a qualquer instante uma poeira pode entrar,

adormeço ao lado das betoneiras,

um enfeite de Natal suspenso sobre os carros como uma guilhotina, tão gasto já para parecer esquecido do Natal passado, tão fixo ainda para parecer festejo do Natal que vem, mais acima uma mulher a tirar café duma máquina, os seus gestos precisos como se ceifasse o vidro, parte da janela embaciada, talvez a máquina expire sobre o vidro e quando, não, é o meu próprio vidro que, eu, o vidro, passei sob a guilhotina, numa lentidão de penitência, a mulher bebe como se fosse uma taça de cicuta, o esticão nos nervos electrocuta-a, passam crianças de mãos dadas na passadeira, já não a vejo, não as vejo, não me vêem,

devíamos pedir um parecer jurídico formal, eu avisei, uma pessoa tem de pensar em tantas coisas, vigiar o trabalho dos outros, o descuido na sisa era perfeitamente evitável, toda a cidade suspensa nos ares como uma massa irregular, puro perigo, é possível que algures no meu cérebro durma alguém, desde há anos sinto-me menos acordado, senhor doutor, uma algodão ocupando o meu espaço, pensando por mim, que disparate, pensando por, o sono crescente, ao mesmo tempo dores nos músculos como se dormisse não sei que sono, a desvalorização do dólar continua, adivinhei,

há anos que tenho o mesmo sonho pelo menos uma vez por mês, quase atropelo as pessoas embora quase parado, se pudesse adormecia aqui, onde estão esses célebres aguaceiros? o céu de chapa, não cai uma gota, uma persiana avariada bate ao vento, os bordos das janelas contornados a ferrugem, brrr brrr, sim, preso no trânsito, pois é, um abrandamento do trânsito, um abrandamento da economia, um carro cercado de carros cercados, empresa sediada em lado nenhum, débito das palavras como receitas declaradas, e o imposto, sim, que devo pagar por mim próprio, para que tudo continue, desculpe, está verde, não ouço bem, tenho de avançar, aguaceiros para todo o país, até um novo engarrafamento, nova forma do velho engarrafamento, prisão sem princípio nem fim, metamorfoses, sim, então até já, um útero sob a terra,

o limpa-vidros está gasto, aperto o botão para ver um esguicho de água com detergente, depois o braço mecânico passa, três linhas sujas, limpo o carro por fora sem sair dele, antes que chova, suspenso, no meu carro estou seguro, no ar sobre mim prestes a desabar, nesta capa de metais, vasos desirmanados com flores mal regadas suspensos de varandas, desejamos seguros que transformem o futuro, não há tempo a perder, tenho de limpar a minha protecção de metais, um seguro mais que curativo, mais que preventivo, que interferisse no que não existe, seguro como linha de terra por onde falas e ecos subissem e descessem entre mim e os úteros negros,

brrr brrr, deixo tocar, experimento automaticamente as mudanças, o algodão transborda das orelhas, primeira, segunda, terceira, cada vez mais rápido, quarta, quinta, marcha atrás, uma viagem a todas as velocidades simultâneas, as velocidades em si mesmas sem a ideia de viagem, a ideia de uma cisterna já sem mosteiro abandonado, cruzada com a recordação de férias na neve iguais a todas as férias na neve de anos diferentes cruzadas, e pessoas que nunca estiveram ali, famílias impossíveis como uma oferta de emprego, a irrealidade dos meus pensamentos sem carne, se eu morresse hoje deixava certamente a carne por construir,

e arrefeceu o ar como a economia, poderia pensar numa camisola de lã, pensamento simples ao alcance da mão, se não fosse a sufocante consciência de gastar tempo aos meus pensamentos, atravessar estas paredes onde restos da cartazes ainda querem ditar-me lanhos de desejos, rótulos sobrepostos, finjo que me posso isolar no meu interior de mim no interior do carro, enquanto o sinal vermelho me sustém no eterno presente, num tempo que não tenho e não posso perder,

ter a cada instante na cabeça o jorro das ideias certas, economia da transacção, abertura ao imprevisível, ao lucrativo, tensão de uma enervada receptividade do mundo, nunca sabemos por que porta nos chegará a ideia de um novo uso para velhos instrumentos, novo desejo para as mesmas fomes, como comercializar essa angústia,

pois o pensamento deve estar em contacto físico com a forma do mundo, a forma mutante de novas fomes, para que os novos desejos encontrem logo o nosso produto, se identifiquem com o que oferecermos,

assim adivinhamos o desejo que ainda não existe e ao adivinhá-lo propiciamo-lo, a vida é o monopólio da antecipação do tempo, são 8.24, se pudesse mudar de faixa, se pudesse aumentar a zona de concessão, se pudesse fazer uso do direito de preferência,

mas um semáforo é um semáforo, uma tensão, o céu é uma pele esticada e percutida, estão previstos temporais, a cisterna oscila, as casas vão para mais longe, cartazes rasgados, grafitos ilegíveis, raras árvores em perigo de cair ainda molhadas, o ramo que devo ter sobre mim daqui a alguns segundos,

donde pendem três ou quatro folhas, sobre a minha cabeça, quase, minha cabeça sem tempo mas consciente da sua abertura às ideias, da passagem, mais uma leva de carros, outro sinal vermelho,

e de súbito, no silêncio, por uma força mais forte, microscópico impulso, uma folha do ramo mais alto da árvore sobre a rua, em frente ao meu carro,

solta-se,
lenta,
numa dobra do vento e da água
dilatada nas nervuras,
quase sem peso,
evanescente,
pelo ar frio impelida na altura,
ao ramo colada, às outras folhas,
o extremo centrífugo oscilando, rodando
sobre si incerta,
logo estacando em nada pleno,
exibindo a cissiparidade de estrela côncava,
rebordo de queimada clorofila,
brevemente crepitada e mais tensa
que o sol de todo o verão passado,
mais opaca que os ventos e orvalhos,
sem que
ninguém a estirasse, lhe desse a mão
folha
como outra que
caísse da árvore sem significado,
sem ser dita por linguagem
alguma, gesto algum
que lhe reproduzisse o peso, a
hesitação, pois nem
poderia dizer-se
dança,
dizer-se nada,
única
na suspensíssima
queda,
folha ou nome de nada com
seu só movimento
pura gravidade sem objecto
apaga-se no ar ao
descer o ar, onde
se espera um arranhão
no espaço deixando
o espaço intacto
contido naquele
todo silêncio
folha inclusa
no seu
espaço contido
ínfima e
óbvia no seu tamanho
infinito cercando
o que existe e
pesa
da periferia
para dentro de si
embrulho
do mundo
sem invólucro
deslocando
o absolutamente tudo
e o absoluta-
mente
outro de
si
à velocidade
inavaliável
da sua exposição aér
ea
ainda aquém
de todas as desloc
ações
em lugar
nenhum
que não contenha
abrigando ela
o seu pró
prio es
paço
e ser
uma
fo
lha

no chão entre tantas outras que os carros ao passarem vão amontoando na berma da rua indistinta com a terra e a água despedaçada em rede de nervuras ou feixe irregular com mais uma folha caída de mais uma árvore em mais um outono de chuva quando regressam os ruídos e os movimentos e a geometria dizível de um estado de coisas premente e actual e o semáforo passa a verde e eu arranco.

 

mesura, grafia

Comprei um diskman, pus as pilhas, o cravo bem temperado, escolhi uma fuga. É uma tardia modernidade, dilatada adolescência, pressiono esta tecla, play, ouço, atravessando a cidade. Chove, já é noite; as pessoas não saem às lojas, que recolhem os toldos. Em torno dos candeeiros a chuva é uma auréola, mas não é disto que queria falar. Avanço e os meus passos de quatro por quatro. Porque me dou conta: em torno dos piscas dos carros, das vozes que monologam, esta repetição: o quaternário e eu. Torno-me máquina, em cada desenlace da fuga os meus pés tocam no chão, pesam sobre a terra. Obedeço, sou uma máquina de música, inteiramente feliz.

Os meus pés sabem o ritmo da fuga como um relógio: alcançam o mundo numa confirmação absoluta, dança silente (ninguém me ouve). Confirmação: sim. Perdidos no ruído silente, os meus pés, ali, mesuram. O imenso ruído e o meu esquecimento – é preciso não pensar a palavra que se segue, não prever, estar aqui, não temer a chuva, infinito trilo contra o guarda-chuva, a ameaça das pequenas varetas a abrirem o ar. E os meus pés, baixo contínuo, gravíssima entrada do tema na vibração das vísceras. Há o que ouvir sem ouvidos, música que não embate contra os tímpanos, pura potência no som que empurra o sangue. Há o ruído das ruas e a música como um ditame. Eu faço o que não ouço, obedeço sem ordens.

Se entro noutra fuga, o compasso é ternário; então os passos mesuram a mesma cidade com outro assentimento. Não a mesma cidade. Outra: a cidade obedece. Ao fundo, um lixeiro abrigado sob um toldo esquece o tempo batendo com as duas pás no rebordo de um contentor que se equilibra. Bate e o som fere a chuva, sorri com agrura, é o tempo dele, bate para medir o espaço, para ordenar o mundo. Eu passo, não preciso de pôr o volume mais alto no diskman, somos abafados pela mesma chuva, que é também o ruído fantasma desta gravação muito antiga do cravo bem temperado, cada um na sua música, ouço: o mesmo ritmo.

Se atravessares a cidade ouvindo uma fuga em quaternário, os teus passos serão diferentes dos que terias ouvindo uma fuga em ternário. Porque medirias o teu espaço com outro palmo, pois a tua mão tem deveras o tamanho da música que ouvires, e ouvir não é sequer receber a música como recebo a chuva, mas suster este discorrer dos músculos em sintonia com o mundo que chama os teus pés. A terra ainda nos quer, nós somos os desejados – escrevia Benjamin. É para nós esta música.

Por isso não há cidade, mas passeios em que te arrebatam a chuva o sangue o compasso de um apelo inaudível. Aquele que passeia com o diskman recém-comprado, que leva consigo a gravação antiga – passa e não insiste demasiado em pressionar a terra. Está de passagem, apenas não o sabe porque saber seria ainda demasiado violento, palavras seguidas. Para ouvir, basta ser o corpo de música, esta coisa carregando um feixe de cordas estiradas, ferida do ar que atravessa o espaço e crava as pegadas efémeras de uma ordem, esta ordem, depois outra, como quem tacteia o mundo com uma mão a transformar-se em régua, depois lagarta, depois lençol de água.

Porque atravessar assim a cidade é o mesmo que não existir. Avanças, os teus pés obedecem a um adagio, transformas-te em lentidão. Olha como em ti os pés ficaram longe, eco que se adivinha, e no centro só a série de sons, a inflectir para um tom desconhecido a qualquer instante. O que vês e te cerca é uma sombra dessa oferta de sons. Pois não deves ter medo de retirar à tua visão o privilégio de ser real. Real é esta música, e tudo quanto vês depende dela. Era o que eu te dizia: os teus pés batendo contra a terra em quaternário, não a terra em si, que nunca saberás o que é.

Modernidade tardia, ouço bem, prisão e engano dos meus sentidos, esta música que se faz em mim porque tenho os ouvidos perto das fontes electrónicas, estereofonia, para se tecer como um só objecto perene nesse sítio onde me esqueço de ser eu. Diskman desaparecendo para que haja só esta máquina de música em que me tornei, relógio que me constitui me projecta para a gravidade. Não uma cidade que atravesso, mas a cidade que sou, não os passos na rua, mas a repetição rigorosa de um regresso marcando o espaço onde não havia.

Na verdade, a ausência da verdade, esta verdade apenas.

E se o cravista suspende a resolução do compasso, quando as múltiplas linhas se harmonizam em mim, o brevíssimo instante sem respiração transtorna-me como se eu tropeçasse num abismo. Mais perigoso do que os carros regressando desenfreados a casa, para o jantar. Onde a resolução se demora, o espaço distende-se infinitamente, e eu espero a confirmação. Como se a minha vida dependesse desse encontro marcado, e é verdade que depende. A corda vibra enfim e eu toco o chão real, quente, amparado.

Cercam-me vozes, um grupo de pessoas discute um acidente, insta. Circundo e por instantes há uma perturbação no que ouço, imagem turva distendida para todos os lados, imerge de súbito numa neblina. Quero ter consciência de mim outra vez. E outra vez volta a música, e o meu corpo à distância. Sobre as vozes exaltadas, uma ordem refaz-se com suas expirações de sentido. Olho, mas a vibração sobrepõe-se ao mundo, não como uma legenda, sim como o pintor que retoca a fotografia, e diz melhor as cores que ali dormiam. Pois a música não é anterior a esta imagem da cidade – antes a cidade nasce daqui, pelas aberturas que a música deixa no espaço. O mundo obedece, responde submisso às cordas.

Um homem bate com duas pás no tempo da sua vida repetida. Eu sou inteiramente feliz.