Interact 12
Os lugares da imagem poética: da alma terrestre à topofilia online
Jorge Leandro Rosa
1.
O lugar é o espaço onde se inscreve um habitar ambíguo, entre o vivido e o imaginário. É um espaço sempre internamente qualificado: espaço da dor ou da alegria, do devaneio ou da atenção, nunca espaço in-diferente enquanto categoria pura a priori. O lugar é apreendido pela subjectividade do sujeito, mas pode igualmente prolongar as tonalidades psíquicas que a consciência aí inscreve. Em qualquer dos casos, o lugar abre-se quando uma topofilia, mesmo que secreta, o circunscreve. Este duplo traço fenomenológico - abertura e circunscrição - poderia levar-nos a confundir o lugar com o corpo. Mas, ao contrário deste, o lugar deixa-se tomar pela estranheza do mundo, sendo certo que a sua origem se situa no imaginário da matéria, imago mundi que não é redutível à espacialidade metafórica dos saberes. Ao fazer-se estranho, o lugar transporta algo da intimidade e do calor da imagem interior para o mundo. Se a estranheza do corpo, porque coincidente com o gesto, abre a consciência à angústia da circunscrição, o lugar transforma uma parcela da matéria do mundo em concha, ou seja, em circunscrição que convida ao repouso.
Seria um erro tomar um tal «amor ao lugar» como mero encapsulamento do sujeito, como regressão ao recanto fetal da consciência: o lugar subjectivo pode assumir a forma de um trilho, esse «belo objecto dinâmico» 1 que o caminhante sente como uma familiaridade muscular que se transmite ao mundo. Ao lugar também podemos dar o nome de poema, e esse é o lugar mais surpreendente na medida em que evoca o mundo a partir da pertença secreta que a linguagem abre. Quantos se lembram de que o célebre e abusado verso de Hölderlin - E os poetas fundam o que permanece - pertence a um hino profusamente marcado por lugares em passagem: pelos caudais dos rios, pelos ventos de Nordeste, pela Índia para onde se parte? 2 Permanece a memória de um lugar quando a palavra nele abre uma viagem.
2.
Que dizer da situação do lugar na actualidade? Ele tornou-se uma espécie de tributo moral que prestamos ao mundo. Tributo a um mundo onde a partida e a chegada são cada vez mais a-tópicas porque inventámos, entretanto, o conceito de um outro mundo que nos poupa a oscilação íntima do ser em trânsito.
Neste número da Interact, todos os lugares evocados são ainda outras tantas possibilidades de uma inquietação do espaço, sabendo que estamos à beira de uma transformação técnica e ontológica da possibilidade do lugar. Consequentemente, a interrogação que nos move é radicalmente contemporânea: que fazer do património afectivo, poético, estético e psicótico que a frequentação íntima do espaço foi inventando nos mais subtis cruzamentos entre a solidão da consciência e a improbabilidade de uma habitação no mundo? A subtileza será o traço maior desta arte do lugar já que ela é incompatível com a fixação dos espaços enquanto mecanismo da estabilização do ser. A percepção contemporânea do espaço, ao dizer-se virtual, tem vindo a fragilizar a complexa maturação da consciência do lugar e constitui, desse modo, o complemento perfeito da destruição ecológica no plano da biodiversidade do mundo. Ora, e esta afigura-se como uma questão decisiva, nada nos assegura que a morfologia natural seja indispensável e insubstituível no processo da transformação do espaço indiferenciado em lugar onde o imaginário adquire uma fecundidade tópica. Que o espaço das redes possa povoar-se de cavidades ressoantes, onde a tecnicidade seja lentamente subvertida pela in-coerência afectiva e densa do devaneio, do desvio psíquico, tal parece-nos uma possibilidade maior que merece ser indagada. Contudo, todo o entendimento contemporâneo do espaço tem sido conduzido pela desconstrução do lugar, pelo imaterialismo digital que tende a socializar as memórias segundo o modelo frio e inabitado do arquivo.
Um número da Interact (revista online por excelência) dedicado à poética do lugar, dedicado a uma afirmação estética do amor ao lugar? Alérgica à sua fixação crítica? Não existirá aqui uma incompreensão do espaço virtual e da cibercultura que aí emerge? Não apela esta, pelo contrário, à expressão de um espaço sem lugar, ou seja, à criação de objectos cuja dimensão espacial assenta na fractalidade dos lugares, no horror ao seu enraizamento numa verticalidade ontológica e teológica? O discurso sobre o virtual, sustentado tecnologicamente pelas redes, está em vias de se tornar uma nova indiferença ao lugar que é, por si só, sinal da presença da metafísica nas estruturas técnicas que se instalam onde imperava o mundo. Esse é o sinal da incompreensão generalizada do lugar como sombra no mundo. O discurso aí dominante fala-nos da autopoiética nova do mundo, da sua constituição luminosa, onde o objecto já não depende de uma fonte heteroluminosa que o transcende e o faz visível, mas é, ele próprio, visibilidade da sua forma, luz da sua língua tautológica.
3.
Num mundo onde o amor do lugar se torna uma emoção transportada por imagens externas a este, nada há de mais sugestivo do que este encantamento constante do mundo, brilho que desconhece a sombra e o repouso que lhe está associado. Que um tal discurso apareça como inelutável e verosímil, que a ele corresponda o levantar da sombra do mundo, tal assemelha-se à possibilidade de uma poética futura. Mas, como escreve Pascal Quignard, «o futuro que está para vir não deve vir, mas surpreender. A sombra está submersa nele. "Onde estão as sombras, se eu já não existo?", interrogava-se o último rei do mundo antigo quando deixou o castelo de alabastro que dominava o Aisne. São sombras que é preciso opor às imagens» 3 .
Onde estão as imagens que acolhiam uma sombra na qual se abrigava a nossa reflexão poética? Onde estão os espaços da intimidade que se desdobram como espaços de uma solidão que escuta ou que lê? Mais do que nunca, necessitamos das poéticas da sombra e do lugar recolhido porque elas redefinem um espaço tomado pela imaginação. À luz destas questões, fazemos aqui uma pausa na trajectória desta publicação. Pausa que, longe de ser um desvio ao projecto da Interact, é talvez o ponto de partida para a busca de uma matéria mais viva e mais impura no âmago deste projecto: em vez de experimentarmos a invenção do lugar discursivo a partir da espacialidade possível, tentaremos dizer algo do arcaico que nos acompanha na viagem em direcção ao cibermundo (e a afirmação da viagem é aqui, talvez, o equívoco maior). Será o cibermundo, o espaço onde essas poéticas parecem encandeadas pela luz do dispositivo, capaz de vir a acolher tais sombras? Uma tal possibilidade dissolveria a estranha auto-suficiência que afecta, hoje, estas questões, reconduzindo-a às formas simples onde o imaginário mais profundo ainda encontra abrigo. Bachelard foi o autor que melhor compreendeu que o timbre de um eco provocado pelas cavidades da matéria é mais significativo do que a transformação dessa matéria num instrumento perfeito. A "Casa, da cave ao celeiro", "a casa e o universo"; "a gaveta, os cofres e os armários"; "o ninho"; "a concha", "os cantos"; "a miniatura", "a imensidade íntima": estes são os recantos pelos quais se distribui A Poética do Espaço de Bachelard. Temos nas mãos a primeira edição de 1957, ainda com a bela vinheta da P.U.F. na capa. Foi-nos oferecida, há muitos anos, por um homem culto que trouxera dois ou três exemplares deste inesperado e estranho livro adquiridos em Estrasburgo, onde exercia funções diplomáticas. Terá, talvez, escutado a emissão da O.R.T.F. que acolhera três anos antes um Bachelard já muito idoso, gravação que poderão escutar parcialmente sob a forma de ficheiro áudio neste número da Interact. Desde 1947 que Bachelard participava em emissões de rádio que constituíam momentos altos da velha T.S.F., como então se dizia, onde a palavra, o lógos, tinha ainda uma cidadania exemplar. Proferida por este ancião, professor atípico e tardio da Sorbonne, a palavra ecoa como voz do ser que não permite uma caracterização do espaço segundo as categorias simplistas do natural e do tecnológico: há espaços arquetípicos aí convocados, mas cujas poéticas são irradiantes e nómadas. Ou seja, as poéticas do espaço podem ser ditas quando a voz que as profere conserva algo de primitivo e denso, algo próprio de um corpo sonhado.
1 BACHELARD, Gaston (1957), La Poétique de l'Espace, Paris, PUF, p. 29.
2 HÖLDERLIN, Friedrich, «Andenken», Hinos Tardios, Lisboa, Assírio e Alvim, 2000, pp. 118-123.
3 QUIGNARD, Pascal (2002), As Sombras Errantes, Lisboa, Gótica, 2003.