Interact 12

 

O espaço literário
disruptivamente

 

José Augusto Mourão

 

 

“Dans l’oeuvre d’art l’être se risque.” (Blanchot, L’Espace littéraire, 320)

o centro de gravidade deste livro maior (1955): “Regard d’Orphée”
(Ulisses “recita” um oikos submetido ao nomos que reduz toda a coisa ao seu uso)

o Neutro é um substantivo sem substância, metamórfico, um ponto em permanente movimento que atravessa as singularidades
contar põe em jogo o neutro – não é essa é a descoberta fundamental de Kafka?

à sua volta executa um leitor ligeiro uma dança rápida: “une danse avec un partenaire invisible dans un espace séparé, une danse joyeuse, éperdue, avec le «tombeau».

alguém viu passar por aqui o Fedro e a sua ideia de começo e de fim?

Escrever é arriscar-se, para citar Apollinaire
porque várias dissociações ocorrem nesta experiência: o artista não pertence à verdade – libertemo-nos da noção de valor; deixemos para trás o desejo de ordem, de tradição, de norma, de senso comum, de humanismo; e mais ainda a noção de sujeito e de autor ou criador

viver é lançar os dados (Bataille)
o acaso (a turbulência) marcará a escrita e a leitura
não o enraizamento
a interrupção
_____________do mundo, da hipóstase,
da fusão

ao contrário da comunicação como construção de uma figura (de autor, de literatura, de comunicação, de Verdade)

___________respeite-se a estrutura grafemática da comunicação

será o anonimato o fruto da força de um desastre?

o outro
na sua infinita distância
a comunidade inconfessável

___________acaso
“Un Coup de Dés jamais n’abolira le hasard”

se o espaço é granular e descontínuo, como inscrever nele uma referência, um mundo?

___________a escrita avança, tateante e meio-cega, imprevista, pronta, tanto para a o rasurado como para a jubilatio do definitivo.

_____________a leitura segue um caminho já traçado, mas que pode antecipar, saltar: prolepses, analepses são modos de retoma ou de relançar o movimento incessante da escrita, modos de fuga ao traçado linear; ao começo e ao fim, criação dirigida”, dizia Sartre.

à voz sem pessoa (cor)responde a passibilidade
que escapa, por definição, ao estudo tético

o fazer que visa a obra e a exterioridade apresenta-se como atravessado por uma passividade intrínseca e constitutiva que se manifesta como o anonimato do imprevisto, do inconsciente, como uma forma congenital ao eu
_
o mundo falta-nos, e cada vez mais, apesar da mundialização à vista
o real cedeu a toda a espécie de substitutos: Leon Golub, autor do quadro Wounded Sphinx, diz que eles formam “um vasto espaço placebo”

___quem é mais pobre em mundo, agora que a fronteira entre o humano e o inumano tendem a anular-se?

pode a literatura dizer tudo? Que é “dizer tudo”? Blanchot escreve em Le Livre à venir: “L’expérience qu’est la littérature est une expérience totale». Mas escreve também outra coisa: on ne peut se représenter «tout» qu’en faisant intervenir la mort. Le tout implique la mort, et la mort du signe à la fois l’impossibilité, le caractère intenable du «tout dire» ou du «tout faire», et néamoins sa nécessité» (L’Espace littéraire).

Mallarmé, Kafka, Rilke

pensar com eles a morte, o não-sujeito, a inspiração, a comunicação e a leitura, o exílio
sem esquecer a solidão essencial do escritor e da literatura
sem esquecer a questão das relações da arte com a História
e a questão de Deus

a literatura e a arte já não celebram o divino
a arte não transporta mais a necessidade de absoluto

“Qui creuse le vers, échappe à l’être comme certitude, rencontre l’absence des dieux, vit dans l’intimité de cette absence, en devient responsable, en assume le risque, en supporte la faveur».

já não é a linguagem que fala, mas o esquecimento

o extravio do desejo de narrativa começa aqui
“Un récit? Non, pas de récit, plus jamais» (La Folie du jour: 37)

_________não marca a ciberescrita, a indecisão do pensamento, a instabilidade (textual)?

a força do poeta, o risco maior é morar onde falta deus
e onde a verdade falta

mas o poema não responde
como deus já não responde

o espaço do poema vive dessa dupla ausência:
«c’est pourquoi le poème est la pauvreté de la solitude.»