Interact 12

 

A Radicalidade do Espaço Artístico

 

Entrevista a Gabriela Vaz-Pinheiro por Jorge Leandro Rosa

 

Imagens

 

G. V.-P. é artista plástica. Defendeu, no Chelsea College of Art and Design, uma Tese de Doutoramento subordinada ao tema «art from place». Realizou diversas exposições em Portugal e na Grã-Bretanha. Tem também exercido actividade ensaística e crítica. É ainda curadora de diversos eventos artísticos.

 

1. A arte contemporânea é confrontada pela crise da sua inserção no espaço, crise inerente à deriva do estatuto do objecto estético e das instituições artísticas. Por outro lado, esta crise tem sido amplamente explorada pela criação artística contemporânea. Qual é a sua concepção do espaço artístico?

Muito se diz do espaço nos dias de hoje. De facto, esta categoria passou de uma existência inquestionavelmente abstracta e fixa, legado euclidiano, cartesiano e depois modernista, para assumir um carácter múltiplo, dinâmico e aberto a contaminação pela mão dos pensadores pós-modernistas. O espaço artístico, neste rescaldo, não podia deixar de ser afectado por essa radicalidade. Mas este fenómeno nem sequer é recente. Se pensarmos nos ensaios seminais de Brian O'Doherty de 1976, mais tarde publicados na colectânea "Inside the White Cube", percebemos que o espaço artístico já há muito, e de múltiplas formas, que questionava o conforto do espaço expositivo da galeria. O que aconteceu mais recentemente é que as disciplinas por excelência dedicadas ao espaço, como a geografia, a sociologia (o espaço enquanto social) etc., se infiltraram no pensar e no fazer artísticos revogando a concepção do espaço artístico uma vez mais.

O que me interessa particularmente são as possibilidades de movimentação da obra e dos sujeitos (criadores e fruidores) por diferentes tipos de espaço, porque nesta movimentação se activam (e re-activam) diversas formas de significado.
Deste modo a desmaterialização do objecto e espaço artísticos é apenas parcial, porque estes nas suas referências à(s) experiência(s) também aspiram à criação de oportunidades de contemplação. Isto é, espaço e objecto admitem sequências de materialidade e do seu próprio desaparecimento.

 

2. Tocam-se, no seu trabalho, a interrogação sobre o lugar da arte no mundo contemporâneo e a arte como lugar emergente?

Como se calhar se depreende pela resposta anterior, o lugar da arte, para mim, não é singular, os lugares da arte são activações da intencionalidade institucional ou individual. Quanto à arte como lugar emergente não sei bem se entendo a expressão. Não creio que a arte crie ou seja lugar, mas pode, dentro daquela combinação de contexto e conteúdo que se encontra tão em voga, activar a ideia de lugar. Mas acima de tudo, a arte pode reflectir sobre a emergência do lugar, tendo em conta que a par da desmaterialização do objecto artístico se pode falar da desmaterialização do espaço da obra, (e a Internet é muito mais do que prova disso mesmo).

 

3. Que espaços habita uma artista que se reparte pela criação, pela reflexão estética e pela curadoria? Há uma continuidade ou, pelo contrário, habita uma multiplicidade de mundos?

Há de facto uma multiplicidade, mas eu diria que com uma continuidade permanente. Interessa-me muito o termo fluidez, tanto do pensamento, como no fazer, como por certo no vivencial, e por isso me interessa perceber como se transferem as ideias entre resultados e formatos diversos. Na verdade, os conteúdos e as preocupações são sempre afins, o que muda são as estratégias de os veicular.

Convém referir que considero que a única verdadeira curadoria que fiz foi de pensamento, para os Desvios, uma experiência extraordinária na criação de um espaço temporário de reflexão.
Já tem havido quem fale de curadoria por relação com trabalho que por vezes realizo envolvendo participantes. Talvez em certos aspectos este género de projecto mime formas de fazer curadoria, mas também mima formas de fazer sociologia e outras áreas das ciências sociais, e não se pode considerar como tal. Penso que a minha própria intervenção no material a processar para formar o objecto ou objectos artísticos de algum modo trai o acto de curadoria. A interferência do/a curador/a altera os resultados por "acrochage", por simbiose, a minha intervenção em material fornecido por contribuições não só o transporta para um outro espaço, mas também o configura num outro formato apenas latente à priori.

Quanto ao território de reflexão, encontra-se presente em todas as outras formas. A escrita é também uma prática, e as práticas são também reflexões.

 

4. As instituições artísticas são ainda lugares do estético ou transformam-se em espaços permeáveis a outras discursividades? E serão estas permeáveis ao discurso estético?

As instituições artísticas (nas quais, porque partilham a mesma ideologia de espaço expositivo, incluo as galerias privadas) são ainda territórios de validação pelos quais, a par de, por exemplo, a rua, casas particulares, edifícios abandonados, também faço circular o meu trabalho. Há instituições que têm um programa de permeabilidade. Mas isso não é uma regra. Particularmente, no panorama nacional em que os financiamentos são tão estreitos (e de algum modo previsíveis), creio que as instituições tendem a evitar tanto incursões por outros territórios, como contaminações abertas dentro dos seus espaços. Acontece, mas muito pouco.
Para mim, a verdadeira questão na sua pergunta é: quais são hoje os lugares do estético. Se colocarmos a questão desta forma, percebe-se facilmente que as instituições não os únicos lugares do estético e que discursividades de qualquer área são, de facto, também permeáveis ao estético.

De novo isto nem sequer é um fenómeno recente, a politização da arte e a estetização do quotidiano têm já histórias de respeito. O que acontece é que a experiência de ser artista em Portugal ainda não é suficientemente política porque, por algum elo linguístico que ainda não clarificamos, o território do político para nós parece cingir-se mais às narrativas do politico-partidário e menos à discursividade do politico-social.

No entanto, isto não é uma ideia generalizante, há excepções, obviamente. É inegável que há uma tradição de silêncio em relação às questões políticas e sociais na produção artística nacional, provavelmente também como consequência directa de formas de trabalhar das instituições. A título de exemplo, basta dizer que a selecção para o actual Turner Prize seria impensável como produto nacional.

Creio que para artistas que também trabalharam no estrangeiro esta realidade se torna mais evidente.

Em termos mais gerais, gostaria de dizer que, embora a disseminação do estético seja um fenómeno corrente, é também um fenómeno arriscado. Eu acho que Baudrillard se enganou quando disse que a outra guerra do Golfo não existiu realmente, porque ele pareceu esquecer-se que para muitas pessoas as bombas e os embargos estragaram irremediavelmente a vida. O que existe hoje é uma dimensão virtual (e portanto também estética) dos fenómenos (e não só pela mão dos media) que passou do contemplativo ao operativo, e isto é algo sobre que precisamos de reflectir constantemente, sob risco de invalidarmos completamente o sentido de autonomia que ainda nos resta enquanto seres pensantes no mundo de hoje.

 

5. Num mundo onde o local parece ser a dimensão mais frágil e mais afectada pelos processos a-topológicos da «modernização», regressa o interesse pelo seu valor estético. Um recente colóquio sobre a arte local realizado em Torres Vedras confirma esse interesse. Diga-nos algumas palavras sobre esse evento e o seu significado.

Permita-me antes de mais uma pequena correcção, não foi sobre arte local, foi sobre a importância do local na arte e pensamento contemporâneos. Esta diferença é importante, precisamente porque a contaminação se dá no sentido das problemáticas que dizem respeito a uma certa minúcia do quotidiano expressa também em termos geográficos, terem sido apropriadas por artistas muitas vezes trabalhando nos ditos "centros" geográficos. O problema é que, tal como o evento provou, o "local", tanto político como social, nem sempre se deixa contaminar pelo artístico e portanto a noção de arte local, se existe, continua sendo algo alienado do estético, pelo menos dentro da problemática que a contexto-especificidade debate.

Eu explico melhor, não tivemos por exemplo um único político ou pelo menos implementador de políticas institucionais presente na audiência. Isto é mais grave pelo facto de no painel de oradores se encontrarem especialistas de larga experiência na implementação de projectos de arte no espaço público dentro de programas de reabilitação urbana, social e educacional. E tanto mais grave se pensarmos que houve diligências insistentes no sentido de os atrair.
Os Desvios aconteceram porque era preciso dar um espaço em Portugal a esta problemática, e porque acho que, apesar do silêncio que acima referi, há inúmeros artistas e instituições preocupadas com estas questões.

Estamos neste momento a fazer o balanço do evento e a preparar o imenso material sonoro, escrito e videográfico para publicação, mas foi muito claro para todos nós, incluindo os oradores cuja experiência em alguns casos é extraordinária, que o que aconteceu ao longo daqueles dois dias foi de facto de elevada qualidade.
As apresentações versaram desde a educação juvenil à filosofia, passando pelo urbanismo, por práticas artísticas, editoriais, e de investigação, todas partilhando a ideia da importância do local enquanto activador de experiências a múltiplos níveis.
As preocupações não incidiram sobre a traiçoeira dicotomia local-global. Na verdade, partilhou-se a ideia de que não é por uma equação de opostos que se deverá abordar estas questões posto que as dicotomias são dualidades infrutíferas (ou antes, produzem por vezes muito maus frutos).

 

6. Que possibilidades se abrem a uma «curadoria da arte do local»?

A ideia do local traz em si um potencial elevado porque na verdade as questões que se levantam se prendem com aspectos éticos e de sustentabilidade que é urgente abordar. A ecologia não diz respeito apenas às reservas naturais ou a problemas de produção industrial. Mas porque é extremamente perigoso colocar as culturas como dados essencialistas de identidade, é importante compreender e ajustar as nossas reflexões às idiossincrasias do local tendo em conta as contaminações múltiplas que são, se se pode perdoar o jogo vocabular, a natureza mesma da cultura. É nesta perspectiva que a chamada curadoria do local pode trazer à luz assuntos habitualmente menos visíveis.

Daqui se depreende que o que me interessa no local não é de todo o pituresco, mas a ambiguidade latente de processos que não se podem isolar de um sentido mais lato da humanidade, mas que o expressam de forma mais minuciosa. Penso que para muitos artistas e pensadores, se trata de abordar questões de escala. Não podemos ignorar os grandes feitos da história, mas podemos, e se calhar devemos, também tentar perceber a história nas suas diferentes escalas.

A palavra (in)visibilidade interessa-me sobremaneira porque para além de questionar o território habitual das artes plásticas, hegemonicamente visuais por tradição, esteticiza a nossa atitude perante aspectos menos evidentes como matéria plástica. E isto, de novo, tem já uma longa presença na História da Arte recente (e até menos recente).

O que o mundo de hoje tem de diferente é talvez a escala comunicativa, o que se costuma chamar de simultaneidade (muitos de nós viram em directo as Twin Towers cair) e este fenómeno traz dificuldades de processamento únicas até ao presente. Não estamos ainda equipados para gerir o fenómeno histórico sem distância temporal. Aqui o local, com os devidos parêntises identitários, torna-se inevitavelmente global.

Mas a arte, devo dizer, nunca é completamente local, como também jamais é universal. Na tradição estética institucionalizada, esta consciência é incómoda mas importante. Repito que acho que temos a responsabilidade de abordar os fenómenos abrangentes, mas também a de perceber os mais localizados à luz das suas contaminações. Não proponho de todo uma dialéctica, proponho a consciência de uma fluidez.

 

7. O conhecido texto de Brian O’Doherty, que já aqui referiu, faz corresponder à recusa do cubo branco, imagem metonímica do espaço museológico moderno, a possibilidade de um trabalho de contaminação deste, trabalho que permitirá à arte (que, apesar de tudo, a ele continua ligada) não se entregar a uma crença metafísica na vitalidade do mundo, o que poderia tornar a intervenção artística place-specific refém dos sistemas de crença constitutivos do mundo. Pensa que estaremos ainda, efectivamente, diante de uma interdependência entre a arte (e também, especificamente, a arte do local) e o território expositivo da galeria?

Como disse atrás o que realmente me interessa nos processos de questionamento do espaço expositivo no sentido tradicional é a questão da fluidez. Interessa-me testar o movimento do objecto artístico e do espectador através de diferentes espaços e contextos. Existe um esquema do James Clifford (no seu “The Predicament of Culture”) em que ele traça alguns movimentos possíveis no que ele chama de "The Art-Culture System". Simplificando, poderiamos dizer que, por exemplo, uma peça de madeira é produzida em África para uso quotidiano; recolhida, suponhamos, por um arqueólogo passa a pertencer a um qualquer museu; que dela faz mais tarde cópias em miniatura para, por exemplo, porta-chaves; que devolvem uma forma do objecto inicial a uma utilidade quotidiana. Entre o quotidiano, a obra de arte, o objecto de consumo... é possível que possamos falar de interdependência. Acho que é importante fazer circular o objecto artistico entre diferentes tipos de espaços porque assim se torna possível testar diversas formas do seu significado. Se enquanto parte do quotidiano ele é arte, poderá ser questionável, mas se o mesmo objecto, ou uma forma de si derivante, é transportado para dentro de uma galeria e acciona os mecanismos de ratificação da obra de arte, então ele passa a partilhar do sistema que faz a obra ser obra de arte. Atenção que não falo mais aqui do que falou já Duchamp. Interessa-me no entanto também testar este fenómeno noutras direcções, isto é in loco. Que o ready-made se torna obra de arte por via da deslocação a que é sujeito não parece já surpreendente, que ele possa instigar um outro significado num local não institucional e de que forma, então começa a ser interessante.
Quanto às questões metafísicas, não creio que o perigo de sequestro que refere seja real. A arte continua sendo desconcertantemente inútil e de ínfima influência na progressão do mundo. Perpetra algumas intrusões, cria alguns desconfortos, suscita por vezes alguma paixão, consegue até outras vezes contribuir para uma pontual melhoria no mundo, mas não chega a interessar aos sistemas de crença porque é excessivamente fugidia.

 

8. Num texto seu, a Gabriela coloca a questão: “como podemos distinguir entre a obra e o meio circundante se aquela está tão embrenhada neste?” («Da especificidade à transferabilidade», p. 23). Diz, então, que o objecto é semanticamente distinto do meio, estando a este ligado “em matéria como em resíduo”. Essa irrupção da obra no quotidiano parece dar-se apenas se uma percepção for aí introduzida pelo observador. Confirma a importância deste aspecto no seu próprio trabalho artístico (como em “Oppo-Site”)? É ele a busca desse elemento perceptivo capaz de estabelecer uma ligação entre sentido e matéria do trabalho place-specific?

Claro que sem testemunha a activação de significado não chega a ter lugar. É interessante no entanto verificar que na obra que temos aqui chamado de place-specific, com o carácter de fluidez que tenho vindo a referir, os espectadores raramente percepcionam a obra na sua totalidade. Algumas pessoas assistem a momentos de exterior, outras nunca chegam a ver mais do que o que está na galeria. Assim, quem sabe, se multiplicam ainda mais as variações de significado, embora se fragmente tambem o objecto artístico em causa. No caso de Oppo-Site o espectador em certos momentos é mais do que simples testemunha, ao olhar para os espelhos colocados na rua, o espectador de facto, e provavelmente sem chegar completamente a saber, activa o principal sentido da peça que é testar de várias formas a questão da alteridade geográfica. Como disse Lacan a propósito de outras problemáticas, quando em criança nos vemos ao espelho, é um outro que vemos. Provavelmente algumas pessoas terão reparado nas inscrições nos espelhos, provavelmente tratava-se de locais em que raramente pensam, se assim foi, alguma coisa foi activada. Mas se apenas se viram de soslaio, ou nem repararam de todo que o espelhinho estava ali mesmo à altura dos seus olhos, então foi apenas o quotidiano que se sobrepôs à obra, nada de grave. Em relação ao mapa que também faz parte do conjunto exposto em galeria dessa obra, ele provocou de facto reacções intensas de estranheza pela deslocação de leitura que instiga ao questionar o significado dos nomes dos lugares em todo o seu estigma.

É curiosa a utilização da palavra perceptivo porque da forma como a tomo ela inclui um sentido multisensorial que tem a ver com o experiencial mais do que com o simplesmente visual, e é neste campo que a arte que se inflitra no quotidiano claramente se distancia da arte direccionada à contemplação que apreciamos nos museus. Ambos os territórios se completam, ambos servem propósitos estéticos, ambos obviamente precisam dos artistas, dos espectadores e do mundo que coabitamos.

Terminaria referindo que a arte produzida em moldes contextuais não se decalca ao local. É preciso não esquecer que aquilo a que chamamos realidade é um composto de mil ficções e incontáveis projecções que constroem o que somos, o que fazemos e o que pensamos. Interessa-me também dar lugar à ideia da multiplicidade do ser, enquanto produtor e enquanto fruidor de significados.