Interact 12

 

Tradução de «Dormeurs éveillés»

 

Gaston Bachelard

 


Extractos da conferência radiofónica de Gaston Bachelard difundida pela R.T.F. em 19 de Janeiro de 1954

 

A tradição filosófica ocupa-se, habitualmente, do homem que pensa. Como se o homem pudesse encontrar toda a sua substância, todo o seu ser, no pensamento. A função central da Filosofia parece ser, então, de algum modo, a de revisitar o pensamento. A sua função principal estaria, então, toda investida na focalização luminosa do cume do ser que constitui o pensamento.

A Filosofia esquece frequentemente que, antes do pensamento, há o devaneio; que, antes das ideias claras e estáveis, existem imagens que possuem um brilho próprio e que pensam.

Tomado na sua integralidade, o homem é um ser que, não só é capaz de pensar, mas que, antes do mais, imagina. Um ser que, em vigília, é assaltado por um mundo de imagens precisas e que, quando adormecido, sonha dentro de uma penumbra onde se movem formas inacabadas, formas que se deslocam ao longe, formas que se deformam incessantemente. A fim de termos um conceito abrangente de ser humano, será necessário reunirmos o ser nocturno ao ser diurno; será preciso encontrarmos as dinâmicas que vão de um pólo ao outro, entre devaneio e pensamento. Se nos colocarmos, desse modo, dentro de uma certa latitude no nosso exame, dar-nos-emos rapidamente conta de que a noite e o dia presentes na alma humana não são elementos lógicos que se oponham absolutamente. Todos conhecemos esses fragmentos da história pessoal que, vividos ao longo do dia, se reconstituem durante a noite. Sabemos também que, nas horas mais claras da vida diurna, basta um pouco de solidão para que voltemos a cair no devaneio que reencontra os sonhos da noite.

Sim. Todos conhecemos essa zona mediana onde os sonhos alimentam os nossos pensamentos. Onde os nossos pensamentos clarificam os nossos sonhos. Em nós, os aspectos diurno e nocturno unem-se, confundem-se, animam-se reciprocamente. Nas horas de grande solidão, quando o devaneio nos devolve o nosso ser total, tornamo-nos adormecidos vigilantes, sonhadores lúcidos. Vivemos o instante como se a dimensão humana tivesse em nós crescido. Explicamos a nós próprios o nosso mistério: as palavras da nossa linguagem adquirem, subitamente, as ressonâncias do nosso puro passado longínquo. Elas são claras e significativas, mas obedecem à sintaxe dos sonhos.

Queremos demonstrar que o adormecido vigilante, o sonhador lúcido, concretiza uma síntese entre a reflexão e a imaginação. Assim, o devaneio não constitui um abandono: ele é activo, ele prepara forças e pensamentos. A fim de penetrarmos nestas perspectivas filosóficas, basta atribuirmos à imaginação humana todo o seu valor, um valor de princípio. Demasiadas vezes, a imaginação era considerada como uma faculdade secundária, uma ocasião para o desregramento, um meio de evasão. Dela não temos um conhecimento nítido do que efectivamente é: a principal função dinâmica do psiquismo humano! Ao homem normal gostamos de atribuir, em primeiro plano, a função do real. Mas como produziria um tal homem um trabalho se não exercesse, se não sentisse em si próprio, aquilo a que podemos chamar a função de possibilidade?

Para agir, é preciso, antes do mais, imaginar. Tem sentido falarmos de uma função do irreal, função através da qual o homem meditativo, o adormecido vigilante, parte em busca da possibilidade de um trabalho novo. Desperta nele uma consciência de poeta. Se o adormecido vigilante pudesse confiar-nos o dinamismo do seu sonho; se ele pudesse induzir em nós a actividade do seu sonho, teríamos aí a definição que Paul Éluard dava do poeta: “O poeta é aquele que inspira, aquele que nos dá a energia exacta da imaginação. Ele ajuda-nos a saciar essa necessidade de poesia que está no coração do homem.” Ora, haverá realmente poesia se não houver uma adesão de corpo e alma a uma imagem amada? Uma adesão a imagens privilegiadas? Adesão a imagens que fazem penetrar em nós uma vida, ao mesmo tempo, profunda e nova? A imagens que, na sua magnífica simplicidade, renovam as profundezas do nosso ser?

É nesse exacto sentido que o adormecido vigilante tem a experiência da imagem instantânea: a experiência de uma imagem que nos arranca ao devaneio passivo! Tais imagens despertam-nos para uma vida nova, fazem-nos sair da noite do sonho. Elas são semelhantes ao grão de ópio puramente psíquico através do qual o poeta nos faz penetrar num mundo desconhecido, transmitindo-nos o impulso da inspiração. Essa é, em todo o caso, a lição dos adormecidos vigilantes quando efectuam a síntese entre valores nocturnos e valores diurnos.

Novalis, um adormecido vigilante genial, escreveu: “Virá o dia em que o homem estará, incessante e simultaneamente, adormecido e em vigília”. Parece que esta profecia foi cumprida, de um modo magnífico e doloroso, por Stéphane Mallarmé: num diálogo recordado por Audi, Mallarmé confiou a este:

“Não durmo nunca. Estou desperto 24 horas por dia”.

“É terrível!”, respondeu-lhe Audi.

“Menos do que julga”, respondeu Mallarmé. “Habituamo-nos. Pensamos com doçura, lentamente. Mas com a clareza do cristal. Creio que os homens poderiam viver sem o sono. Na verdade, o sono não é uma necessidade. É uma graça. (7’ 51’’)

(…)

(11’ 50’’) Bastará um exemplo para mostrarmos de que modo uma imagem privilegiada reúne os valores do mundo da noite e do mundo da luz: que criatividade psicológica permitiu que a nossa língua, a língua francesa, como aliás muitas outras, pudesse encontrar a fórmula “As águas adormecidas”? Como dorme a água? Porquê esta imagem? Qual a razão para que ela nos pareça tão abrangente, quando a analisamos? Tão verdadeira? Tão humana? Não teria bastado falar das águas calmas, das águas tranquilas? Não teria um espírito racional e positivo preferido a simples menção da água imóvel? Não! A verdadeira imagem poética não descreve. Ela evoca. Convoca memórias. Causa os sonhos. Abre-se a um mundo infinito. (13’ 05’’).

(…)

(16’ 41’’) É certo que não comunicamos tão facilmente com o génio das ideias como com o génio das imagens. Se qualquer um de nós pode apreender as ressonâncias de uma palavra nova proferida por um poeta, mais dificilmente escutamos o poder de uma ideia nova. Não percorremos suficientemente os caminhos que nos levariam à solidão do ser que pensa. Demasiadas vezes, pensar significa recordarmo-nos de pensamentos antigos. Trata-se, no homem culto, com excessiva frequência, de um ruminar da sua própria cultura.

No domínio da reflexão, o adormecido vigilante parece poder dar-nos uma lição sobre a origem do espírito, tal como nos dava, no domínio da imaginação, lições sobre a origem da linguagem. Com efeito, o adormecido vigilante é um técnico do despertar, do despertar máximo, do despertar total. A partir do repouso mais denso do espírito, o adormecido vigilante faz surgir a mais viva actividade do espírito. A noite efémera permite ao espírito ocupar-se de si mesmo. Permite-lhe estar, todo ele, atento a uma ideia do valor, vivendo, na verdade, para o valor da ideia. Que grande alegria sentimos no nosso ser quando recebemos uma ideia nova! Somos, então, por mais modestos que sejamos como filósofo, arrancados a um sono dogmático. Se nos examinarmos um pouco de mais perto, sentimos que uma ideia nova, mesmo que seja um fragmento, transforma o nosso espírito.

É, talvez, esta transformação do espírito que deve ser considerada como a marca principal do adormecido vigilante. Se este abandonar o seu estado maravilhoso e regressar, idêntico ao que era, à vida subalterna; se ele retoma as cadeias do pensamento quotidiano, após ter acedido a um mundo de ideias ainda impensadas, a um mundo de imagens ainda não vividas, então ele será apenas um fantasma que passa, será apenas um estrangeiro incapaz de descrever as maravilhas dos países que visitou. Precisamente, se o adormecido vigilante deve o seu isolamento ao ópio, ao haxixe, às substâncias que dão um carácter anatómico às funções espirituais, então, este adormecido drogado não consegue transmitir-nos as verdadeiras lições sobre a síntese capaz de associar, no homem, a potência do ser nocturno e os poderes do ser diurno. Ele está isolado, mas não tem uma verdadeira consciência da solidão. Porque haveria ele de encontrar o fundo do ser humano? A dinâmica do seu espírito abandona o humano: a droga, a esquizofrenia. É necessário que aquilo que nos dá uma espécie de “função do ser” capaz de nos conduzir ao reino de uma existência desconhecida no futuro do génio humano seja, não a droga, mas uma ideia, uma imagem, o impulso da inteligência ou do imaginário.

O adormecido vigilante convida-nos a abandonarmos o torpor, a fim de acedermos ao repouso activo, um repouso que é consciência de uma ordem própria do espírito, uma ordem que poderá despertar-nos, uma nova ordem. Nada pode nascer no torpor. Este é uma acção no sentido negativo, no sentido de uma regressão do ser. Ora, o adormecido vigilante aponta-nos o eixo simetricamente inverso a este. Percebemos que está em busca dos valores da lucidez. Vive a experiência integral da lucidez. Antes do mais, decanta nele próprio a matéria nocturna. Ele é submetido a uma espécie de psicanálise material a fim de, ao despertar, encontrar o que associa o sono corpóreo à clareza e à lucidez. Ele dorme a fim de ver claramente, a fim de nos abrir às ideias claras, às imagens luminosas, ao verbo mais acesso! Se ele fosse senhor absoluto deste sono direccionado, deste hipnotismo surpreendente, indicar-nos-ia os minutos intensos onde o destino do nosso ser é acentuado, onde a vontade de ser triunfa sobre o esvoaçar do ser. Quanto mais próximo estiver da síntese entre o nocturno e o diurno, mais alerta será a análise rítmica dos valores nocturnos e diurnos e mais fulgurantes e numerosas serão as nossas experiências do despertar.

É essa a grande lição do adormecido vigilante: ele entra numa noite efémera a fim de apreender a dinâmica do despertar. A fim de apreender a dinamização do ser que nos afecta na própria consciência de estar desperto, de estar bem desperto! Aí, o dia surge como o transcender da noite. Tudo o que é relativo ao adormecimento, tudo o que diz respeito ao torpor do ser quando este perde as forças ao perder a luz, é superado pela experiência do adormecido vigilante. O nosso ser não quer tomar conhecimento da sua morte quotidiana. Já não sei qual foi o psicólogo que caiu na loucura devido às numerosas e, aliás, vãs tentativas de surpreender a sua entrada no sono. Nunca chegamos ao termo da viagem que, todas as noites, nos mergulha na noite psíquica. Tudo aquilo que, em nós, diz respeito a uma diminuição do ser, a uma perda de ser, não pode ser descrito. Descrever é, desde logo, viver, é comunicar a própria vida. O adormecido vigilante só nos deve confidências relativas ao seu despertar. Só nos pode transmitir a sã orientação para a “diurnidade” do ser. Ele medita, pensa, sonha, orientado pelo alvor do humano.

(Excertos da Anthologie sonore de la pensée française, Frémeaux et associés, INA)