Transformação da sociedade : do veloz ao
instantâneo
A
tecnologia mudou a noção clássica do ser humano.
«A
mudança histórica das tecnologias mecânicas para as tecnologias da informação
ajuda a subverter as noções de soberania e auto-suficiência que serviram de
âncora ideológica à identidade individual desde que os filósofos gregos
elaboraram o conceito, há mais de dois milénios. Em resumo, a tecnologia está
a ajudar a desfazer a visão do mundo por ela promovida no passado.» (Barglow,
1994, citado por Castells, 2000, p. 40)
Uma
característica inquestionável do mundo moderno é a ‘velocidade’
conquistada pelo desenvolvimento da técnica e tudo o que isso implicou na
transformação da sociedade. Mas, na era pós-industrial sofremos uma aceleração
vertiginosa que tem vindo a alterar radicalmente a forma como vivemos e pensamos
sobre nós próprios. Esta revolução é referente às tecnologias da informação,
processamento e comunicação, pela capacidade que os meios electrónicos têm
de armazenamento e velocidade na transmissão de dados.
A
interferência, cada vez maior, das tecnologias na estrutura social e na
economia encaminha os paradígmas da sociedade moderna ocidental para o fim dos
seus dias. Verifica-se que as estruturas tradicionais (como a família, instituições
religiosas, estruturas empresariais, a escola, etc.), que implicaram profundas
construções de valores e de relações humanas numa sociedade moderna, já não
servem como ponto de referência. «Existencialmente, tudo e todos estamos a ser
arrebatados pelo torvelinho da técnica, que nos desreferencia de todas as
nossas antigas e confortáveis certezas.» 1 A situação actual faz
de nós seres em crise.
A
necessidade de definir e redefinir novas posições sociais para a família,
sexualidade, personalidade, etc., e as possibilidades actuais oferecidas pelas
novas tecnologias de informação, assim como a nova relação com o mundo em
termos de tempo/espaço, são questões essenciais que fazem emergir uma nova
sociedade à qual alguns teóricos denominam de pós-moderna.
Não
existe, no entanto, um consenso entre autores no estabelecimento de datas fixas
para a origem do Pós-Modernismo, o que por si já revela uma das suas características
essenciais ao retirar do seu léxico as palavras ‘fixo’ e ‘contínuo’.
Esta indefinição gera maior dificuldade na sua classificação, porém,
manifesta-se na sua riqueza e pluralidade de significado.
Lyotard,
contudo, refere que «a palavra está em uso no continente americano, na escrita
de sociólogos e de críticos […] designando o estado da cultura após
transformações que afectaram as regras dos jogos da ciência, da literatura e
das artes a partir do fim do século XIX» (Lyotard, 1985, p. 11). No seu livro,
A Condição Pós-Moderna, este filósofo desenvolve a hipótese de que «o
saber muda de estatuto ao mesmo tempo que as sociedades entram na era dita pós-industrial
e as culturas na era dita pós-moderna», tendo esta passagem começado, «pelo
menos, no fim dos anos 50» (Lyotard, 1985, p. 15).
O
filósofo Gianni Vattimo na sua obra ‘Sociedade Transparente’, aponta
essencialmente três condições que, de facto, determinam a passagem de uma
sociedade moderna à pós-modernidade: o fim do imperialismo, o fim do
colonialismo e o início da sociedade da comunicação (com o nascimento dos mass
media).
Mas
é, sem dúvida, o efeito do progresso na ciência, concentrado no
desenvolvimento das tecnologias, que irá revolucionar radicalmente a cultura e
redefinir o indivíduo (ocidental europeu). A televisão, a rádio, os jornais
tornaram-se elementos de uma multiplicação vertiginosa da palavra, com a emersão
das minorias de todo o género e a multiplicação de visões do mundo.
Crise da grande narrativa
Tal
como o desenvolvimento dos transportes e dos mass media afectou o saber
na sua função de transmissão de conhecimento, há 60 anos «que as ciências
e as técnicas ditas de ponta incidem sobre a linguagem». É a incidência
destas transformações tecnológicas sobre o saber que faz com que as grandes
narrativas entrem em crise (Lyotard, 1985, p. 16). Na narrativa das Luzes «[…]
o herói do saber trabalha para uma boa finalidade ético-política, a paz
universal». Tem uma dimensão mitológica. Na sociedade pós-moderna, «a função
narrativa perde os seus functores, o grande herói, os grandes perigos, os
grandes périplos e o grande objectivo» (ibid., p. 12). O herói pós-moderno
é uma espécie de ‘anti-herói’.
O
Super-Homem morre na Banda Desenhada. Apesar de ser uma estratégia de
marketing, o que é certo é que os seus leitores deixaram morrer este super-herói
quando em 1992 se registou um dos períodos mais negros da sua longa história
editorial.
Na
ficção literária de 1954, The Lord of the Rings, apesar de se tratar de uma
eterna batalha do bem contra o mal, Tolkien já atribuía ao seu personagem –
Frodo Baggins – as características de um anti-herói. É um ser frágil,
pequeno e humilde, que se oferece para destruir um anel que confere enormes
poderes a quem o possuir. Assim ele luta para salvar o mundo das ‘forças das
trevas’ que o perseguem e disputam a posse do anel.
No
cinema «super-realista pós-moderno», termo atribuído por Carlos Ceia em 1998
a filmes como Kids e Trainspoting, a representação do mundo é
feita através de uma evidência cruel, mostrando-nos o real, nú e crú, sem
moralismos, como se uma total ausência de emoções fosse possível de praticar
pela sociedade. Neste tipo de cinema ‘pós-moderno’ os personagens vivem sem
nenhum fim em vista. (Ceia, 1998, p. 102)
David
Lynch e David Cronemberg são outros dois exemplos no cinema contemporâneo que
destronam o Homem da categoria de centro irradiante de todas as coisas.
A
narrativa que sustentava o sentido da imagem no cinema clássico perdeu-se e
David Lynch tornou-se num dos maiores produtores de narrativas
desestabilizadoras de sentido. Nos seus filmes torna-se evidente a fluidez de
significado que se estabiliza e desequilibra mesmo em sequência. É,
provavelmente, nessa quebra de significado único, onde a imagem é bastante
codificada, mais profunda e assim mais perto do inconsciente que reside o
desassossego e a sedução dos seus filmes.
O
cinema contemporâneo tem revelado assim, uma relação directa com a nova forma
de entender o Homem actual. De facto, também nós não formamos «combinações
de linguagem necessariamente estáveis e as propriedades das que formamos não são
necessariamente comunicáveis […] há muitos jogos de linguagens diferentes:
é a heterogeneidade dos elementos» (Lyotard, 1985, p. 12).
In-significância da imagem
«Hoje
em dia somos bombardeados por uma tal quantidade de imagens que já não sabemos
distinguir a experiência directa do que vimos durante poucos segundos na
televisão. A memória está coberta de camadas de pedaços de imagens como um
depósito de lixo, onde é cada vez mais difícil que uma figura entre muitas
seja capaz de ganhar relevo.» (Calvino, 1998, p. 112)
Com
a abertura do ‘campo do visível’, através da imagem difundida,
primeiramente com a fotografia e posteriormente com o cinema e com a televisão
(cujas raízes estão numa ingenuidade utópica de alargar o mundo ao
conhecimento através do registo documental), foi possível ao Homem novas
experiências estéticas. O desenvolvimento da indústria, aliado ao
desenvolvimento das tecnologias da comunicação, conseguiu ultrapassar a
dicotomia inicial de mero registo (Lumière) ou da ficção (Mèlies), para
passar a utilizar o poder simbólico da imagem através da manipulação da
‘realidade’ (montagem)
2.
Na
sociedade contemporânea regista-se um efeito de vazio gerado pela perda de
significado da imagem, no sentido em que nada possui um significado único, mas
múltiplo e, como tal, flexível. Não tendo linguagem para suportar a verdade
da narrativa – porque o real é um excesso de informação –, quando falamos
sobre a realidade estamos a ver um só único ponto de vista. Como consequência,
dá-se um deslize constante do sentido.
A
multiplicação da imagem fez desaparecer o ‘grande referente’ que numa
narrativa clássica nos permitia realizar ‘sentido’.
A
imagem entrou em crise e, como refere Bernardo Pinto de Almeida (2001),
manifesta-se na sua «natureza selvagem e difícil de definir»3. A
nova dimensão da imagem acentua o desequilíbrio referencial na medida em que
dela desconfiamos. Esta atitude céptica pode ser um reflexo de protecção em
relação ao seu poder.
A
publicidade foi um dos principais factores responsáveis pela perda de sentido
da imagem, na medida em que atribui ao referente significações móveis. Através
dela, os significados ‘colam-se’ e ‘descolam-se’ ciclicamente aos
produtos, diminuindo «o seu valor/tempo, sujeitando-se ao valor/moda e à
renovação acelerada» (Baudrillard, 1995).
Na
sociedade de consumo, os objectos passam a pertencer a um campo móvel de
significações e são congelados em mitos quando lhes é atribuído um excesso
de significado. A máquina de lavar, conforme o exemplo apontado por Baudrillard
(1995), deixa de ter como significado a sua funcionalidade (valor de uso), para
passar a ser um símbolo de conforto e de prestígio. Para vermos o mito temos
que esquecer o seu ‘valor uso’ e somos assim continuamente iludidos num mar
de representações simbólicas. Se o valor de uso de uma determinada coisa é
igual para todos, pois está inerente à função do objecto, isso já não
acontece «diante de objectos enquanto signos e diferenças, que se encontram
profundamente hierarquizados» no seu ‘valor de troca’ (Baudrillard, 1995,
p. 91).
Sociedade de massas vs sociedade
segmentada
Castells
encontra-se em desacordo com o conceito de ‘cultura de massas’, na medida em
que considera que o decifrar da mensagem é feito individualmente através de
muitos filtros: históricos, culturais, educacionais, etc., combinados
diferentemente em cada indivíduo. Além disso, o meio por onde passa a mensagem
não é puro, ou seja, também ele modifica o conceito pretendido na mensagem
original. A realidade como é vivida sempre foi virtual (virtualidade real),
porque é percebida por intermédio de símbolos formadores de sentido que
escapam à semântica rigorosa. Toda a comunicação é baseada na produção e
consumo de sinais. A realidade é, portanto, inatingível na sua pureza pois «[…]
nós não vemos… a realidade… como ‘ela’ é mas como são as nossas
linguagens. E as nossas linguagens são nossos meios. Os nossos meios são
nossas metáforas. As nossas metáforas criam o conteúdo da nossa cultura.» (Postman,
1985, cit. por Castells, p. 354)
A
linguagem codifica, portanto, a ambiguidade existente na realidade, não sendo
possível um significado único, nem uma única interpretação. Gera-se um
discurso polissémico como manifestação dessa complexidade, multiplicando-se
também através da diversificação dos meios de comunicação. Na comunicação
interactiva humana, todos os símbolos são, de certa forma, deslocados em relação
ao sentido semântico que lhes são atribuídos. Aquilo que eu digo está a ser
imediatamente reinterpretado por aquele que me ouve, pois «[…] conhecer é
inserir alguma coisa no real; portanto, é deformar o real.» (Gadda, citado por
Calvino, 1998, p. 130)
Com
os novos sistemas de comunicação multimédia, principalmente a partir dos anos
90, na fusão da televisão globalizada com os computadores, surge uma nova
cultura: a virtualidade real, que absorve as experiências materiais das pessoas
imergindo-as num mundo de faz-de-conta, difundindo-as não apenas como uma aparência,
mas como uma nova experiência já moldada pelo meio. O meio é tão
diversificado que permite misturar e coexistir «todas a expressões culturais,
da pior à melhor, da mais elitista à mais popular […] nesse universo digital
que liga, num supertexto histórico gigantesco, as manifestações passadas,
presentes e futuras da mente comunicativa» (Castells, p. 394). Com isso, é
construído um novo ambiente simbólico, fazendo da virtualidade a nossa
realidade.
Assim,
podemos concluir que o meio digital (hipermeio) contribuiu para a fragmentação,
ou melhor fractalização (Cunha e Silva, 1999), e deslocamento (fluidez) de
significado – características comuns e fundamentais para a identidade do self
pós-moderno.
As
novas tecnologias, de certa forma, libertam a audiência, dando-lhe escolhas no
seu caminho da informação, tornando-a mais activa e interactiva que as
sociedades da era da televisão de informação unidireccional. Permitiram,
igualmente, grandes alterações na forma como os meios de comunicação de
massas são disponibilizados e usufruídos. Estão cada vez mais viradas para
uma audiência segmentada, individualizada e não homogénea. O conceito
tradicional de meio de comunicação de massa foi alterado, na medida em que a
audiência tem a possibilidade de escolher o que mais lhe interessa, sem estar
limitada à simultaneidade e uniformidade de mensagem. O walkman permite
um isolamento do indivíduo do meio envolvente e a selecção individual da música;
os jornais, mesmo numa edição simultânea, são personalizados de acordo com
diferentes contextos locais; a rádio e as revistas multiplicam-se em secções
temáticas, as cassetes de vídeo oferecem alternativa à televisão oficial,
possibilitando uma flexibilidade adaptada à vida de cada um. O vídeo caseiro
modificou o «fluxo de mão única das imagens e reintegrou a vida no ecrã» (Castells,
2000).
Os
novos conceitos da tecnologia digital – multiplicidade, simultaneidade,
apropriação, manipulação, heterotopia, não linearidade, hibridez, etc. –
influenciam a nossa cultura e, como tal, demarcam-na como claramente distinta
daquela visualizada por McLuhan.
Partilhamos
a ideia de Vattimo quando afirma: «prefiro ter 50 canais de televisão a ter só
um».
Embora
já não sob o domínio do Big Brother 4, mas de muitos Little
Brothers que passaram a existir. Longe de ser um sistema perfeito,
representa contudo uma ameaça menor. Multiplicam-se os modelos, as ofertas, as
estratégias.
Enrique
Bustamente e outros teóricos da comunicação acreditam na Era Digital – de rápida
evolução a partir dos anos 80, mas instalada sobretudo a partir dos anos 90
– como uma enorme oportunidade para se atingir, finalmente, a cultura e a
comunicação plural, permitindo novas experiências com pluralidade de expressões.
No entanto, duas questões se levantam com a ‘generosidade’ que a nova Era
proporciona: a escolha e a igualdade.
A
complexa diversidade de escolhas, por questões funcionais, não oferece grande
ajuda no que consiste às opções que devem ser seleccionadas. A selecção é
um problema do indivíduo contemporâneo e, como tal, na nossa opinião, deveria
haver uma educação para a selecção.
Manuel
Castells refere, na sua análise à sociedade em rede, que as novas tecnologias
da informação, estruturantes da sociedade tecnológica, também ameaçam a
sociedade de uma «esquizofrenia estrutural» (2000, p. 23) existente entre função
e significado. É uma consequência da «oposição bipolar» gerada entre a
rede e o ser: «Quando a Rede desliga o Ser,
o Ser, individual ou colectivo, constrói o seu significado sem a referência
instrumental global» (ibid., p. 41). Castells alerta para a ruptura dos
padrões de comunicação social, porque, «quando já não existe comunicação
nem mesmo de forma conflituosa (como seria o caso de lutas sociais ou oposição
política), surge uma alienação entre grupos sociais e indivíduos que passam
a considerar o outro um estranho e finalmente uma ameaça» (ibid., p.
23). Com a propagação deste processo de fragmentação, as identidades
tornam-se ainda mais específicas e cada vez mais difíceis de compartilhar.
Transportando
na sua essência a liberdade, a cultura digital deveria realizar-se
universalmente, numa democracia. Nunca houve tantas facilidades de comunicação
como agora, no entanto, os indivíduos que forem excluídos deste processo
sofrerão uma profunda desigualdade social, sendo este considerado por muitos teóricos
como o mais grave precipício social da História.
Desenraizamento identitário
Durante
séculos a História foi escrita pela mão de grupos sociais privilegiados
reconstruindo os acontecimentos, desse modo, segundo os seus interesses, numa
visão global e suprema. Para sustentar a ideia de progresso os acontecimentos
eram organizados de uma forma linear. Interessados em manter a sua hegemonia em
nome de uma civilização ‘evoluída’ e ‘superior’, o Homem europeu
branco colonizava outros povos dissolvendo-lhes as diferenças culturais.
É
a explosão das multiculturas despoletada pelo desenvolvimento dos mass media
que pela primeira vez desde então, se torna impossível de entender o mundo e a
História segundo um ponto de vista unitário, linear e homogéneo.
As
tecnologias da informação tornaram-se elementos da multiplicação vertiginosa
da palavra, dando voz às subculturas desfavorecidas e permitindo o emergir das
minorias éticas, sexuais, religiosas, culturais, etc, numa pluralidade de
realidades e visões do mundo.
«[…]
talvez a característica mais importante da multimédia seja que ela capta em
seu domínio a maioria das expressões culturais em toda a sua diversidade.» (Castells,
p. 394)
No
plano estético – que se julgava, igualmente ao plano político, universal –
irrompem novos valores e novas linguagens, baseando-se em modelos muito
diferentes uns dos outros. Dá-se uma «vertiginosa proliferação de belezas»
– como refere Vattimo – e essa experiência do belo é o «reconhecimento de
modelos que fazem mundo e que fazem comunidade apenas no momento em que estes
mundos e estas comunidades se dão explicitamente como múltiplos.» (1992, p.
74)
Desta
forma, e com a comercialização e transação de objectos de diferentes
naturezas dá-se também o ‘despojamento do ser’ (Vattimo, 1992, p. 76),
libertando o sujeito do objecto e das referências que se fixavam a cânones e a
princípios metafísicos. E é assim que, segundo Vattimo, a experiência estética
da cultura de massas concilia-se com a ‘ontologia’ de Heidegger.
O
desenraizamento identitário é, então, o resultado do cruzamento de múltiplas
imagens, interpretações e reconstruções sem coordenação central.
Perdendo-se
o sentido de ‘realidade única’, o sujeito tem acesso a uma maior percepção
da sua efemeridade, identidade e diferença pela relatividade, olhando os
outros.
Este
novo saber fragmentado e pluricultural, «o saber pós-moderno […] refina a
nossa sensibilidade e reforça a nossa capacidade de superar o incomensurável.»
(Lyotard, 1985, p. 13)
O
indivíduo pós-moderno está, assim, liberto para ousar sair de si, de uma
identidade que durante séculos lhe foi imposta ao corpo, como se fosse biológica,
para «saborear o mundo num processo de outrificação.» (Cunha e Silva, 1999)
O
encontro com o Outro dá-lhe a consciência da sua diferença, e porque o
processo de identificação não é uma experiência individual, quanto mais se
conhece o Outro mais se conhece a si próprio. O pluralismo de identidades, numa
«fecundação mútua de culturas» (Pannikar 5, 2001), enriquece o
novo sujeito deixando-o existir enquanto acontecimento ao afirmar-se na diferença
como não-estabilidade e não-estrutura. E mais uma vez estamos de acordo com
Heidegger que preconizou o Homem como indefinição que se encontra a si próprio
num processo contínuo da própria pergunta: quem sou?
Contudo,
a não-identidade ou a dissolução de identidades claras tornou-se numa ameaça
à ordem social que ainda possui «preservativos culturais», segundo a expressão
de Pannikar (comunicação oral, 2001), de valores
cartesianos. Esta forma Ocidental de sentir reflecte ainda o Outro como uma ameaça.
Esta
situação ambígua que tem acompanhado o nascimento do novo sujeito leva Alain
Touraine a defender que «o que melhor define a modernidade não é nem o
progresso das técnicas, nem o individualismo crescente dos consumidores, mas a
exigência de liberdade e a sua defesa contra aquilo que transforma o ser humano
em instrumento, em objecto ou em estranho» (Touraine, 1994, p. 275).
Este
confronto de valores convive hoje, contudo, com o seu oposto – uma fascinada
aceitação pelo género transformado e ambivalente, empolgado pelos meios de
comunicação social, especialmente da publicidade, da moda, do cinema e da música.
Veja-se
o caso dos anúncios publicitários mais recentes de Calvin Klein onde já não
são exibidas as características típicas das imagens que dominavam a década
de 90. Os seus anúncios desafiam agora a importância tradicional do corpo. Em
vez de apresentarem a beleza ideal, eles debatem-se contra a ideia de corpo e
identidade fixa, estática e autocontida, procurando esbater as fronteiras entre
feminino e masculino. É também seu o slogan para perfume: “uma fragrância
para homem e mulher”.
A
abrupta mudança social, alimentada por diversos factores: declínio das
autoridades, desintegração da educação, enfraquecimento e quebra da família
e valores tradicionais, medo do envolvimento em relações pessoais e
compromissos, medo da idade, desvalorização da história, desenvolvimento da
indústria publicitária, culto do herói produzido à pressão pelo mercado,
crescimento da indústria de ‘vida saudável’, etc., deixou o sujeito
entregue a si mesmo e com uma enorme ânsia de recuperar o significado e a
espiritualidade na sua relação com o mundo. Segundo o artista “novo
primitivo” Fakir Musafar, o homem moderno perdeu a sua tribo e com o
desenvolvimento da ‘aldeia global’ perdeu a sua alma. O sujeito confrontado
com a sensação de vazio e temendo a perda do ego, procura referências
em torno de identidades primárias – religião, etnia, território, nação
– pois sempre foram a principal fonte dos significados. A necessidade de novas
formas de conectividade registou uma procura da autenticidade e de algo em que
acreditar, explodindo em diversos movimentos culturais: pseudo-religiões,
ideais nacionalistas e neofascistas, o Tradicionalismo, o Primitivismo, a Body-Art,
etc.
Atendendo
à identidade como libertadora, o Primitivismo é uma forma de identificação
numa sociedade alienada. A procura de estabilidade pessoal manifestou-se na
necessidade de modificações corporais através da tatuagem e do body
pearcing, que se alastrou especialmente a partir de meados dos anos 80.
Estas transformações são cada vez menos marcas de uma identidade de grupo e
cada vez mais uma tentativa de construir, num sentido coerente, uma
auto-identidade. A ‘sabedoria da pose’, usando a Expressão de Alexandre
Melo, como sendo outra forma de manifestação corporal e não apenas como uma
experiência narcísica, passou a fazer sentido como um acto de identificação
e de relação com a sociedade – «Se pego no isqueiro e num cigarro é banal.
O importante é fazer o gesto. É o que me dá a minha dignidade.» (Schroeter,
citado por Alexandre Melo, 1995, p. 27)
As
características destas ‘operações’ vincam uma necessidade de diferenciação
social, nem que seja pela marginalização. Utilizando a expressão de Paul
Sweetman (2000), estas atitudes são um reflexo da necessidade de «ancorar a
consciência pessoal» e um acto simbólico em oposição a uma
permanente mudança estética imposta pela moda.
Sendo
o self relacional a sua identidade encontra-se intrincada com a percepção
do seu contexto e com a forma como interpreta e se projecta através da
identidade do outro. A consciência do Eu nasce através da percepção, logo,
multiplicando-se os contextos e os padrões de comportamento, multiplica-se a
percepção que tem sobre si próprio. A identidade pós-moderna constrói-se
através de fragmentos fruto do ‘desenraizamento’, nunca sendo, portanto,
fixa e totalmente determinada. O escape resultante da adaptação do sujeito aos
múltiplos contextos proporcionados pelo mundo actual, é o que Bauman (1996)
chama de Identidade. Assume, desta forma, as características de um processo.
Como
conclui Alexandre Melo, «[…] na falta de uma instância capaz de fornecer a
todos um objectivo na vida, a descoberta deste é deixada
ao engenho de cada um […] o homem é a sua própria e irredutível finalidade
sendo preciso reinventar a existência a partir de si próprio.» (1995, p. 26).
Não interessa, portanto, ‘saber o que se é’, mas pôr em acção essa
existência para ‘se ser o que se é’, como refere Michel Foucault (ibid.,
p. 27) e tornando evidente um dos paradigmas de Sartre: a existência precede a
essência.
Extensão do Eu
A
tecnologia digital exerce um impacto muito forte na estrutura cognitiva do indivíduo
e está a mudar a forma de pensar acerca de nós próprios e do Outro.
As
‘próteses tecnológicas’ são utilizadas como simulação e extensão dos
sentidos do Homem. Desta forma, o Universo deixou de ser representado à escala
do corpo humano e está a ser expandido em novas escalas temporais e materiais
(do nanossegundo ao milénio; do quantum ao sistema solar…). O Homem tornou-se
«ao mesmo tempo terrivelmente grande e terrivelmente pequeno» (Kerckhove,
1995). Descobrimos novos mundos e desta forma fomos projectados para fora da
tradição humanista dando-nos conta que a nossa identidade não está separada
do meio ambiente. Reconhecemo-nos na nossa humilde condição como uma ínfima
parte de tudo aquilo que existe. Consequentemente, a nossa condição de humanos
ganha uma nova dimensão.
Derrick
de Kerckhove exemplifica esta experiência referindo a importância da primeira
fotografia da Terra tirada do espaço: «[…] temos talvez uma sensação da
unidade da Terra e da Humanidade que vive sobre ela. Começamos a perceber que a
Terra é uma massa una suspensa no espaço sideral. Essa fotografia iniciaria um
novo estado psicológico». De facto, expandiu «a percepção que temos do
nosso Eu para além da imagem do corpo» e alargou «o nosso sentido de
identidade», na medida em que participamos psicologicamente nessa aventura,
onde estamos ao mesmo tempo inseridos (Kerckhove, 1995, pp. 282-283).
Os
meios de comunicação instantânea «são como uma extensão técnica das
minhas próprias percepções» (ibid., p 283). Mas não somos apenas uma
continuação dessas próteses que nos tornam todo-poderosos e maximizados à
escala do Universo. É a capacidade de absorver o Mundo e incluí-lo dentro da
nossa psicologia pessoal, sentindo-nos fazer parte dele e ele de nós, numa
democracia existencial, em que Kerckhove acredita «que um novo ser humano está
a nascer» (ibid., p. 284).
A
mesma intensidade de definição de mim pelo Outro aplica-se com a capacidade de
estender a mente ao Mundo através da Internet. Pela primeira vez navegamos em
pensamento – fora da própria mente, projectando o nosso interior no ecrã de
um computador. É na extensão do Eu que, segundo Kerckhove, perdemos a nossa
identidade para nos tornarmos seres globais.
A
identidade não está a desaparecer mas a adaptar-se a condições de mudança.
Estamos cada vez mais perante uma nova identidade.
Notas:
1
TUCHERMAN,
Leda: De Deus Ex-Máquina à Máquina Ex-Deus: Ficção e Tecnologia
(tema em projecto).
Online:
http://www.eco.ufrj.br/iedat/iedaproj.html
Site
acedido em Setembro de 2001.
Considerando a existência de alguma volatilidade na Internet, o seu conteúdo
e acessibilidade poderá sofrer eventuais alterações.
2
Ligar duas imagens é sempre o resultado de uma escolha e de uma vontade humana.
1 + 1 = 3, ou seja, na ligação de duas imagens diferentes, a sua leitura não
resulta da acumulação da informação contida em cada uma delas, mas produz-se
um terceiro termo – nasce um novo significado.
3
PINTO
DE ALMEIDA, Bernardo (2002). As Imagens Que Nos Vêem. Comunicação
oral, série “Mesas-Redondas da Primavera”. Museus dos Transportes e
Comunicações, Porto.
4
Tal como ficcionava Orwell em 1948, na sua obra 1984, em que o poder controlava
o indivíduo, através de propagandas que geravam uma visão estereotipada do
mundo.
5
Pannikar,
Raimon (2001), Promessas de Identidade, o Indivíduo na Aldeia Virtual.
Comunicação oral. Santa Maria da Feira.
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