A retrospectiva da obra de Harun Farocki, apresentada no
âmbito do Festival Vídeo Lisboa entre 20 e 23 de Novembro, é
o ponto de partida e o pretexto deste texto que, à imagem
daquela, não pretende constituir-se como um percurso exaustivo
pela filmografia do realizador, mas antes deter-se nalgumas das
obras que mais sintomaticamente dão a ver a matéria de que é
feito o seu território de preocupações e reflexões.
Contemporâneo
do nascimento do novo cinema alemão, os seus primeiros filmes
remontam ao início dos anos sessenta, e encetam
formalmente uma contestação da retórica cinematográfica de
então, refém das formatações televisivas e dos códigos de
narração subj
ac
entes
a uma certa concepção da ficção dependente da indústria
cinematográfica de entretenimento.
A esta esterilidade das formas de representação
cinematográfica, e no sentido da sua reinvenção, Farocki
contrapõe um cinema militante, fazendo ressaltar o vazio dos
circuitos de imagens. Norteado pelas referências de Godard e
dos situ
ac
ionistas,
nestes primeiros filmes de carácter marcadamente panfletário
(de que o exemplo mais emblemático é Nicht
Loschbares Feuer (Inextinguishable Fire) (1969),
filme-manifesto contra o napalm) começa já a insinuar-se,
embora ainda de um modo relativamente implícito, a zona de
reflexão que focalizará toda a obra de Farocki, e em função
da qual é possível auscultar toda a dimensão de intervenção
política do seu pensamento e da sua materialização em
imagens.
Parafraseando
Giorgio Agamben a propósito do cinema de Guy Debord, toda a
criação farockiana vai no sentido de des-criar o real, de
resistir ao f
ac
to
que lá está, impedindo que o medium desapareça naquilo que
nos dá a ver.
Os filmes de Farocki perseguem essa indissociabilidade entre o
ac
to
expressivo e os modos de produção dessa expressão, o medium,
a imagem, mostrando-se enquanto tal; não dando a ver, mas
dando-se a ver, num movimento que nos conduz da coisa
representada à sua representação.
O
plano de reflexão dominante que percorre todos os filmes de
Farocki, e que se estende também aos seus escritos, uns sendo
muitas vezes o prolongamento dos outros, concentra-se e
expande-se em torno da questão “o que é uma imagem?”, e
toda a meditação suscitada é inseparável de um trabalho crítico
de investigação e desmontagem das redes de discurso e
significação que investem as imagens nos seus diferentes modos
de aparecer.
Nos
seus filmes, “as inter
ac
ções sociais entre a guerra, a
a economia e a política” esboçam-se no interior
e à luz de uma “história audiovisual da civilização
e das técnicas”.
Trata-se de mostrar a história da progressiva mediatização em
imagens de todas as
ac
tividades humanas,
que se traduz, no caso de Farocki, numa atenção
particular às condições de produção dessas mesmas imagens,
bem como ao modo como os media mobilizam e investem de forma
invisível os corpos, determinando a arquitectura do real onde
aqueles se vão inscrever. Farocki empreende uma arqueologia das
relações entre o corpo e as máquinas e mostra o que
ac
ontece aos corpos quando
capturados por dispositivos maquínicos.
Dando
a ver o corpo taylorisado, o corpo vigiado, filmando autómatos
e simulações,
o que Farocki torna
sensível são as necessidades de produção contemporânea de
corpos ao alcance da intervenção tecnológica, tudo (das sensações,
às emoções e aos afectos) sendo passível de ser transformado
em grandezas de ex
ac
titude empírica, com efeitos na
determinação do funcionamento e controlo dos corpos nas suas múltiplas
aplicações – o corpo do soldado, do trabalhador, do
consumidor, do prisioneiro…
A
reflexão teórica sobre o fenómeno destes corpos,
é indissociável de uma reflexão sobre os próprios
meios de que Farocki se serve para sobre eles reflectir - os
meios cinematográficos, a fotografia, as imagens vídeo e
digitais. Através de um trabalho quase táctil sobre o material
audiovisual de que se serve,
e que se constitui muitas vezes de imagens já existentes
por ele apropriadas, a análise das iconografias dos corpos
transforma-se também numa análise da sua “mise en image”,
que conduz das imagens aos contextos que lhes deram origem.
É
o que se passa com as progressivas desquadragens e repetições
a que vota as imagens de estrelas pornográficas de revistas, em
Wie man Sieht (As you
see) (1986),
trazendo assim à visibilidade o “ser imagem”
daquelas imagens, ou seja, revelando por detrás do regime de
visualidade da indústria pornográfica, o sentido primeiro da
sua produção. Da contraposição do rápido consumo de imagens
à tranquilidade do seu exame isolado, o que se liberta não é
o que as imagem dão a ver,
mas neste caso o movimento de reprodução serial e de
fragmentação dos corpos em que se sustenta a fabricação do corpo
qualquer pornográfico (aproximado, neste mesmo filme, do corpo
qualquer do soldado). Isto
é, o olhar, os olhos são implicados na imagem não só numa
relação ao objecto representado, mas também
ao
ac
to de representação, a imagem
exibindo-se, assim, enquanto tal,
enquanto “zona
de indecidibilidade entre
o verdadeiro e o falso”.
A
nova visibilidade que o mundo adquiriu depois da fotografia e do
cinema arrasta consigo a perca de inocência da visão f
ac
e a qualquer imagem. O
pressuposto do olho esclarecido herdado do Iluminismo, responsável
por uma concepção
ilusória de que as imagens dos media visariam ainda a
representação de uma realidade pré-fílmica, no que seria um
contributo para o conhecimento aprofundado e informado da mesma,
não é mais possível e tem de ser contrariado criticamente:
assim, em Bilder der welt und Inschrift des Krieges (Images of world and the
inscription of war) (1988),
o termo Aufklarung é
usado na sua dupla
ac
epção de termo oriundo da
filosofia e da história das ideias e de termo que se refere
igualmente ao reconhecimento aéreo militar, para reflectir
sobre os paradoxos de uma crescente vontade de iluminação
generalizada, sobretudo na sua versão de ordem técnica, com raízes
num quadro epistemológico determinado pelo desejo de tudo ver,
de tudo saber, pelo equívoco de que a razão,
versão humana do olho de Deus, instrumentalizando o
progresso tecnológico, seria capaz de “ver” sempre mais e
melhor.
De
f
ac
to, este filme analisando
imagens da topometria e imagens de vigilância na sua
diversidade de suportes e de contextos históricos, organiza-se
em torno de uma zona cega inerente à virtualidade mortal do
fotográfico
que prefigura, para além da fotografia, a impotência genérica
das
ac
tuais imagens produzidas pelos
dispositivos técnicos de percepção que, num crescendo de
sofisticação, determinam uma óptica global
estratégica de controlo do território.
Bilder der welt und Inschrift des
Krieges retoma através
de sucessivos reenquadramentos, a vários tempos, uma fotografia
aérea de Auschwitz tirada pelos aliados: em Abril de 1944,
pilotos americanos sobrevoam a Silésia à procura de uma fábrica
de armamentos e registam fotografias de reconhecimento. De
regresso a Inglaterra, os analistas identificam os alvos
industriais, mas não vêem os telhados dos barr
ac
ões e as câmaras de gás de
Auschwitz. Esta fotografia antecipa “a desrealização
crescente do esforço militar, em que a imagem se prepara para
prevalecer sobre o objecto”.
Com efeito, a excessiva visibilidade desde logo permitida pelo
alcance óptico da fotografia aérea esbarra com uma dissimulação
muito mais radical do que a encetada pelo inimigo para evitar
que “o percebido seja sinónimo de imediatamente perdido”
– aquela que resulta de uma incap
ac
idade para ver o que a
fotografia objectivamente contém, mas o olho não está
preparado para reconhecer.
Evidenciando
as linhas de vizinhança que o trabalho de Farocki partilha com
o pensamento de Paul Virilio, Bilder der welt und Inschrift des Krieges é um
filme sobre a zona cega das imagens de vigilância,
incapazes de interditar o
ac
idente, de identificar todas as
ameaças. Neste sentido, é um filme que, na sua anterioridade,
é contemporâneo da era pós
11 de Setembro.
O
que Virilio apelidou de logística
da percepção, Farocki vai cartografá-la nas suas ocorrências
materiais, não só no modo como se foi desenvolvendo e
traduzindo na esfera originária da guerra culminando hoje numa
espécie de televigilância que se expressa em imagens da mais
variada natureza, mas também como se foi disseminando pelos
restantes territórios, numa crítica, que se prolonga até à
sua última instalação, Auge/Maschine
(Eye/M
ac
hine) (2001), à substituição do homem por máquinas perceptivas cada vez
mais fléxiveis, que automatizam a percepção e desimplicam o
humano de onde sempre foi incómodo mostrá-lo – no trabalho e
na guerra -, e trabalham no sentido da administração e
controlo de todos os campos da vida.
De
f
ac
to, o controlo de tudo o que
mexe através de máquinas de visão integradas em satélites
inteligentes, que dobram em tempo real e de forma imediata a
realidade, permitindo determinar ponto por ponto, a cada
momento, o território inimigo, vai de par, como refere Virilio,
com uma política de percepção e uma colonização do olhar
que, tendo na televisão um canal privilegiado, procura
domesticar as re
ac
ções e emoções dos
consumidores-espectadores, fazendo parte do mesmo programa de
abstr
ac
ção do mundo em que este
desaparece virtualmente sob as suas imagens.
Os
filmes de Farocki mostram essa transformação do mundo em
imagem e literalmente pela imagem: é sobre a imagem e em função
dela que se age. Daí a necessidade de construção de
“laboratórios de imagem”, de simulações como as que se
mostram no filme Die
Schopfer der Einkaufswelten (The Creators of the Shopping
Worlds) (2001) e que
tentam esgotar, no sentido de os prever, todos os gestos possíveis
do futuro consumidor dos espaços comerciais em projecção, num
esforço para condicionar cada gesto
ac
tual, esboçado na realidade, a
encaixar, a ir ao encontro dos quadros previstos pela simulação
do real; a realidade
ac
olherá, assim, um gesto desde
logo constrangido na sua aparente liberdade. É no território
da imagem virtual, simulada, que a realidade se enforma, que se
determina a arquitectura do real. Esta desenha-se na expectativa
de responder e coincidir o mais possível com a sua simulação.
É a sua simulação
que a determina e não o contrário. Age-se sobre a imagem e não
mais directamente sobre o real, à distância, evitando o cont
ac
to e a proximidade. As imagens não
são mais representações de um real que lhes pré-existe, elas
são simulações de um real que as irá decalcar.
A
escrita fílmica de Farocki assume-se, assim, como um trabalho
de arqueologia sobre as constelações de imagens e as suas
transformações, sobre os discursos que as fundam, recombinando
fragmentos e textos de proveniência diversa, da sua junção e
confronto irrompendo um terceiro espaço, uma nova imagem, que
funciona como a imagem dialéctica, descrita por Benjamin.
Com
efeito, em filmes como Videogramme einer revolution (Videograms of a revolution) (1992)
e Arbeiter verlassen die Fabrik (Workers leaving the f
ac
tory) (1995), exclusivamente constituídos de apropriações de imagens já
existentes (no primeiro caso imagens da televisão e de câmaras
de vídeo amadoras registando o advento da revolução romena;
no segundo imagens do cinema, que retomam o motivo da saída da
fábrica dos irmãos Lumière, estruturando-se à sua volta)
trata-se de dar a ver a relação de reversibilidade que se
estabelece entre o passado e o presente, entre a carga histórica
da imagem e o seu reencontro com o agora da sua apreensão.
Mesmo
as imagens directamente filmadas por Farocki enquadram-se num
espírito de forte consciência da natureza em segundo grau das
imagens, de análise da ideia de reproductibilidade contida
nas imagens que medeiam o espaço público, entendidas
como a própria matéria de que é feito o mundo.
Assim,
nos seus filmes assistimos ao desenrolar do próprio processo do
pensamento que se faz, que nasce, no entrelaçamento das matérias
do cinema - o som e a imagem -, à medida do desfilar da película.
Neles, a montagem trabalha não só a exploração das associações
mentais que se libertam no intervalo da justaposição
inesperada de duas imagens, por choque e aproximação, mas também
a produção de uma visibilidade significante que decorre da
retoma dessas mesmas imagens junto de outras imagens, desta
circulação resultando um efeito de diferença e repetição,
intensificado pelo trabalho da banda de som, que correndo
autonomamente, comenta as imagens à distância.
Tal
como na pedagogia godardiana e straubiana,
Farocki reinventa as relações entre a imagem e a palavra, para
fazer emergir da sua disjunção, do seu entre-dois, o
pensamento de aprisionamento do olhar (o olhar não é livre,
mas dirigível…), induzido e constrangido pela temporalidade e
instantaneidade da montagem e do enquadramento car
ac
terísticos das imagens
encenadas pela televisão e pelo cinema. Ao contrário da falsa
proximidade de ordem técnica produzida pela imediaticidade do
fluxo
ac
elerado de imagens dos media
visuais, os procedimentos do dispositivo formal de Farocki,
quando retomam estas mesmas imagens, introduzem nelas um efeito
de ralenti, um efeito de paragem da imagem, possibilitando a
instauração de uma distância reflexiva,
da distância como pré-requisito para ver e para pensar,
para descobrir nas imagens o traço inscrito do pensamento que
lhes deu origem.
AGAMBEN,
Giorgio; “Le cinéma de Guy Debord”, in Image
et Mémoire, Hoebeke, 1998, pp. 74-75.
BLUMLINGER,
Christa; “HarunFarocki ou l’art de traiter les
entre-deux”, in Harun
Farocki. Reconnaître et Poursuivre, TH. TY., 2002, p.
13.
C..f.
BLUMLINGER,
Christa; “HarunFarocki ou l’art de traiter les
entre-deux”, in Harun
Farocki. Reconnaître et Poursuivre, TH. TY., 2002, p.
13.
AGAMBEN,
Giorgio; “Le cinéma de Guy Debord”, in Image
et Mémoire, Hoebeke, 1998, p.76.
BLUMLINGER,
Christa; “HarunFarocki ou l’art de traiter les
entre-deux”, in Harun
Farocki. Reconnaître et Poursuivre, TH. TY., 2002,
p.14.
C.f.
DANEY, Serge; La rampe,
Cahier du Cinéma-Gallimard, 1996,
pp. 78-85.
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