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  O futuro dos gestos. Manual, de Cristoph Girardet e Matthias Mueller

  [ Nuno Lisboa ]

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MANUAL apresenta-nos a visão dos gestos humanos, tal como foi projectada, no passado, pelas imagens do futuro previsto na ficção científica exibida nos ecrãs da televisão. Através de uma operação arqueológica que resgata as imagens dos contextos narrativos em que estavam inseridas – em séries americanas da década de 60 do século XX – reprogramando-as segundo um novo código de associação, Matthias Müller e Christoph Girardet, nos dez minutos de duração de MANUAL, exibem o espectáculo dos gestos na inter ac ção da mão humana com a tecnologia.

Se a sequencialização típica do nosso quotidiano é pontuada pelos interruptores, pelos botões e pelas teclas, as funções das mãos podem permanecer as mesmas enquanto os gestos sofrem transformações profundas. Abrir e fechar uma porta rodando uma maçaneta com a mão ou carregando com o dedo num botão pode ilustrar esta metamorfose. Porém, neste segundo momento, um mesmo gesto pode então conter uma multiplicidade de funções, ambivalentes e contraditórias, que se ocultam no interior do dispositivo a ele associado. Sem a legenda correspondente a cada botão, tecla ou interruptor – start/stop; on/off; fast forward/rewind - os movimentos protagonizados pela mão tornam-se ilegíveis e insignificantes em si próprios. O gesto de carregar, como MANUAL nos mostra, tanto pode abrir como fechar, iniciar, parar, avançar, repetir, retroceder, ac elerar, abrandar, apagar, gravar, sintonizar, ac ender, apagar...

Por outro lado, é a própria gestualidade que se oculta, entre o corpo e a técnica, em movimentos mínimos que tendem para a invisibilidade. Afinal, a porta abre-se à simples aproximação do corpo captado no sensor. "Fisicamente mais pequenos, mais condensados, rígidos e violentos", como assinala o fotógrafo canadiano Jeff Wall, os nossos gestos abandonaram "a cerimónia, a energia e a sensualidade dos gestos da arte barroca e são substituídos na modernidade por movimentos mecanizados, ac ções reflexas, respostas convulsivas e involuntárias"1. Os grandes planos que compõem MANUAL, com o indicador como protagonista, não exibem os tiques diagnosticados na esfera da gestualidade desde o final do século XIX2. Apenas - na sucessão de botões, teclas e interruptores, fichas, tomadas e cabos, seringas ou aerossóis - a precisão absoluta da mão exteriorizada e liberta do homem3. A precisão, ou seja, a restrição completa da mão desocupada do sentido projectado no gesto.  

A sucessão de grandes planos não se limita a um procedimento classificatório ou serial. MANUAL não nos apresenta apenas um capítulo da história da inter ac ção com os equipamentos. Na forma como é composto, pela autoridade do enquadramento e no ritmo imposto pela montagem, o filme de Müller e Girardet interioriza a condição da tecnologia que expõe: os cabos ligados pelas mãos e os botões apertados pelos dedos parecem ac cionar as próprias imagens que se sucedem e os cortes que as ligam; os enunciados dos botões – start/stop, ff/rw... – parecem determinar a velocidade e o batimento de umas imagens sobre as outras. Ao mesmo tempo, é a própria materialidade do cinema que se encontra exposta: "Cada corte entre imagens de botões a serem pressionados foi desencadeado pelo dedo do montador a carregar num botão. Causa e efeito entram em colapso num curto circuito de significação."4

Se o cont ac to assegura a ligação, aproximando o que está longe, MANUAL confronta-nos também com uma experiência da distância. Desde a criação dos primeiros utensílios que o cont ac to mediado pela técnica aproxima na medida em que distancia. Entre dois corpos mediados tecnicamente, a proximidade distante no tempo e no espaço vem produzir a ausência presente da imagem na fotografia ou da voz no telefone. "You've been so remote, so far off from me – as if there were oceans betweeen us... Oh my love", ouvimos na banda sonora de MANUAL, composta por vozes femininas de melodramas de Hollywood dos anos 40 e 50. Melancolicamente, a ligação sentimental atravessa a ligação eléctrica nesta dialéctica entre a proximidade e a distância.

O cinema devolve-nos como um espelho a imagem inconsciente dos gestos. Os tempos modernos encontram aí o espaço de exibição que alia o orgânico, o mecânico e o eléctrico para nos dar a ver as mímicas mecanizadas impostas pela funcionalidade dos objectos. É famosa a sequência de Tempos Modernos (1936) em que Charlot operário continua a rodar parafusos imaginários já depois de sair da linha de montagem. Como sublinha André Bazin, a mecanização é a tentação permanente de Charlot que, ao contrário de todos nós, não adapta a sua ac ção à realidade que pretende transformar mas, pelo contrário, opera por uma sucessão de instantes projectando no tempo uma ac ção adequada a um único momento, cometendo assim o pecado da repetição5. Um outro herói burlesco surgiu na idade eléctrica com a figura de M. Hulot, protagonizado por J ac ques Tati que, em Playtime (1967), é quase apenas um espectador que atravessa agilmente a paisagem audiovisual da Paris do futuro edificada no presente, onde o passado é apenas literalmente um reflexo entrevisto nas vidraças. Steven Spielberg ilustrou entretanto, em Relatório Minoritário (2002), a figura do espectador ac tivo, editor de imagens e sons, na idade do ciberespaço. Na adaptação de Philip K. Dick, os relatórios elaborados por 3 gémeos que prevêem o futuro são fornecidos a Anderton (Tom Cruise), director da Agência Precrime, em sequências de imagens que devem ser minuciosamente visionadas para determinar o local do crime que teria sido cometido se não fosse impedido pela prevenção decorrente do seu conhecimento antecipado. Entre o barroco e o expressionista – ao contrário dos nossos impulsos minimais do indicador e do polegar no rato e no telecomando - Tom Cruise esbr ac eja no ar, num interf ac e invisível, os gestos para ac elerar, abrandar, cortar e colar sequências elípticas de imagens e sons que possibilitam a antevisão do futuro a impedir e a prisão do criminoso antes de o ser. O tempo da ficção vem coincidir com este futuro anterior, que poderia ter sido, mas que permanece apenas uma dimensão interdita do tempo, verdadeira mas não realizada.

 

1 WALL, Jeff – “Gestus” (1984), in Jeff Wall, Phaidon, New York, 2002.

2 Cf. AGAMBEN, Giorgio – “Notes sur le geste”, in Moyens sans fins, Payot & Rivages, Paris, 1995.

3 Cf. LEROI-GOURHAN, André – “O gesto e o programa”, in O Gesto e a Palavra 2 – Memória e Ritmos (1965), Edições 70, Lisboa, 2002.

4 DARKE, Chris – The Lost World - exhibition guide, Bluecoat Gallery - Liverpool / Milch Gallery - London, 2002.

5 BAZIN, André – Charlie Chaplin (1972), Cahiers du cinéma, Paris, 2000.