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  O design como problema

  [ José A. Bragança de Miranda ]

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«Tentei completar uma circunstância da vida como um edifício, solto no espaço sobre terreno usado. Fiz uma forma contra o céu em superfície plana, como um corte nas ervas daninhas, mas aborreci-me e não o acabei. Faço algo que, à medida que muda e se desintegra, não deixa pistas quanto à sua natureza anterior, como se todas as fotografias fossem imagens de mobilidade. Pequenas margaridas crescem no corte, preservando a forma».

Mei-Mei Berssenbrugge

 

Com a aceitação moderna da imanência o humano caracteriza-se, fundamentalmente, pela sua capacidade constituinte. Nenhuma constituição política consegue absorver esse poder constituinte, que faz e refaz a experiência, que, por seu turno, nos faz a nós e, muitas vezes, nos desfaz. Pelo mero facto de se agir tudo é transfigurado e, em certa medida, anulado. Só o agir é sintético, embora decorra sempre sobre o fragmentário, na parcialidade de um «aqui e agora».. Em suma, tudo aquilo que sobrevem decorre na materialidade da imanência, mesmo o mais místico e transcendente. Numa certa versão da modernidade, que se pretende racional, os «deuses», os «minotauros» ou as «sereias», eram simples espelhismos da imaginação ou produtos poético que, quanto muito, têm uma justificação estética. Mas enquanto produto da capacidade constituinte, mesmo sendo «imagens», não deixam de ter efeitos, e bem potentes. É sempre menos o real que muda do que as imagens em que é dado a ver. Esse poder constituinte esteve sempre em acto, mesmo na Idade Média, onde o mínimo recanto estava preenchido pela plenitude de um Deus e assombrada por demónios[1], embora mediado por «ideologias» que, controlando-o ou dissimulando-o, lhe davam curso. Do que está aí, com uma certa exterioridade, fazem parte coisas como objectos, instituições, imagens e desejos, todas marcadas pela mesma materialidade. Deste ponto de vista, as imagens e as «ideias» não são menos materiais do que os objectos, por exemplo, formando com estes a base em que decorre todo o agir, que abre outras possibilidades da vida. O agir livre tem o poder sintético para recriar todo este fundo matérico, matando deuses, mas também criando fantasmas ou vampiros. Toda esta visão moderna, que ainda nos determina, está a sofrer actualmente uma mutação radical. Cada vez mais a nossa experiência tende a ser constituída tecnicamente, ou melhor, a técnica determina boa parte dos processos sociais, mesmo os mais anódinos do quotidiano. Basta pensar na maneira como o telemóvel foi, quase imperceptivelmente, incrustando-se na vida. Concomitantemente com este fenómeno tende a desaparecer a distância que ia do constituído – tudo o que está aí na sua materialidade –, ao constituinte. Isto sucede através da aceleração tecnológica que, operando à velocidade da luz, tende a reduzir cada vez mais o espaço e o tempo dos processos que herdámos da história, mas também as imagens metafísicas com que o embalávamos. Emerge, deste modo, uma nova plasticidade da experiência, como se todas as diferenças se tornassem numa mera diferença de grau, num continuum criado pela codificação digital. Quando tudo é traduzível informacionalmente as diferenças tornam-se provisórias. Cria-se assim uma reversibilidade, tecnologicamente sustentada, que faz das passagens da matéria à imagem e desta à matéria, simples momentos de um mesmo processo. À medida que a técnica se vai escapando aos procedimentos que a «instrumentalizavam», i.e., a objectivavam como «instrumentos« ou «máquinas» que se vão miniaturizando e imaterializando, toda a constituição tende a tornar-se num imenso automatismo de repetição, cujo perigo está em dispensar o próprio humano, que pôs em movimento esta estrutura[2].

Toda a metafísica começa, especularmente, pela fragmentação da opacidade do «real», a que Hans Blumenberg chama o «absolutismo da natureza»[3], operando uma divisão do espaço que se desmultiplica, desdobrando-se em «real» e «imagem». Para o bem e para o mal, esse duplo espaço regeu toda a experiência ocidental. É no mito que esta divisão tem origem. Não disse Tales que «o mundo está cheio de deuses»? E o que são estes senão uma fragmentação do existente em imagens, mais potentes do que o «real»? O controlo metafísico desta divisão originária remonta a Platão e à sua distinção entre um espaço «hiper-urânico» – das ideias eternas –, e o espaço da transiência, daquilo que passa, os fenómenos; ou a fractura teológica que distingue entre o espaço prosaico e miserável do «aqui e agora» e o espaço radioso do «paraíso», que sendo futuro organiza rigidamente o mundo medieval. Os philosophes modernos voltam-se contra esta facetação teológica e metafísica do «real» para a abolirem, sem conseguirem verdadeiramente apagá-la. As dialécticas hegeliana ou marxista são o melhor sintoma de tal dificuldade, que não deixará de afectar o positivismo moderno, para o qual só existe o que é comprovável empiricamente. A dialéctica que antes estava cindido «miticamente» (ou metafisicamente) desdobra-se agora no «tempo», que necessariamente tem de antecipar o espaço do futuro para se «outrar», como diria Fernando Pessoa, ou se diferenciar. A proliferação de utopias mostra bem a dificuldade em superar a estrutura especular, cujos efeitos se fazem sentir mesmo in absentia. Dessa dificuldade vem-nos uma indicação de Nietzsche: «Abolimos o “mundo verdadeiro”: que mundo nos resta, o das “aparências”? De nenhum modo! Ao abolirmos o mundo verdadeiro abolimos também o mundo das aparências!»[4]. Paradoxalmente a frase que afirma o fim da estrutura ainda lhe dá curso outra vez. Tudo indica que, mais que uma abolição ou superação, está em curso, pelo menos desde o século XIX, um agenciamento dessa divisão, que é percorrida a velocidades inauditas pela técnica[5]. Senão veja-se o caso do telefone. O espaço onde se colocam os que falam ao telefone não é nem «próximo» nem «distante», tal como as experiências de imersão total, se colocam para alem do «real» ou do «imaginário»[6]. Significa isto que os dispositivos virtuais já não «cabem» nas categorias metafísicas, baseadas sempre em oposições fortes? Será que necessitamos de outras categorias[7]? No caso do telefone estamos presentes e ausentes, presentes na ausência, ou ausentes apesar da presença. Todo o espaço entre presente e ausente é percorrido tecnicamente, constituindo uma série contínua que é percorrida nas duas direcções, um pouco como nos sintetizadores de música electrónica se percorre todo o «espaço acústico» da série. Com razão o designer canadiano,  Bruce Mau, que sustenta que «things are less discrets than ever»[8], define a nova situação como uma «global image economy». Quando o real é afectado por estes fenómenos começa a perder rigidez, ganhando uma plasticidade que o torna «moldável».

Está em causa uma viragem decisiva, cujo sentido mal podemos antecipar. Mas é evidente que o enquadramento da experiência histórica mudou ou, no mínimo, que houve uma reponderação dos elementos que a formavam. A técnica que aí estava localizada como um «instrumento», instrumentaliza a estrutura em que estava inscrita. Trata-se de um processo que afecta toda a cultura[9], mas que sofre uma viragem decisiva com a tipografia de Gutenberg, que se incrementa no século XIX, com o aparecimento de técnicas novas como foi o caso da fotografia, do gramofone e do cinema, rapidamente seguidos pela máquina de escrever e o computador[10]. A imagem que regia a constituição, na qual se baseava o controlo racional das passagens entre potencial e actual, entre possível e realizado, entre imagem e ficção, etc. sofre assim um forte abalo. Mas era desta imagem que dependia a noção de «instrumento», que permitia que algo fosse utilizado como «meio» para atingir ou realizar certos fins. Como mostrou Walter Benjamin, as novas técnicas da «reprodução» abalaram a estruturação dual da metafísica: «A técnica da reprodução separa o objecto reproduzido do domínio da tradição. Ao efectuar várias reproduções, substitui uma pluralidade de cópias por uma única existência. E ao permitir que a reprodução vá ao encontro do espectador ou ouvinte, na sua própria situação particular, reactiva o objecto reproduzido».[11]. Benjamin descreve como uma crise da «aura» o abalar desta distinção entre o original e as cópias, que é central na metafísica de Platão, e que desempenha um papel central na cultura europeia[12]. Mas esta crise refracta-se em todas as outras divisões, como a de próximo ou distante, presente ou ausente, etc., como vimos no exemplo do telefone. De facto, é a própria estrutura «metafísica» da experiência ocidental que é abalada pela técnica.

A clivagem platónica desdobra-se em muitas outras, dependendo do tipo de imagem que as determina. No cristianismo medieval será especialmente dramatizada a fractura entre visível ou invisível. Não é por acaso que, desde o século XIX, os românticos insistem na oposição entre superfície e profundidade. Sabe-se que à profundidade esteve sempre associada a ideia de verdade ou autenticidade, e ao superficial a de falsidade ou leviandade. Ora, à medida que as técnicas referidas por Benjamin se iam instalando também esta divisão se complexifica enormemente. Algo de importante, se joga em torno desta linha de clivagem. Assim, diz-nos Nietzsche que «aqueles que têm a necessidade de adorar a superfície fizeram, num certo dia, a tentativa infeliz de ir debaixo dela»[13]. Ou que «os gregos foram superficiais por profundidade»[14]. Não há muito tempo ainda Paul Valéry deu-nos a sua versão de que «o mais profundo é a superfície». Uma crise profunda atravessa esta divisão, afirmando Bruce Mau que «there is no difference between foreground and background. On the contary, what we consider our work … is, in fact, embedded in the thickness between foreground and background»[15]. Essa espessura mínima, que faz recordar o infra-mince de Duchamp, outro nome essencial nesta crise, traz a primeiro plano a questão das «interfaces». Eis uma estrutura paradoxal, a de uma pura «superfície» sem verso nem reverso, que está para além da superfície e da profundidade. É o seu desdobramento interno que é essencial, constituindo um espaço que liga e desliga ao mesmo tempo, e que internaliza a própria divisão entre superfície e profundidade, explorando todos os seus efeitos.

Por razões que começamos a intuir as interfaces tornando-se numa questão central. Apesar de estarem associados à técnica, não se confundem com ela, permitindo ao invés questioná-la na sua lógica profunda. Não basta encará-los como uma espécie de «janelas» através das quais comunicamos com o mundo virtual das bases de dados mobilizadas pelos computadores em rede, i.e., o ciberespaço. É certo que, dada a existência do ciberespaço, se torna necessário criar dispositivos percepcionais e multi-sensoriais que nos permitam aceder a um domínio onde se fala uma linguagem binária, controlada por códigos de todo o género, e que funciona à velocidade da luz. Apesar da evidente tecnicidade desta questão, que se expressa nos monitores, nas data gloves, etc., estamos confrontados com o que Steven Johnson definiu como «cultura das interfaces»[16]. De acordo com Johnson, a procura de transpor o abismo entre a «informação em bruto e a sua vida divina no écran» tem uma origem muito mais remota e primordial. Para ele as catedrais antigas serviam de interface com o divino, tal como os Graphic User Interface (GUI) nos permitiriam comunicar com o ciberespaço. Neste contexto, percebe-se facilmente que a cultura das interfaces equivale a uma certa relação da técnica com a estética. Mas a visão de que o suporte técnico tem de ser construído esteticamente está ela própria determinada por uma certa visão da técnica[17]. Ora, os «interfaces» tendem, precisamente, a perturbar este tipo de articulações. A mínima articulação, actualizando uma das fracturas metafísicas já referidas, impõe imediatamente uma certa «interfacialidade»[18].

As interfaces obrigam, portanto, a uma releitura de toda a cultura anterior, permitindo vê-la a outra luz. Na idade Média, por exemplo, qualquer elemento do mundo era uma interface com o divino, constituindo uma espécie de veículo que tudo mobilizava para a «salvação». Como paralelamente nos nossos dias, uma sala de aula, por exemplo, é uma «interface» do sistema pedagógico e mesmo da «razão pedagógica», bem mais enigmática e dissimulada. Qualquer divisão implica uma interfaciação imediata. Quase que se diria que, no momento em que a «interfacialidade» predomina como categoria, é justamente aquele em que tudo funciona, ou pode funcionar, como interface. Se no caso da medievalidade tudo servia de interface com o divino, de que o «real» era um «espelho distorcido», para usarmos uma metáfora de S. Paulo, isso não impedia que em alguns locais precisos, nas Igrejas ou nos sacrários, houvesse uma concentração do sagrado que lhe conferia uma superioridade imediata. Nos nossos dias essa estrutura generalizou-se e dessacralizou-se. As imagens num monitor, uma instalação cibernética, o próprio corpo, qualquer objecto doméstico, como um frigorifico, por exemplo. Naquilo a que se chama «ubiquitous computing»[19] ou nas tendências actuais para o «pervasive computing», tudo pode devir interface [20]. Sintomaticamente Johnson, sem retirar todas as consequências deste facto, considera que as interfaces equivalem, no seu conjunto, a um «World Processor».

O processamento do mundo, e já não apenas dos textos ou das «imagens», eis a consequência do crescente alargamento do ciberespaço e da sua tendência a englobar no seu «interior» cada vez mais segmentos do «real». Nas condições actuais da nova «economia da imagem» isso passa por «mimetizar» ou replicar toda a existência, aquela que está em curso e a que está historicamente arquivada, no espaço informacional, sem deixar de ser importante a tendência inversa desta, mas que e lhe é complementar. A de que o «real» seja redividido ao ínfimo pormenor através de chips computacionais embutidos por todo o lado. Seja por replicação, seja por miniaturização, isto corresponde a um desaparecimento das interfaces, mas apenas porque elas se confundem imediatamente com qualquer objecto existente[21]. Em última instância, temos de considerar que é o próprio corpo que constitui a última interface, ou interface das interfaces, jogando-se nele todo o nosso destino.

O mais artificial confunde-se assim com o mais vital, o tectónico parece tornar-se imediatamente real, como se não existisse qualquer diferença entre projecto e realização, entre traçar e construir. Dada a crescente reversibilidade técnica, a linha contínua em que esta se articula, o projecto é um momento da realização e a realização torna-se num momento do projecto. A esta luz compreende-se que a articulação da técnica e da estética sejam duas faces do mesmo processo de linearização do «real» pelo código digital. Esta relação é mais tensa do que pode parecer à primeira vista. A potência de fracturação em que se fundaram as interfaces, teologicamente e metafisicamente, é capturada pelo dispositivo técnico. Dissipada a negatividade, que dividia a existência em busca de outras possibilidades, já não se trata de desenhar interfaces, mas de desenhar tudo. A divisão apenas existe enquanto efeito do movimento, ou do trabalho, da linha técnica, a qual como se fosse uma espécie de banda de Moebius[22], está a envolver tudo numa aparente inevitabilidade. O desaparecimento das interfaces, ou a sua nova transparência, invalida a tese benjaminiana de que as tecnologias estariam a revelar o «inconsciente óptico» do real. Sendo certo que, como afirmou Benjamin, as novas tecnologias revelam o «inconsciente óptico» que estava dissimulado em formas de experiência mais estáveis, ou que, como diz, Johnson que o aumento da velocidade e das metamorfoses revelam a importância das interfaces, trazendo-as à visibilidade, tudo indica que se está a operar uma «síntese» onde todas as diferenças tendem a tornar-se insignificantes[23].

O momento em que técnica e estética se fundem é aquele em que domina o design. A trajectória inesperada das interfaces, que desaparecem segundo um movimento duplo - o da replicação das imagens da experiência dentro do ciberespaço e a replicação do real pelo ciberespaço -, é inseparável do design e da arquitectura. O tectónico transmigra do mundo para o ciberespaço. Isso viu-o bem Michael Benedikt num texto pioneiro: «A porta do ciberespaço está aberta, e acredito que um número significativo de arquitectos com mentalidade poética e científica irão atravessá-la, pois requer planificação e organização constantes. As estruturas que proliferam dentro dele requerem design… A sua tarefa será a de visualizarem o que é intrinsecamente não físico e dar forma habitável visível às abstracções, processos e organismos de informação. Tais designers irão recriando no mundo virtual muitos dos aspectos vitais do mundo físico, particularmente, as proporções e prazeres que sempre pertenceram à arquitectura»[24]. Para Benedikt, a «arquitectura» seria uma das bases do ciberespaço que, por seu turno, a está a transformar profundamente. É interessante verificar como em 10 anos a arquitectura, mesmo a «liquid architecture» que trabalha a fluidez (Novak)  ou a «forma animada» (Greg Lynn), está a ser substituída pelo design, ou a transformar-se em design[25]. Mais ainda, que a questão que agora se põe, sendo a do design, é mais a de desenhar o «real» do que simplesmente tornar habitável o «virtual». Como se o «real» tivesse adquirido a plasticidade do virtual. À medida que tudo se torna em interface a linha divisória que interfaciava o real com aquilo que (ainda) não era, funde-se cada vez mais com a técnica e é apresentável apenas esteticamente[26].

Um pouco por todo o lado começa a imperar o princípio de que «tudo é design, o design é tudo», dando consistência a afirmação de Vilém Flusser de que «Everything depends on Design»[27]. O designer americano Paul Rand fala mesmo de um «dilúvio de design»[28], que se expressa em logos e brandings de todo o género, pela moda do projecto, em objectos stylish, etc. Tudo isto é sintoma de uma mutação mais vasta. Basta constatar a pressão para o design genético[29], quer de animais quer de humanos, as novas próteses e implantes tecnológicos que penetram, rodeiam e mobilizam os corpos, os novos robots, o design ambiental e ecológico, para se intuir imediatamente que sob o glamour do design algo de mais radical está em curso. Ainda recentemente Hal Foster procurou dar uma explicação para este facto, considerando que se instalou uma nova «political economy of design»[30], que teria origem numa mudança nos objectos, que deixam de ser produzidos em massa, dotados de poder de atracção, para que Marx chamara já a atenção, para incluir crescentemente os compradores no seu âmbito; não menos é importante é o facto dos produtos tenderem a desaparecer, transformando-se em «imagem», sendo muitas vezes a imagem todo o produto que existe. Foster destaca ainda a incessante mediatização e digitalização da economia, em que tudo é infinitamente reciclado e hibridizado. Nesta nova economia a monetarização é crescentemente mediada pelo design. Vilém Flusser chamou a atenção para este aspecto. Como ele diz, se aceitarmos que o «valor» de um objecto era baseado no trabalho que continha e no material de que era feito, à medida que os materiais embaratecem e o trabalho se automatiza então apenas o «design confere valor»[31]. A ideia de uma nova economia generalizada, onde a imagem ou o design têm um papel crucial é, de facto, pertinente. Bem vistas as coisas não estamos muito longe das ideias de Debord sobre a sociedade do espectáculo[32], cujo modelo oculto era o cinema, como agora é o design. Sendo isto verdade, nem por isso é menos evidente que a transformação dos materiais, e dos processos de produção, se deve basicamente a alterações induzidas pela técnica no momento em que assume a forma do design.

Esta crítica é eminentemente política. Por razões essenciais luta-se em torno do design, o combate actual passa pelo design, e contra ele. É certo que, pelo menos desde o século XIX, o design aparece em conflito com a «vida» e os objecto que a povoavam, nomeadamente com William Morris. Com o vanguardismo esta tendência para «corrigir» torna-se quase absoluta. A Bauhaus é disto mesmo um bom exemplo, procurando organizar o mundo como uma espécie de obra de arte total. Em Julho de 1919 Gropius profere o seu primeiro discurso à Bauhaus: «A arte deve finalmente encontrar a sua expressão cristalina, numa obra de arte magnífica e completa. E esta obra de arte magnífica e completa, esta catedral do futuro, brilhará então com a sua abundância de luz, contra os pequenos objectos da vida quotidiana». De certo modo, o design procura purificar as formas tradicionais, inventar outras novas, mais adequadas ao mundo urbano, mas o imaginário do design parece ao mesmo tempo exigir uma transformação do mundo adequado aos «novos» objectos. Esta permanente telescopagem que vai do mais pequeno objecto à própria forma do mundo e vice-versa, é bem sintomática de uma guerra estética promovida pelo design vanguardista. Jan Tschichold, o proponente da «nova tipografia»[33], e que esteve próximo da Bauhaus até 1933, fará mesmo do design o critério excelência, afirmando que a "insistência em determinados estilos de tipo e design, foi intrinsecamente Fascista”.[34].. Tschichold virava-se contra a maneira como os nazis procuraram impor ao gótico, a que ele opunha uma purificação das linhas. Mais radicalmente parece intuir que existe uma qualidade política no traçar da linha e na própria linha, que nos abre interessantes perspectivas contra as tentativas de fazer do design um critério absoluto. Não por acaso Tschichold acabou por se voltar contra a Bauhaus, operando uma revisão que detectava na aparente plasticidade da nova tipografia, onde o arbitrário parecia dominar, uma outra vontade de absoluto. Da plasticidade do design à plasticidade da experiência mediava um passo, que não deixará de ser dado.

Desde a Bauhaus que está em curso um alargamento do âmbito do design, que começa por ser imaginário, até se tornar na imagem especular do contemporâneo[35]. Mas uma coisa é o alargamento do design de modo a abranger, simultaneamente, os objectos e o próprio mundo, outra é a sua «fusão» com os aparatos técnico-económicos que o inscrevem imediatamente na existência, e na própria vida. Para além do imaginário estético, estava implícita no design uma tendência para um envolvimento total da existência. A pressão do design para transcender o seu estatuto prático, a crescente sublimidade com que é definido, ou indefinido, está presente em todos os grandes designers. É o caso de George Nelson, que repetiu incansavelmente a ideia de que é o design o que constrói o mundo, não se confundindo nem com os objectos nem com os designers. Para Nelson é erróneo confundir «o termo design com as actividades de um grupo de profissionais cada vez mais limitado, tais como os designers gráficos, de interiores e de produto.» Com efeito, em cada um dos objectos está em causa a mesma linha de envolvimento do mundo, e que ela própria está em movimento: «The one absolutely irrefutable thing that can be said about design is that it evolves».. Os materiais, as formas, as grelhas, as mesas de design, mais não fazem do que dissimular essa linha em constante movimento, que se oculta nos materiais e objectos, essa espécie de «cristal» de linha. Daí a necessidade de dissolver os objectos, que de nenhum modo esgotam a linha do design, e cuja permanência é antitética da dos processo de monetarização, que exigem a rápida obsolescência de todos os objectos[36].. De facto, a linha do design na sua máxima pureza encontra um obstáculo na rigidez dos objectos formatados. A posição de Nelson é sintomaticamente paradoxal. Sendo um designer a quem se devem alguns dos objectos mais sintomáticos do século XX, o seu gesto essencial é o de libertar o design da sua cristalização objectal. Como sintetiza Stanley Abercombie, ele é «um arquitecto que advogava o fim da arquitectura, um desenhador de mobiliário que imaginava quartos sem mobília, um desenhador urbano que contemplava a cidade oculta, um desenhador industrial que questionava o futuro do objecto e odiava a obsessão com os produtos»[37]. Em Nelson está bem presente uma tensão que perturba intensamente todos os designers, levando Abercombie a sustentar, com razão, que mais do que desenhar objectos ele visava acima de tudo o “design of design” (sic). Que melhor definição para a linha geral do design, enquanto interfaciação do mundo, do que esta?

Seria possível considerar que o devir do design para o «design do design» corresponde à vitória da Gesammtkunstwerk que os pós-românticos foram buscar a Wagner, na sua vontade de fazer do mundo uma obra de arte total. Mas entre Gropius e o design actual existe uma diferença de natureza, já que o design tende a entrançar-se com a técnica. Com efeito, nunca a técnica se dá a dar a ver a não ser em certos dispositivos, aparecendo sempre sob uma forma qualquer. No século XIX como «produção» (Marx), depois como «reprodução» (Benjamin) e agora como design.. O design é a forma actual da técnica. Mais do que um instrumento ou uma forma de controlo, sem deixar de ser também isso, a técnica dá-se a ver como design[38].. Dito de outro modo, o design apresenta a técnica diferidamente, ao mesmo tempo que a propulsa e realiza, modelando pela sua linha os elementos mais ínfimos do mundo. A agregação de tais minimalidades que proliferam por todo o lado é feita noutro nível, que não o do design, através da matriz de ligações suportadas tecnicamente que constitui o ciberespaço, que tem de ser interfaciado pelo próprio design. Círculo perfeito, cuja magia tem de ser quebrada.

O alargamento mais radical do design passa mais pela computação do que pelo imaginário. Não é por acaso que um dos principais teóricos da computação, Herbert Simon, tenha proposto uma «ciência do design»[39], capaz de ultrapassar o subjectivismo que caracteriza o design romântico[40]. De facto, o computador é um bom paradigma para a dinâmica do design. Daí que na sua proposta ele privilegie processos que foram incorporados em “programas de computador activos: optimizando algoritmos, processos de busca e programas com fins específicos para o design de motores, estabilização de linhas de montagem, seleccionando carteiras de investimento, localizando armazéns, desenhando auto-estradas, diagnosticando e tratando doenças, etc.[41]. Nesta perspectiva o design torna-se basicamente processual, decompondo analiticamente todos os processos nos seus elementos mais ínfimos, de modo a poder ser formalizável. E antes de fazer isto aos processos mundanos é preciso fazê-lo ao próprio processo de design. Se os aspectos estéticos e subjectivos são minimizados é porque se trata de libertar a linha do design - uma linha associativa pura, que sobre-determina os objectos por ela produzidos ou agenciados. A pressão para um design total baseia-se na libertação do design relativamente aos objectos. Trata-se de desenhar experiências mais do que objectos. O designer Bruce Mau afirma-o com clareza: «O processo é mais importante do que o resultado. Quando é o resultado a conduzir o processo, acabamos apenas por ir sempre onde já fomos. Se for o processo a conduzir o resultado, podemos não saber para onde vamos, mas sabemos que é para aí que queremos ir»[42]. É certo que existe uma certa contingência nos processos de design, parecendo impedir um controlo de todos os aspectos que agencia e que o agenciam. Victor Margolin extrema esta questão da contingência, sustentando que «é paradoxal falar sobre a indeterminação do design e depois enquadrá-lo numa determinada situação de prática. Se os designers vão realizar o potencial completo do pensamento do design, então este pensamento tem de ser estendido de forma a considerar como são desenhadas as próprias situações em que o design ocorre»[43]. Dada a dinâmica do design parece claro que nem a contingência «social» nem aquela que o afecta a si próprio, consegue inviabilizá-lo ou matizá-lo. Na medida em que o design processual é forçado a reduzir a contingência para se tornar eficaz e se realizar praticamente, tenderá a alargar indefinidamente o seu âmbito de acção. O desenho de situações complexas implica uma formalização, basicamente matemática e digital, que tende a estender a matriz do ciberespaço sobre toda a experiência. Aliás, não era este o efeito inevitável da noção de «feedback» da cibernética, que ia branqueando a caixa negra à medida que os efeitos sistemáticos permitiam formalizar o que escapava ao «sistema» no qual eram retrojectados? A própria imagem de «sistema» não implica essa ordem, coerência e racionalidade? À medida que os computadores se foram ligando em rede e permitiram desenhar sistemas interactivos, este processo tornou-se imparável. É isso que faz com que a matriz cresça[44].

A tendência que acabámos de descrever tem de ser vista como uma trajectória em direcção ao total design, para usarmos uma formulação de Mark Wigley[45]. No quadro deste design total, não há oposição entre produto e processo, entre particular e global, que se intercambiam à medida que aumenta a velocidade dos procedimentos técnicos. Deste ponto de vista, a distinção proposta por Wigley entre «implosive design» e «explosive design», por iluminante que seja, está longe de ser pertinente. Com algum esforço é possível distinguir o modelo implosivo, basicamente «teatral», e que é influenciado pelo wagnerianismo, determina cada pormenor, cada objecto ou imagem, de modo a «criar ambientes com uma densidade extraordinária de efeito sensual» e que busca o controlo total desse espaço «sujeitando cada detalhe, cada superfície, a uma visão abrangente. O arquitecto supervisiona, senão efectua o design de tudo : estrutura, mobiliário, papel de parede, tapetes, maçanetas de portas, acessórios de iluminação, louças, roupas e arranjos florais. O resultado é um espaço sem lacunas, sem quebras, sem aberturas para outras possibilidades, outros mundos. O paradigma desta abordagem é o interior doméstico completamente destacado do pluralismo caótico do mundo»[46]. Contrariamente a estes espaços protegidos e controlados, o «design explosivo» visa todo o espaço, e tudo o que nele existe ou possa vir a existir. De acordo com Wigley este é o modelo da Harvard Graduate School of Design, «no qual o arquitecto está autorizado a desenhar tudo, desde a colher de chá à cidade. Entende-se que a arquitectura está em todo o lado. …Nos dias que correm, a colher de chá não parece suficientemente pequena e a cidade não parece suficientemente grande»[47]. Mas do ponto de vista do total design estas diferenças não são significativas, como aliás o próprio reconhece.

Que o design se focalize num ponto, ou se dissemine absolutamente, é sempre o mesmo processo que está em causa. Contrariamente ao que pensa Wigley, não se trata de «ilusões de controlo» que têm de ser desconstruídas, nem de projecções esteticistas da «obra de arte total». Está mais em causa a construção do mundo, a vontade tectónica de uma segurança perfeita, do que a «desconstrução» de concepções tendencialmente absolutas[48]. Está mais em causa a linha de envolvimento do mundo pelo design, que absorvendo o tectónico o põe à disposição da técnica, do que as imagens com que se reveste. É pelo design de todos os pormenores, esteticamente orientado, que é propulsada e se desdobra a linha que o sustende, e é propulsada pela técnica, e não pela «vontade» dos arquitectos ou dos designers[49].. Quanto muito as suas visões ou imagens são aceleradores «eidéticos» da mobilização total do mundo, mas o motor não está, como é evidente, no «design», mas no fluxo informacional produzidos nas redes técnicas.

A linha envolvente do design pode ser imaginada como um colar de contas formado por todos os objectos existentes ou ainda não, que em vez de estarem enfiados nela, a objectivizam neles. Em última instância, só se pode tornar efectiva através de um trabalho sobre as ligações. Também neste ponto Gropius foi profético, defendendo que «só pode ser atingida uma unidade real pela reformulação coerente do tema formal, através da repetição das suas propriedades integrais em todas as partes do todo»[50]. Partindo da variação wagneriana do «tema» ou da ideia, as ligações desenvolvem-se serialmente, criando um espaço formal que se inscreve sobre o mundo, e o reduplica. A arquitectura total corresponderia, assim, à tradução serial de todos os elementos do mundo. Mas é possível pensar o design enquanto trabalho sobre as ligações fora deste esquema rígido, das variações seriais, criando redes muito mais plásticas e quase-orgânicas[51].

Numa entrevista conduzida por M. Kroeger, o designer americano Paul Rand, sustenta, quase axiomaticamente, que «o design são as relações».Explicitando melhor a sua tese, Rand prossegue: «No momento em que se concebe algo, está-se a criar uma relação»[52]. A experiência mais não é do que um entramado de ligações, mais ou menos cristalizadas, mais ou menos visíveis. A criação de novas ligações, a não ser que sejam puramente «imateriais», implica desalojar, alterar ou redesenhar ligações existentes. Se o mínimo acto de design produz «relações» novas, ocultas na excessiva opacidade dos objectos, mas que estão lá, percebe-se a potência de cada acto particular do design quando fundido com a técnica que garante a sua efectualidade. O efeito inevitável é o aumento das ligações técnicas, a extensão da matriz e das grelhas por toda a experiência histórica. Cada vez mais entramos e saímos de redes, que se tornaram explícitas, contrariamente às da metafísica, que estavam rodeados de uma imensa zona de sombra. Que nem a poesia ou a pintura conseguiam reduzir. Ao invés, alimentavam-se dela. No caso do design isso é evidente pois a rede de relações está inteiramente visível. Daí a sensação de que existe um certo aprisionamento, algo forçado, de que seria impossível sair. Paul Rand refere com interesse que «a questão não está em sair da grelha. A questão está em ficar lá e fazer tudo certo. A razão pela qual as pessoas querem sair, é porque não sabem o que estão a fazer quando estão lá dentro». Esta posição parece ser a única coerente quando a matriz se cristaliza tecnicamente, canalizando todo o género de fluxos e de forças. Trata-se de intervir na rede de ligações. Mas para isso é preciso ter a convicção de que «a ideia de grelha é a de que lhe dá um sistema de ordem e ainda, muita variedade, cabendo-lhe a si decidir quando quer trocar … a grelha nunca muda, é sempre o interior que muda, e é isso que faz com que as coisas ganhem vida ». Se pensarmos na tese de Tschichold na qualidade política da linha, podemos detectar interessantes virtualidades na posição de Rand. Mas não se deve excluir a possibilidade que este tipo de variações apenas prolonguem a rede, até ela se tornar totalmente automática e absolutamente envolvente. O filme Matrix dos irmãos Wachofski explora até mais não esta possibilidade. A atitude de Rand só se sustenta pela ideia de que o «novo» é uma nova combinação ou um novo lance, de que só é novo por se ter realizado de entre da multiplicidade de possibilidades disponíveis na «grid», tal como na «biblioteca de Babel» de Borges já estavam todos os livros, os escritos e os não escritos. O critério essencial seria o de estarem realizados ou não.

O critério da efectuação, que tão importante é para a concepção corrente do virtual, é claramente insuficiente. Como afirma William Mitchell: «Neste contexto tecnológico, os esforços para manter as distinções tradicionais entre as representações do design e as realizações, apenas confundem a questão. É mais útil dizer que o ficheiro digital é a expressão definitiva do design, e que as capacidades do software e hardware disponíveis, fornecem muitas maneiras diferentes de executar esse design»[53]. A realização ou actualização está já inteiramente determinada pelo dispositivo técnico de que o design é a face visível. Numa circularidade quase perfeita, e que seguramente se irá incrementando, a efectuação é um momento do design e o design é um momento da efectuação, sendo ambos mediados tecnicamente. Isto já é verdade para uma série de objectos «digitais», se-lo-à ainda mais quando a própria realização seja incluída no mesmo procedimento técnico. Este processo equivale à culminação da «razão tipográfica», baseada na impressão de tipos móveis e flexíveis sobre um suporte. Na sua máxima generalidade tudo poderia servir de tipo e tudo poderia constituir um suporte. Trata-se de inscrever a forma directamente sobre a matéria, sem qualquer mediação. Neste contexto é sugestiva a hipótese de William Mitchell de uma generalização das tecnologias do rapid-prototyping e de CAD/CAM, desenvolvidas nas indústrias de moldes, nomeadamente a automóvel, e que Frank Gehry utilizou na construção do Museu Gugenheim de Bilbao. Como diz Mitchell: «O futuro do processo de design e construção irá de modo crescente ser a composição de guiões digitais e depois a produção a partir de uma ampla variedade de performances mecanizadas – gráficas, materiais e outras. As performances iniciais – do tipo que pensamos como visualizações e simulações – serão na sua maioria rápidas e pouco onerosas, e servirão para revelar os potenciais intrínsecos de um guião. Mais tarde, as performances serão mais caras e duradouras e permanecerão connosco como trabalho realizado». Deste modo, design e produção são uma e a mesma coisa, o efeito do mesmo «digital-script», cuja linha se desdobra agora em 3D. A prioridade do design sobre a arquitectura deve-se ao facto de que o tectónico foi absorvido pelo design. A construção é um momento do design. Mas este processo só é possível pela maneira como o design e as tecnologias digitais se reflectem especularmente, como se fossem duas faces da mesma moeda.

A efectuação deixa de ser o critério essencial, tornando-se antes num problema, pois o «construído», o «edificado», pela sua materialidade, opõem uma resistência ou uma inércia, que torna é difícil fazê-los desaparecer. Este é um dos limites do capitalismo. Depois dos objectos desaparecerem como mercadorias ainda ficavam como «lixo» ou «restos», dificilmente destrutíveis. Percebe-se melhor de que maneira a linha do design tende a determinar a interfacialidade. Se os objectos virtuais são facilmente substituíveis, dada a sua imensa plasticidade, já o mesmo não ocorria no mundo da vida, «analógico». A condição absoluta para que a virtualização ocorra é, então, menos o aumento do ciberespaço, como espaço de objectos virtuais, do que a determinação «ciberespacial» do espaço da vida. Mas isso implica uma reversibilidade total entre matéria e forma, entre átomos e bits, que está longe de ser possível. Mesmo nos casos do rapid-prototyping existe uma distância que é difícil de abolir, um desdobrar do processo no tempo. Como disse algures William Burroughs «Controll needs time», embora no caso limite tudo se resuma em aboli-lo.

O devir «imagem» do real corresponde a uma fase essencial deste processo, pois antecipa a plasticidade absoluta da matéria, implícita na curto-circuitagem da efectuação pelo design.. Se a rigidez tem de ser abolida para se criar uma plasticidade absoluta que tudo põe à disposição dos processos de formatação e reformatação, a imagem é um momento essencial da técnica contemporânea[54].. Muito depende, para o bem e para o mal, da maneira como a plasticidade se irá impor. Em última instância, não é pensável o design total sem essa plasticidade, que determina, simultaneamente, o real e o virtual. Em obra recente, Catherine Malabou tem procurado descrever a contemporaneidade a partir deste conceito, que faz remontar a Hegel[55]. Diz ela sobre a plasticidade: «…A plasticidade designa tecnicamente, a capacidade que um sistema tem de aceitar e integrar as alterações sobrevindas do exterior (incluindo os acidentes, os ferimentos, as lesões, é o caso do cérebro) reformando um novo equilíbrio»[56].  Não por acaso esta noção aplica-se um pouco por todo o lado, às artes, à neurobiologia, aos computadores moleculares. Mas é importante que se aplique aos próprios processos, pois como reconhece «" plástico" significando a susceptibilidade de receber como de dar a forma, qualificando o suporte da impressão do mesmo modo que o acto de imprimir».Trata-se simultaneamente de plasticidade da matéria e de plasticidade dos processos, capazes de absorver toda a exterioridade. Contrariamente ao discurso contemporâneo do informe e do caótico, à ideologia do híbrido, que mais não é do que a miragem de imagens sem força e facilmente misturáveis, a plasticidade implica uma prioridade da forma. É ela que serve de interface a tudo. Ora, se aceitarmos a hipótese de que o design é a forma da técnica, será ao mesmo tempo o especulum em que o actual se reflecte. A interface torna-se indistinta da linha do design.

A interpretação de Malabou, que se pretende materialista, explicita bem o problema, mas sem grande distanciação relativamente ao design total, que Hal Foster descreve como «economia política do design». Daí a enorme ambiguidade da sua crítica à tendência contemporânea para «um conceito de forma de qualquer género, desmaterializada»[57]. Aceitando-se a natureza primordial da plasticidade que caracteriza a pós-história, abre-se um espaço de intervenção que é precioso, e que passaria, diz ainda Malabou, por um recentramento sobre «a cadeira da forma»[58].. Mas para isso seria preciso pressupor que a matéria «resiste» à forma, e que «é plástica, o que mantém a forma, como o mármore da estátua, o que cede à forma ao resistir à deformação»[59]. A metáfora atraiçoa-a no mesmo momento que a ela recorre. De facto, a oposição clássica entre pedra e estátua já não funciona, pois o que está em causa é a pouca resistência da matéria à excessiva volubilidade do design. O conceito de forma não permite proteger a «carne» das coisas, carne essa que, como nos corpos, se está a tornar em mais uma imagem, perdida entre inúmeras outras. A própria oposição entre forma e substância é demasiado datada. À história das formas segue-se a da formatação, tal como à história da matéria se segue a da energização da matéria. E a oposição entre forma e matéria, como todas as oposições regidas pela tipografia ocidental, é o último avatar de uma estrutura de controlo, que tende a disseminar-se, mediada pelo mais ínfimo objecto, imagem ou acto. O objecto mais anódino que resulta do traçar do design prolonga o trabalho dessa linha, envolvendo quem dele se aproxima, numa espécie de invisível rede de Hefesto. Esta invisibilização da linha no próprio instante em que o design está absolutamente presente, revela que o design é a ilusão contemporânea de que temos um controle sobre a técnica.

Em suma, o design constitui a estrutura especular que rege o contemporâneo. A crítica da economia política do design tem por campo a totalidade da existência. Sanford Kwinter sintetiza bem a situação: «Se a vida é um “modelo no tempo” e o design é a prática da impressão de modelos nas coisas, é razoável pensar que a maior ambição do design seria ter como alvo as formas da própria vida. Mas isto não serviria de nada, se apenas abríssemos a porta a novas e crescentemente sofisticadas técnicas, de engenharia humana e social. Pelo contrário, dar “estilo” à vida é libertar a vida da rotina, colocá-la em síncopes, de forma a que ela possa encontrar novos modelos de abertura inteiramente inesperados»[60]. Alternativa clara, mas que não tem de ser necessariamente esta, determinada como está pelo exceder da vida pela linha do design. Foi este imaginário que, justamente, procurámos exorcizar. Trata-se de explorar todas as fissuras, ambiguidades e hesitações da linha proliferante do design, que enquanto arte não pode deixar de as conter[61]. Numa obra original, num estilo inesperado, está em presente uma tensão que tem de ser libertada contra a linha geral da época, sem quaisquer garantias que não seja de imediato absorvida, pois a aceleração electrónica tenderá a abolir esta distância e todas as outras. Trata-se de alargá-las, de contrariar esse movimento e de torná-lo contraditório, o que só pode ser feito desde o espaço da arte onde o impossível se torna visível e ganha corpo.

 

[1]> - Não por acaso, os «demónios» vêm sempre no plural enquanto Deus vem no singular. Tratando-se este último de uma imagem que é mais do que imagem, as imagens por natureza são proliferantes e incontroláveis. Eis porque já o nosso Vieira dizia que o «espelho é um diabo mudo» ou que Jorge Luís Borges possa afirmar que «los espejos y la cópula son abominables, porque multiplican el número de los entes». É o espelho mais do que a multiplicidade que é inquietante.

[2] - Um automatismo perfeito, que excluísse os humanos, ou que os dispensasse, ou mesmo que os integrasse absolutamente, confundir-se-ia com o «cosmos», a verdadeira máquina universal. Esta seria uma outra história, que já não nos deverá interessar.

[3] Cf. «After the absolutism of realty» in Hans Blumenberg (1979), Work on Myth, Mass., MIT Press, 1985, pp. 2-34.

[4] - Friedrich Nietzsche (1888), Le Crépuscule des Idoles, Oeuvres II, Paris, Robert Laffont, 1993, p. 968.

[5] - Na medida em que a aceleração, dentro de certos limites, mantém a estrutura, torna-se pensável uma continuidade entre o espaço teológico e o ciberespaço. É isso que dá alguma plausibilidade a afirmação de Martha Wertheim segundo a qual «as The Divine Comedy demonstrates so well, the creation of virtual worlds pre-dates the development of contemporary "virtual reality" technology. From Homer to Asimov one of the functions of all great literature has indeed been to invoke believable "other" worlds». Cf. Margaret Wertheim (2000), The Pearly Gates of Cyberspace: A History of Space from Dante to the Internet, New York, W.W. Norton, p. 37.

[6] - A filosofia do século XX procurou obsessivamente forjar conceitos capazes de dar conta desta mutação. É o caso do inzwischen de Heidegger, do in-between de Arendt, da différance de Derrida, ou do «entre» de Fernando Pessoa. A interface é a face mais visível, técnica e filosoficamente, desta natureza intermediária.

[7] - Dada a omnipresença dos objectos técnicos explica-se que boa parte das novas categorias sejam um decalque de procedimentos tecnológicos, como é o caso de «multimédia», de «interactividade», de «hipertextualidade», etc..

[8] Cf. Bruce Mau (2000), «Getting Engaged: the Global image Economy» in (2000): Life Stile, London, Phaidon, 2ed, 2002, p.41.

[9] - Mas que só é possível porque a cultura é intrinsecamente artificial, e mesmo a divisão natureza/cultura é um artifício cultural. Na linguagem está já virtualmente presente toda a tecnologia, pois ela contém a escrita, e esta a tipografia e a máquina de escrever, e estas últimas o computador, etc..

[10] - Dada a centralidade do computador não admira que a genealogia dos média contemporâneos tenda a reelaborar a história da técnica retroactivamente, do computador para trás e não da escrita para diante, como era habitual. Bom exemplo desta estratégia é o livro de Siegfried Zielonski (2002), Archälogie der Medien: Zur Tiefenzeit der technischen Hörens und Sehens, Hamburg, Rowohlt.

[11] - Walter Benjamin (1936), «L’Oeuvre d’art à l’ère de sa reproductibilité téchnique» in l’Homme, le Langage et la Culture, Paris, Denoel/Gonthier, 1971, p. 143.

[12] - Sobre a importância desta estrutura no pensamento de Platão, cf. «Platon et le Simulacre» in Gilles Deleuze (1969), Logique du Sens, Paris, Minuit. O livro de referência sobre a «cópia» ainda é o de Hillel Schwartz: The Culture of the Copy. Striking Likeness, Unreasonable Facsimiles, New York, Zone Books, 1996.

[13] - Friedrich Nietzche (1886), Par de lá le Bien et le Mal, Oeuvres II, op. ult. cit., parágrafo 59.

[14] - Friedrich Nietzche (1888), Nietzsche contra Wagner, Oeuvres II, op. Cit., p.1227.

[15] Cf. Bruce Mau (2000), «Getting Engaged: the Global image Economy» in Life Style, op. ult. cit., p.41.

[16] - Cf. Steven Johnson, Interface Culture: How New Technology Transforms the Way We Create and Communicate, NY, Basic Books, 2ed, 1999.

[17] - Para Johnson a interface é "a kind of art form -- perhaps the art form of the next century". Como ele está consciente da pressão para a criação de interfaces «user friendly» e facilmente reconhecíveis, defende a necessidade de uma «vanguarda digital» para impedir a sua determinação comercial e utilitária. Assim, numa entrevista Johnson afirma que «an interface avant-garde will probably have to announce itself by deliberately concocting difficult interfaces, "memory palaces” that cause you to lose your bearings» (Cf. Harvey Blume, «A medium in embryo, An E-Mail Exchange with Steven Johnson» in The Atlantic on-line, October 9, 1997 (http://www.theatlantic.com/unbound/digicult/johnson.htm). Esta proposta tem interesse, mas tudo indica que estamos a viver numa espécie de darwinismo das imagens que fará desaparecer os «unfriendly interfaces» e, mais ainda, que os interfaces do novo design irão promover uma interfacialização geral da experiência, dissimulando-se inteiramente. Isso que não obsta ao facto de que pertubar o reconhecimento fácil não corresponda a uma necessidade estratégica, sendo já mais duvidoso que baste passar pela repetição do vanguardismo.

[18] - Na noção de interfacialidade ecoa algo do interfacing proposto por Mark Taylor para o mundo das redes e das redes. Cf. «Interfacing» in Mark Taylor (1997), Hiding, Chicado, The University of Chicago Press, pp. 263ss. De acordo com ele «to err amidst shifty interfaces that know no end is to live an irreducible enigma: nothing is hiding». Nesta versão pós-moderna da errância Taylor considera que o interfacing se coloca para além da metafísica, o que se afigura pouco aceitável, pois, pelo menos do ponto de vista técnico, depende inteiramente dela.

[19] - A ubiquitous computing corresponde a um influente programa apresentado em 1991 por Mark Weiser. Cf. «The computer for the 21st century» in Scientific American, 265(3), 94-104. Para que a interface desapareça, tornando-se absolutamente «friendly», é preciso que o computador desapareça também, ou que seja dissimulado tanto quanto possível. William Buxton da Universidde de Toronto defende que «the most important thing today is to make the computer disappear. … I want to have as many different kinds of terminals as water appliances everywhere in the house, to develop that kind of network» in «Telepresence as a Design Philosophy. An Interview with William Buxton», Interviewer: MORIYAMA Kazumichi [ICC Review ]. Na realidade os chips começam a migrar por toda a experiência, que, deste ponto de vista, pode ser vista como um gigantestco «hiper-computador». Nesta hipótese o computador é invisível porque ao mudar de escala se tornou inapreensível enquanto máquina.

[20] - A pervasive computing que, em muitos aspectos se assemelha à computação ubíqua, assume um papel cada mais primordial, dado que explora a crescente importância dos telemóveis e das tecnologias sem fios, tendo como objectivo uma rede permanentemente ligada e omni-direccionada. Esta ligação permanente e invisível, que tudo permite retraçar, coloca problemas políticos essenciais, pois como refere Sean Russel: «Both government and citizens want pervasive computing; the difference is that citizens want to be able to turn it off... Pay attention and make your voice heard on these issues now. Otherwise, in the end you may find that there is no "off" switch».. Cf. Sean Russell, «Pervasive Computing - Where's the Off Switch?»

(http://www.newsfactor.com/perl/story/16475.html#story-start).

[21] - Chris Dede da Universidade da Harvard distingue 3 tipos de interfaces: «The first is the notion of bringing "the world to the desktop." Broadband and collaboration technologies are becoming much more powerful, enabling increased interaction with distant experts and archives. Associated capabilities are speech recognition, telepresence, and teleoperation technologies. In contrast, the second interface is ubiquitous computing via wearable wireless devices. The metaphor is not sitting somewhere and having the technology bring things to you, but instead being able to wander through the world doing whatever things you do in the real world, with the virtual world superimposed through "smart objects" and "intelligent contexts." And the third interface is the user being inside a virtual context, such as shared graphical environments like those in the multi-user Internet games Everquest or Asheron's Call». Cf. «Interactive Media in Education: An Interview with Chris Dede» in Syllabus, 6/1/2002 (http://www.syllabus.com/article.asp?id=6388). Para Dede tratam-se de interfaces complementares, cada um deles obrindo uma parte do espectro tecnológico, no computador, no mundo e na percepção, mas de facto são variações de uma mesma noção técnica de «interfacialidade».

[22] - Trata-se de uma metáfora, evidentemente, que valeria a pena desenvolver para tornar mais intuitiva a «topologia» das interfaces técnicas. A banda de Moebius é uma figura topológica que resulta da torção de um rectângulo, criando-se uma banda contínua, sem verso nem reverso – com uma única superfície, portanto -, mas que localmente, em cada ponto, tem duas faces. É sugestivo pensar que do rectângulo cartesiano possam advir tais consequências topológicas, permitindo pensar alguns fenómenos limite da técnica. É sabido que Lacan metaforicizou selvaticamenet este tipo de paradoxos topológicos. Cf., por exemplo, Jeanne Granon-Lafont (1986), La Topologie de Jacques Lacan, Paris, Seuil, Seuil/Points.

[23] - Falando do cinema diz Walter Benjamin: «Evidently a different nature opens itself to the camera than opens to the naked eye--if only because an unconsciously penetrated space is substituted for a space consciously explored by man. … The act of reaching for a lighter or a spoon is familiar routine, yet we hardly know what really goes on between hand and metal, not to mention how this fluctuates with our moods. Here the camera intervenes with the resources of its lowerings and liftings, its interruptions and isolations, its extensions and accelerations, its enlargements and reductions. The camera introduces us to unconscious optics as does psychoanalysis to unconscious impulses» (Op. ult. cit., pp. 171-172). A interface perfeita desaparece enquanto tal, tendendo a fundir-se com o existente, dando-lhe uma ilusória profundidade. Sendo assim o poder de fissão pressuposto por Benjamin desaparece, ou é um efeito do própio dispositivo, um pouco como sucede em Existenz de Cronenberg, onde a distinção entre dentro e fora, entre real e jogo, faz parte do próprio jogo. A realidade virtual constitui um bom exemplo deste fenómeno.

[24] - Michael Benedikt (1991), Cyberspace: First Steps, Mass., MIT Press , p. 23.

[25] - O que implica uma mutação nas relações entre arquitectura e design. Um pouco ingenuamente os autores de Digital Design, consideram que a revolução computacional, que alterou profundamente o design, também alterou o seu posicionamento: «It is not by chance that the designer of today is much more important and visible figure than onc upon a time. The tendency once was to diminish the designer with respect to the architect, who was considered more decisive and incisive from both artistic and professional points of view». Cf. Paolo Martegani & Riccardo Montenegro (2001), Digital Design, Basel, Birkhäuser, p. 6.

[26] - Frederick Kiesler propôs o desenvolvimento da «biotécnica» que envolve, simultaneamente, a sensibilidade estética e a técnica, no mesmo projecto de design (ele fala de arquitectura mas como quase nenhum dos seus projectos foi realizado pode falar-se mais propriamente de design). O conceito essencial desta biotécnica é o de «continuidade» que deriva de um certo trabalho de ligação a que que Kiesler chama «correalism». A continuidade baseia-se numa fusão entre a energia ou força vital e uma dada forma que reúne o disperso e desagregado num todo perfeito, numa «living plastic reality», como afirma Lisa Philips, uma especialista na obra de Kiesler. À luz do nosso argumento, tal «síntese» absoluta operaria uam convergência total entre estética e técnica, determinando inteiramente as formas da sensibildidade. Num vanguardista como Kiesler este resultado é paradoxal, mas é certo que no seu programa existem elementos de abertura que são pertinentes, como é o caso da sua insistência na «infinitude» ou «inacabamento», patente nos projectos «Endless Theater», «Endless House» ou de «Endless Sculpture». Alguma hesitação neste processo provém da sobredeterminação estética desse espaço total, que tende a sobrepor-se à técnica, criando assim uma interessante tensão. Sobre esta questão, cf. Marc Dessauce (1996), Machinations. Essai sur Frederick Kiesler, l’Histoire de l’Architecture Moderne aux États-Unis et Marcel Duchamp, Paris, Sens & Tonka.

[27] - Vilém Flusser,The Shape of Things: A Philosophy of Design, Londres, Reaktion Books, 1999, p. 21. Com a ironia que o caracterizava Flusser dirá que, vistos retrospectivamente, os profetas, os teológos e os místicos antigos são os primeiros designers do mundo humano, o que implica em contragolpe que os designers actuais compartilham desse poder de criação ex nihil próprio da teologia. Assim o designer computacional «in Mespotamia, he was called a prophet. He is more deserving of the name of God. But thanks God he is unware of this and sees himself as a technician or artist. May God perserve him in this belief» (op. cit., p. 42).

[28] - Cf. Paul Rand, «Confusion and Chaos:The Seduction of Contemporary Design» in AIGA Journal of Graphic Design, Volume 10, Number 1, 1992. À semelhança de Hal Foster, Rand critica a crescente tendência para o subjectivismo, a monomania do «estilo» e a vontade de expressão pessoal que caracteriza boa parte do design contemporâneo.

[29] - O debate sobre a genética toca num limiar último do humano . Basta pensar o escândalo provocado pela conferência de Peter Sloterdijk em 1999 sobre o «parque humano», em que o autor sustentando que a a cultura literária tem sido incapaz de impedir a «bestialização» (sic) do homem, entrevê, com alguma ambiguidade, o papel da genética para a «domesnticação do ser humano». À luz do que está a suceder, toda esta polémica acaba pro ser um pouco absurda, pois o corpo e a «psiché» humanas estão a ser crescentemente intervencionadas pela técnica, independentemenet de qualquer decisão ou da falta de um plano reconhecível. É o carácter inconsciente destas intervenções que teria de ser atacado. Cf. Peter Sloterdijk (1999), Règles pour le parc humain : Une lettre en réponse à la Lettre sur l'humanisme de Heidegger, Paris, Mille et Une Nuits, 2000.

[30] - Hal foster (2002), Design and Crime (and Other Diatribes), Verso, New York, p. 22.

[31] - Vilém Flusser, Op. ult. cit., p. 20.

[32] - Para Debord o espectáculo corresponde à fase terminal do capitalismo que passa da mercadoria para uma «imensa acumulação de imagens», culminando com a realização efectiva do «especulativo». A consequência é a passividade generalizada: «Les images qui se sont détachées de chaque aspect de la vie fusionnent dans un cours commun, où l'unité de cette vie ne peut plus être rétablie. La réalité considérée partiellement se déploie dans sa propre unité générale en tant que pseudo-monde à part, objet de la seule contemplation» (Guy Debord, La Société du Spectacle, Paris,. Cap. I, parag. 2.). Esta influente crítica baseava-se no cinema como analogia do espectáculo, mas tudo indica que na contemporaneidade a analogia crítica terá de basear-se no design e não na «imagem».

[33] - Tschichold codifica uma série de experiências tipográficas, nomeadamente de Lissitzki, procurando uma estética que fosse adequada à era das máquinas e anti-decorativa, baseada no despojamento do tipo, criando tipos despojados e geométricos, mas tambem esquemas de paginação assimétricos, integrando no trabalho tipográfico ainda outtros meios, caso da fotografia (Cf. Jan Tschichold (1928), The New Typography, University of California Press, Berkeley. 2ed, 1998). Esta composição assimétrica será o grande contributo do vanguardismo, que assim ataca a separação tradicional da escrita e da imagem, à semelhança do que fez Mallarmé no seu famoso Coup de dès. A influência sobre o hipermédia destas estratégias de composição ou montagem é considerável. Sobre este assunto, cf. Johanna Drucker (1994) -The Visible Word. Experimental Typography and Modern Art, 1909-1923, Chicago, The University of Chicago Press.

[34]- Cit. in Sebastian Carter (1995), Twentieth Century Type Designers, NY, W.W. Norton, p. 127. Tschichold opôs-se decididamente à subida dos nazis ao poder, e depois de um período de prisão, acabou por se exilar na Suiça. Parece paradoxal que tendo criticado a violência simbólica que estava implícita na defesa do tipo gótico e da simetria da página pelos nazis, tenha a partir de 1935 revisto as suas própias posições, integrando nos seus trabalhos as proporções medievais, nomeadamente as da Secção de ouro. Não se perceberia a sua crítica ao vanguardismo tipográfico, que compara ao «delírio» (sic) nazi, quando este último perseguiu violentamente o novo design, a não ser por compartilharem uma mesma atitude relativamente à forma do tipo. Como diz Muriel Paris «ce que reproche surtout Tschichold à la Nouvelle Typographie, c’est d’avoir érigé em modéle un type de pratique spécifique» (in Posfácio a Ian Tschichold, Livre et Typographie, Paris, Alia, 1998, p. 235). Mais do que uma dada forma ou estilo tipográfico, está em causa a absolutização de uma forma particular, mesmo que aparentemente aberta e experimental. Nas palavras do próprio Tschichold «la querelle qui oppose symétrie et asymétrie est oiseuse. Les deux ont leurs territoires et leurs posibilités particulières» (Op. Ult. cit., p.33). Percebe-se que em última instância na tipografia e no design se jogue toda uma atitude política. Como disse Brecht a «atitude» conta e muito.

[35] - Citemos uma frase típica de Walter Gropius: «My idea of the architect as a coordinator - whose business it is to unify the various formal, technical, social and economic problems that arise in connection with building - inevitably led me on step by step from the study of the function of the house to that of the street; from the street to the town; and finally to the still vaster implications of regional and national planning. I believe that the New Architecture is destined to dominate a far more comprehensive sphere than building means today; and that from the investigation of its details we shall advance towards an ever-wider and profounder conception of design as one great cognate whole»(Walter, Gropius (1935), The New Architecture and The Bauhaus, Mass., MIT Press, 1965, p. 27). Diga-se de passagem que nenhum texto teórico, como nenhum autor ou obra realizada – por serem sempre particulares -, podem dar a ver a lógica do dispositivo que está em acto na experiência e que, ao mesmo tempo que a actualiza, se reproduz, se codifica, etc. Por exemplo no caso de Gropius, é o imaginário tectónico que lhe permite descrever imaginariamente uma totalidade que sempre lhe escapa. Quanto muito devemos suspeitar que existe alguma relação entre essa imagem da totalidade e um certo processamento do «real».

[36] - Octávio Paz sustentou que «no objecto industrial näo existe ressurreição; desaparece com a mesma rapidez com que aparece. Se näo deixasse marcas seria realmente perfeito; desgraçadamente tem um corpo e, mal este deixa de servir, transforma-se em desperdício dificilmente destrutível» (Octavio Paz (1979), In/Mediaciones, Barcelona, Seix Barral, p. 23). Esta perfeição é basicamente imposta pelo capitalismo que exige ao mesmo tempo a produção de objectos (mercadorias) e o seu desaparecimento rápido, de modo a que não se estanque o fluxo da monetarização. A solução de embutir obsolescência em todos os objectos decorre inevitavelmente desta necessidade. Na sua forma mais radical anular-se-ia qualquer diferença entre o aparecer e o desaparecer do objecto, que já não deixaria rastos. E aqui entramos já no domínio do «virtual».

[37] - Citado por Angelynn Grant num texto sobre o livro de Stanley Abercrombie (1994), George Nelson: The Design of Modern Design (http://www.angelynngrant.com/reviews.html#nelson). Tudo indica que Nelson não está convencido de que o caminho contra uma certa «poluição visual» passe por um combate objecto a objecto, mas por um investimento generalizado no humano. Assim, num texto de 1973 pode ler-se: "Technology cannot possibly be humanized unless people become human first, which is no mean task when we consider the extent to which the present passive acceptance of mass violence and truly insane brutality has gone....I cannot believe that the creative role for the designer now can be anything other than the production of humane environments. Anything else, given the social context, is anachronistic, inconsequential, egotistical and empty posturing....The human environment is not a slogan: it is a mystery which can only be penetrated by human people» (ib.). É sintomático que numa visita com Ivan Chermayeff a uma escavação ele afirme: «Ivan, did you ever see a new building that looked as good as a hole in the ground?» (cit ib). É sabido que Nelson era defensor de que boa parte da construção urbana ficasse no subsolo. Não é possível deixar de recordar, neste contexto, o estranho romance de Andrei Platonov, The Foundation Pit (1930), que descreve todo o esforço dos soviéticos para construir a «casa dos humanos» - um único imenso edifício -, como tendo desembocado num imenso buraco, que engole todos os desejos, esforços e materiais, a que se resume, afinal, a utopia de uma construção total. Talvez a tensão entre objectos e design se resuma em última instância ao «mistério» do humano, que já só se pode fundar noutro lado que não na relação entre técnica e design. O design do design desdobra-se assim numa linha geral que se funde com a técnica, mas também numa linha do humano, que exige um outro espaço, que não o da vida: é uma linha que vai hesitando entre o imenso buraco no fundo do qual está o vazio absoluto, e a plenitude de um mundo construído nas margens deste, tão próximo quanto possível, mas sem cair nele.

[38] - Não seria impensável que a forma final da técnica fosse a da «vida», que por agora mais não é do que uma hipótese de ficção científica estilo Fankenstein ou Matrix. O desejo de fusão da técnica com a vida está nitidamente patente no design actual, fascinado como está pelas formas biológicas e os materiais orgânicos. Ellen Lupton afirma que «the rise of digital media over the past decade has changed the pratice of design, providing tools for making objects and buildings that resemble living creatures – modeled with complex curves and forms – while remaining distinctly artificial» (Ellen Lupton (2002), «Skin: New Design Organics» in Lupton (org.), Skin, Londres, Laurence King Publishing, 2002, p. 31.

[39] - A proposta de Herbet Simon é feita no ensaio «The Science of Design: Creating the Artificial» que faz parte do livro The Sciences of the Artificial, Mass., MIT Press, 3ed, 1996, pp. 111-138), do qual existe tradução portuguesa: As Ciências do Artificial, Coimbra, Arménio Amado, 1981.

[40] - Herbert Simon afirma que «in the past, much if not most of what we knew about design and about the artificial sciences was intellectually soft, intuitive, informal, and cookbooky» (Op. ult cit., p. 112), Dissemos já que a luta em torno do design acompanha o seu nascimento. Simon prolonga a tradição vanguardista que procura purificar o design dos seus aspectos decorativos e ornamentais, prolongando assim a estratégia funcionalista de Loos e Le Corbusier. Mas o design romântico já era um efeito da luta contra as tendências formalistas da racionalização moderna, a que opõe um recentramento sobre o passado e os mitos nacionais, que são profundamente revisitados para apoiar uma estratégia de resistência à modernidade. Sobre as relações entre design e modernidade, cf. Wendy Kaplan (org.)- Designing Modernity: The Arts of Reform and Persuasion 1885-1945, New York, Thames and Hudson, 1995.

[41] - Herbert Simon, Op. ult. cit., p. 135.

[42] - Bruce Mau (2000): Life Syle, London, Phaidon, 2ed, 2002, p.88 ..

[43] - Cf. Victor Margolin (1998) - «History, Theory, and Criticism in doctoral design education» (http://www.jiscmail.ac.uk/files/PHD-DESIGN/margolin.rtf). Margolin defende uma visão complexa acerca da contingência em que evoluem os produtos de design, propondo que se considere como variável decisiva o «product environment» definido como tudo aquilo que «surrounds the product and becomes part of its identity and value» (cf. V. Margolin, «Expanding the Bounderies of Design: the product Environment nd the new User» in V. Margolin & Richard Buchanan (orgs), The Idea of Design, Mass., MIT Press, 3ed 1998, p. 277). Mas mesmo se reconhecendo que não é possível «to address every contingency related to satisfactory prduct use» (id., p. 278) nada impede que essa contingência seja reduzida até desaparecer na prática, pois é o prórpio facto de a postular que permite ir eliminando-a.

[44] - Tal como na cibernética de Wiener, a tendência a alargar a grelha matemática é o efeito inevitável da tradução científica e técnica do «impreciso» em «preciso». Simon afirma, por exemplo, que “everyone designs who devises courses of action aimed at changing existing situations into preferred ones” (Op. ult. cit., p. 134), o que implica que a formatação do «real» para o tornar mais pilotável é preferível a não o fazer. Neste contexto e dado o desenvolvimento intensivo de novas matemáticas, como as do caos, da auto-organização, dos autómatos celulares, etc.,, torna-se inevitável o crescimento da matriz matemática.

[45] - Cf. Mark Wigley (1998), «Whatever happened to Total Design?» in Harvard Design Magazine, 5, pp.18-25.

[46] - Mark Wigley, Op. ult cit., p. 18.

[47] - Mark Wigley, Op. cit., p. 19.

[48] - O problema da desconstrução, ou pelo menos de uma certa «desconstrução», é que não toma em atenção as mediações que existem entre o «texto» e o mundo, como se houvesse uma homologia entre o fechamento textual e o fechamento do mundo. Apenas assim se entende que desconstruir o texto implique «abrir» o mundo. Isto não significa que o projecto de «obra de arte total» não tivesse sido essencial para a esteticização do imaginário pós-romântico, de onde o design acabará por emergir. Em última instância, estamos perante uma afecção teológica que sobrevive em todas as imagens da totalidade. Seja como for, trata-se de perceber o encadeamento da «obra de arte total» com a linearização da experiência, operada através de procedimentos múltiplos e não homólogos, mas «compositivos». Tudo indica que se trata de relações «eidéticas» que, mais do que transformarem o mundo em imagem, o mobilizam através de certas imagens. Daí que seja errónea a ideia de que «Design is always a matter of theory. Design is not a thing in the world. It's a theoretical reading of the world. Or, more precisely, it is the gesture in which theory is identified in the material world. To point to design is to point to theory. … The default pretension of the architect is to capture the grandest scale of order» (Wigley, Op. Cit., p. 23). Como é evidente, o problema não está no arquitetco nem no conjunto deles, nem no design ou no conjunto das suas práticas, mas na reduplicação estética e estética da linha técnica de processamento do mundo. Em lugar de se dizer que o «design presupposes totalizing theory», como pretende Wigley, deveria dizer-se que «a teoria totalizante pressupõe o design», e mesmo isso seria insuficiente, pois a oposição entre teoria e prática não cabe no espaço restrito pressuposto pela oposição entre teoria total e design. O design não se torna total pelo facto de estar determinado por uma teoria totalizante, mas pela sua captura da linha técnica. Está em causa uma linha total que o design, enquanto eidética, dá a ver, e actualiza, e que enquanto prática artística pode, e deve, perturbar permanentemente.

[49] - Em última instância o controlo passaria pelo fluxo de dinheiro, do qual dependeria a efectuação do design. Vários indícios mostram que este controlo é insuficente, pois a técnica está a sobre-determinar todo o particular. Numa boutade famosa, Samuel Butler dizia que «uma galinha é o pretexto encontrado pelo ovo para produzir outro ovo» («The hen is an egg's way of producing another egg») e, no caso vertente, poderíamos dizer que o dinheiro é o pretexto da técnica para produzir mais técnica.

[50] - Walter Gropius (1923), «The Theory and Organization of the Bauhaus» (cit. Wigley, p.19). Wigley refere ainda que a retórica de Gropius «is characterized by terms like "coordination," "incorporation," "welding," "synthesis," "cooperation," "unified," "collective," "interwoven," "integrate," and so on».

[51] - Sem uma crítica do design todos os acrescentos ou radicalizações do design são pateticamente insuficientes, independentemente de produzirem excelente arquitectura ou objectos, como é o caso de Frank Gehry ou Greg Lynn. Por exemplo, Lynn afirma que «the dominant mode for discussing motion in architecture has been the cinematic model, where the multiplication and sequencing of static snap-shots simulates movement. The problem with the motion-picture analogy is that architecture occupies the role of the static frame through which motion progresses. Force and motion are eliminated from form only to be reintroduced, after the fact of design, through concepts and techniques of optical procession. In contrast, animate design is defined by the co-presence of motion and force at the moment of formal conception. Force is an initial condition, the cause of both motion and the particular inflections of a form» (Cf. Greg Lynn (1999), Animate Form, Princeton, Princeton Architectural Press, New York, 1999, p. 11). Com esta retórica de ruptura, de radicalização, mais não se faz do que acumular na mesma linha, elementos que até então lhe ficavam exteriores.

[52] - Paul Rand (1996), «Paul Rand: Graphic Designer: 15 August 1914 -- 26 November 1996», entrevistado por Michael Kroeger (in http://www.mkgraphic.com/paulrand.html),

[53] - William J.. Mitchell refere ainda que «it is no longer the case that a picture is the design and a durable artifact like a carpet is the realization. Instead, both are now mechanized performances of the same digital script» (Cf. «Picture This. Build That. Algorithms, Machines, and Architectural Performances» in Harvard Design Magazine, 1998, n.º 6, pp. 8-11).

[54] - Neste contexto, o «híbrido» é um decalque da plasticidade, quando tudo parece decorrer ao nível da imagem, que corresponde a um grau zero da matéria e que, enquanto tal, ainda é «material».

[55] - Cf. Catherine Malabou (1995), L’Avenir de Hegel: Plasticité, Temporalité, Dialéctique, Paris, Vrin. Numa perspectiva que lê Hegel a partir de Kojéve e Derrida, mas fortemente original, Malabou faz da «plasticidade» a categoria essencial da assim chamada «pós-história», em que a temporalidade clássica baseda na linearidade de uma sucessão cumulativa e decidível é substituída, por um «eterno presente», como aliás previu Walter Benjamin no seu ensaio sobre a reprodutibilidade técnica. Apesar do inegável interesse das suas análises, não é possível desconhecer que a metafísica ocidental é inseparável da instalação de uma «razão tipográfica» onde a plasticidade está imediatamente implicada. Para imprimir uma forma na matéria é preciso que esta tenha a «passividade« para a aceitar, i.e., que seja plástica. Deste ponto de vista, poder-se-ia dizer que Locke foi um autor da plasticidade, tal como Nietzsche, etc.

[56] - Mark Alizart (2000), «Malabouté: Entretien avec Catherine Malabou» (http://perso.club-internet.fr/mul/mul20-2.htm).

[57] - Catherine Malabou, Entrevista a Mark Alizart, op. cit.

[58] - Ibidem.

[59] - Catherine Malabou, L’Avenir de Hegel, op. ult. cit., p.21.  

[60] Sanford Kwinter, «The gay Science (What is life?)» in B. Mau (2000), Life Style, op. cit., p. 36.

[61] - Terry de Duve discute a estratégia de Duchamp acerca do ready-made, momeadamente a conversão do famoso urinol em obra de arte, pondo-a em confronto com a recusa de Le Corbusier de conferir estatuto estético aos objectos utilitários. Para Duve esta recusa era ambivalente, pois é o design que resiste ao nominalismo estético, considerando que, mesmo do ponto de vista de le Corbusier, se teria de reconhecer que «ce qui ne porte pas encore le nom de design aura été, rétrospectivement, l'art véritable du XXe siècle» (Thierry de Duve (1996), «Petites réflexions sur la crise de l'art et la réalité du design» in Traverses, n°1, juillet 1996 http://www2.centrepompidou.fr/traverses/numero1/textes/t-deduve.htm ). Erra no entanto Duve, ao encarar o gesto de Duchamp como uma estratégia nominalista que transforma em arte tudo aquilo que entra no museu «em nome da arte». Na realidade, existe em Duchamp uma estratégia ambivalente que, desfuncionaliza o objecto de design e que desesteticiza o objecto dito de arte. Em vez de isso implicar uma «realidade» do design, que assim se sobrepõe ao nominalismo estético, tudo indica que a estratégia duchampiana põe em cena pela primeira vez o conflito entre arte e design, fazendo da clivagem que os separa o eixo onde se joga todo o conflito. Ora, a luta joga-se em torno da «vida». Se a arte absoluta é incapaz de compreender o índice de realidade dos objectos, já o design absoluto é incapaz de aceitar a pressão de desrealização e singularização que a arte implica. Entre a linha associativa do design e a do particularismo dos objectos estéticos, Duchamp faz circular uma outra forma de ligação, a da vida na sua totalidade. Esta é a razão porque, para ele, «Eros c’est la vie». A arte tem prioridade porque permite o «maravilhamento» da vida, sem a chegar a tocar.