Code
and other laws of cyberspace
Lawrence Lessig
Ed. Basic Books, 1999
297 p.
O Ciberespaço
morreu! Viva o Ciberespaço!
Lawrence Lessig é um
eminente constitucionalista e professor de Direito nos Estados Unidos, bem como
um dos grandes especialistas em ciberdireito da actualidade. Neste seu primeiro
livro[1],
o plano do direito e da regulação, que as práticas na Rede interpelam e
questionam, intersecta magistralmente o plano dos fundamentos e meandros da
tecnicidade computacional da própria Rede. Deste encontro, entre o plano
da regulação e o plano da arquitectura computacional,
surge uma visão
desassombrada, lúcida e interpelante, mas sempre apaixonada e apaixonante,
sobre o Ciberespaço e o que nele/dele fazemos, fizemos e poderemos vir a fazer.
É a partir do
conceito de código
- na dupla acepção de a)
leis reguladoras da actividade
humana em sociedade e estabelecidas, por exemplo, por orgãos legislativos específicos
( East Coast Code) e de b)
conjunto de instruções embebidas no software e hardware, e sem as quais
o ciberespaço pura e simplesmente não pode existir ( West
Coast Code ) , que se vai cerzindo ao
longo da obra uma reflexão cuidada, fundamentada, profunda
e perturbante, apoiada
numa escrita simples, elegante, cadenciada, pensada nos mínimos
detalhes. É um livro fácil de ler ? Como
diz Daniel Bell : “Lessig´s exposition reads like a Stanley Kubrick film,
with the menace made palpable by new technologies...It is a troubling book, and
one that needs to be taken seriously.”[2]
Como o filme, trata-se de uma obra
notável e de referência[3].
Ensaiemos algumas
anotações, começando por
dar voz ao autor:
“Cyberspace is a place. People live there. They experience all the sort
of things that they experience in real space there. Some experience more. They
experience this not as isolated individuals playing some high-tech computer
game. They experience it in groups, in communities, among strangers, and among
people they come to know and sometimes like – or love.
While they are in that place,
cyberspace, they are also here. They are at a terminal screen, eating ships,
ignoring the phone. They are downstairs on the computer, late at night, while
their husbands are asleep. They are at work, at cyber-cafés, and in computer
labs. They live their life there, and at some point in the day they jack out and
are only here. They rise from the machine, in a bit of a daze, and turn around.
They have return.
So where are they when they are in
cyberspace?
We
have this desire to pick. We want to say that they are either in cyberspace or
in real space. We have this desire because we want to know which space is
responsible. Which space has jurisdiction over them? Which space rules?
The answer is both…The problem for
law is to work out how the norms of the two communities are to apply given that
the subject to whom they apply may be in both places at once.” (p.
190)
O
ciberespaço não é encarado como um espaço à parte, uma espécie de
limbo, ou um qualquer outro lugar alternativo à vida de todos os dias no
único espaço real que supostamente conhecemos (apesar de para alguns o poder
ser). Ao contrário, o ciberespaço funciona, existe, respira,
numa permanente interligação a este espaço através e com as
pessoas que neles se movem,
que em ambos vivem num mesmo tempo. Esta, portanto, a nova realidade, objecto
que os estudos sobre o ciberespaço e os novos media têm vindo a
reconhecer, após a relativa falência da investigação desenvolvida nos anos
80 e 90 ao isolar o ciberespaço e tentar compreendê-lo nesse isolamento.
As
pessoas que usam e experienciam o ciberespaço são os principais actores
da reflexão de Lessig. É, aliás, a partir
de estórias de “uso
situado” da Rede[4]
que o autor organiza tanto algumas das características fundamentais do exercício
da actividade humana actualmente em aparente e real subversão e que importa
salvaguardar, pelo menos em democracia: propriedade intelectual, privacidade,
liberdade de expressão, como quatro grandes
temas da problemática da
regulação: “regulabilidade”, regulação pelo código, conflitos de
soberania e ambiguidade latente (p.19 a 23).
Propriedade
intelectual, privacidade, liberdade de expressão são dimensões primordiais da
expressão individual e social no
espaço público e, nele, particularmente susceptíveis : ” a proteger “ -
e por isso carecem de controlo
e regulação. Os novos media vêem dar continuidade a esse imenso debate e
ainda “atirar achas para a fogueira”. E por isso, também, o trabalho de
Lessig é tão importante. Nele, os novos e os velhos media, em análise
comparativa, estão permanentemente presentes. Afinal de contas, os clássicos
instrumentos de regulação e, em particular a Lei, baseiam-se em
experiências passadas conhecidas e é por translação que tacteiam
aproximações a novas realidades e a novas experiências.
O que se passa na nova
realidade, e nomeadamente no ciberespaço, transfigura e interpela
não apenas os valores que a regulamentação tem imbuído no conjunto de
leis, regras e normas que organizam a nossa vida fora desse espaço como a própria
arquitectura normativa dessas regulações.
Exprimindo a
regulabilidade, a capacidade
de regulação de certos
comportamentos e práticas, nomeadamente
a potencialmente exercida pelos
governos (p. 14 e 19), perfilham-se assim três grandes questões :
É a Rede regulável ? Como regular a Rede ? É
desejável que seja regulada ?
A estas três
perguntas, Lawrence Lessig responde afirmativamente. E do nosso ponto de vista,
a resposta à primeira questão é determinante, em particular para os caminhos
empreendidos pelo autor em busca da
resposta às restantes.
Liberdade e Regulação
Onde está a Internet dos fundadores? Plataforma de comunicação libertária
e libertadora, instrumento de acesso livre e aberto a recursos computacionais
formidáveis (a que só uns quantos privilegiados podiam recorrer) e passível
de ser utilizado, desenvolvido, configurado e também
desenhado por qualquer um de nós,
por isso mesmo sustentáculo de um novo espaço de liberdade – o
Ciberespaço.
Enganaram-se os que
pensaram estar esta Liberdade definitivamente inscrita na
própria natureza do ciberespaço, na arquitectura da Rede, sendo por
isso de impossível regulamentação. “That
cyberspace was a place that governments could not control was an idea that I
never quite go. The word itself speaks not of freedom, but of control” (p.5).
Simplesmente,
este controlo não é necessariamente exercido apenas pelo Estado e, a sê-lo,
não pressupõe necessariamente objectivos demoníacos. Pelo contrário,
iremos encontrar no argumento de Lawrence Lessig uma defesa do controlo dos
Governos/da Lei no sentido de regular uma certa mão invisível que por via das
dinâmicas comerciais está a construir uma arquitectura do ciberespaço oposta
à sonhada pelos seus fundadores. Uma arquitectura onde a liberdade primordial
desaparecerá, sem os valores que então e agora consideramos essenciais. Do mal
o menos, é a receita pragmática de Lessig[5].
Arquitectura
significa, para Lessig, mais do que um simples esquema, um desenho, uma
configuração, ou um texto legal. Arquitectura é um modo de vida (a way of life). Assim, tanto o Ciberespaço como a Constituição
podem ser vistos como arquitecturas que estruturam e organizam o poder social e
político, protegendo valores fundamentais – valores e princípios que estão
par além de compromissos políticos
conjunturais.
Está explicitado o
binómio em torno do qual se balanceia a reflexão de Lessig : liberdade e
regulação.
Sabemos de alguma
forma como no mundo real as leis, regras e normas
regulam a nossa vida. E não precisamos de ir a tribunal para isso.
Sabemos menos bem como o ciberespaço é regulado, se é que temos até consciência
de que isso acontece.
Code is Law
O ciberespaço é, de
facto, um espaço iminentemente regulável, e é o através do código: das
instruções embebidas em todo e qualquer software e hardware da Rede. Sempre
assim foi. É esta a natureza do ciberespaço. Que ideia simples... ideia que
Lessig tem vindo a explicar aos fazedores de leis e a advogados, ao mesmo tempo
que procura explicar aos fazedores de código como a Lei funciona.
No ciberespaço,
“Code is law”.
O código não é
neutro, como a tecnologia não o é. Está-se na realidade a falar de design, de projecto, de programa, de resolução de problemas, de
maneira de resolver problemas, de identificação do problema, de generalização
da ideia de problema e das supostas vias de resolução do problema, dos
pressupostos que alguém tem do que são os nossos presssupostos, ... . De
valores e princípios que o código reflecte pela mão de pessoas, ou máquinas
as quais, por enquanto e nalgum momento, alguém desenhou e codificou.
Como qualquer
linguagem, o código muda.
Verificamos actualmente duas tendências
nesta mudança. Por um lado, o ciberespaço é cada vez mais regulável (p.109),
por outro lado as grandes corporações
estão a apoderar-se do campo de possibilidades de mudança
tornando-se os únicos agentes de transformação e configuração possíveis.
Uma luz ao fundo do túnel
Lawrence Lessig
tem uma
visão negra, pessimista sobre esta
tendência de configuração da Internet e do ciberespaço. “We
need a plan. I´ve told a dark story about the choices that a changing
cyberspace will present, and about our inability to respond to these choices.”(p.223)[6]
Mas uma luz ao fundo do túnel reluz.:
o código não é apenas o principal regulador do ciberespaço, é também
ele passível de regulação. De entre os vários agentes de regulação, ao
Estado e aos governos cabe um papel fundamental na defesa e protecção do
ciberespaço, em particular na protecção do
código aberto, uma das grandes batalhas que se travam na actualidade e que
tem em Lawrence Lessig um dos
seus principais advogados, tanto no sentido figurado como no literal.
Para que as nossas
escolhas, decisões, direitos e liberdades no ciberespaço
possam ser salvaguardados e fortalecidos, Lawrence Lessig defende
claramente, como outros autores assinalaram, uma alteração de paradigma na
regulação : “ da Lei para a
Tecnologia”[7].
Terminemos como começámos, dando voz mais extensa ao autor:
“Stop. Don´t turn away. I know at least some of the thousands of
reasons you have for rejecting the structure I´ve just described. Some of those
reasons are normative – you hate the world I am describing. Or you hate the
idea that cyberspace would became like this world. I do too. I am not promoting
an idea, I am arguing that this is the world we are moving to. Those who want to
resist this world, or at least its worst features, had better understand the
evolution. These are critical architectural decisions that need to be made, and
we must begin to make those decisions now.”(p.56)[8]
[1]
Posteriormente
foram publicados em 2001, The Future
of Ideas – The Fate of the Commons in a Connected World e em 2004, Free Culture: How Big Media uses Technology and the Law to lock down
Creativity.
A Interact, no seu número
4, publicou um texto de Lessig:
“Innovation, Regulation, and the Internet”.
[2] Esta frase do autor de The
Coming of the Post-Industrial Society foi retirada do extenso conjunto
das notas elogiosas (praises) publicadas
no próprio Code
[3] Lessig foi, por exemplo,
um dos especialistas convidados da
Conferência Internacional de Direito Cibernético, realizada em
Lisboa em 25 e 26 de Junho de
2001, e organizada pela FLAD e pela Ordem dos Advogados. Em busca na
Internet para páginas de
Portugal, verficámos que Code consta de curriculas na área do direito,
tanto na Universidade de Lisboa, como na Universidade de Aveiro ou na
Universidade Nova de Lisboa (ISEGI), por exemplo.
[4] É importante
assinalar o
olhar antropológico na forma de contar estas estórias. “This
is not a field where one learns by living in libraries. I have learned
everything I know from the conversations I have had, or watched…”(p. xii)
[5]
Numa entrevista a Jesse Walker, Lessig afirma “ Between no law and good
law narrowly tailored to a legitimate state interest in protecting kids from
porno, I would favour narrow good law.” ( http://reason.com/0206/fe.jw.cyberspaces.shtml
). (Último acesso em 5.3.2004).
Encontramos
um argumento diverso em Jorge
Martins Rosa no seu “ Normas
para o parque cyborg”, Revista de Comunicação e Linguagens, A cultura das redes, Junho de 2002.
[6] Aliás não tão pessimista como teria sido desejável, tal
como afirma na entrevista já
referida “In my first book I
was quite pessimistic. It turns out I was not pessimistic enough.” Ver nota anterior.
[7] Stefaan G.
Verhulst (2002). ”About Scarcities an Intermediaries: the Regulatory
Paradigm Shift of Digital Content Reviewed” in Leah Lievrouw and Sonia
Livingstone (eds). The Handbook of New Media. London: Sage Publications.
(432-447).