«You
gentlemen can say, "Hey gal, finish them floors!
Get upstairs! What's wrong with you! Earn your keep here!"
You toss me your tips
and look out to the ships
But I'm counting your heads
as I'm making the beds
Cuz
there's nobody gonna sleep here, honey
Nobody
Nobody!»
«Man
sagt: Geh, wisch deine Gläser, mein Kind,
Und
man reicht mir den Penny hin.
Und
der Penny wird genommen, und das Bett wird gemacht!
(Es wird keiner mehr drin schlafen in dieser Nacht.)»
Bertolt
Brecht, «Die Ballade von der Seeräuber-Jenny/Pirate Jenny», Dreigroschenoper
/ The Three Penny Opera, 1928
Se
não fosse pelas press-releases, e talvez pela sequência
final ao som de «Young Americans» de David Bowie, dificilmente
se poderia adivinhar que o «U» que acompanha o título de Dogville
pretende significar que este é o primeiro filme de uma trilogia
sobre a América, de que Manderlay e Wasington [sic]
serão, respectivamente, «S» e «A». Até que estes permitam
interpretações em contrário, o mais recente filme de Lars von
Trier mostra-nos, mau grado a viragem estilística, ainda uma
continuidade temática com Breaking the Waves e Dancer
in the Dark, onde o sacrifício e o sofrimento, inseparáveis
da ideia de feminino que as protagonistas encarnam, atingem um
extremo que roça o irrealismo, se não mesmo a caricatura.
Tal
não impede que Dogville, lido de um ponto de vista
puramente estético, seja praticamente irrepreensível: o
trabalho dos actores é primoroso, a libertação
definitivamente consumada do movimento que ajudou a fundar não
podia ser mais clara (restando apenas o trabalho de câmara sem
tripé, a cargo do próprio realizador), e a opção por um
registo teatral e anti-naturalista, ainda que seja cedo para
dizer se se manterá, confirma von Trier como o único cineasta
vindo do Dogma95 capaz de renovar-se a cada novo fôlego,
preferindo que outros, quando para isso têm coragem, continuem
orientações estéticas que inaugura mas com as quais se recusa
a comprometer.
Contudo,
pelo menos até aqui, não sem fontes externas de inspiração: Breaking
the Waves remetia para Carl Theodor Dreyer de Ordet e
Dancer in the Dark era – ainda que a palavra pareça
inadequada – uma paródia ao género musical de Hollywood. Dogville,
por sua vez, inspira-se, ainda que não haja qualquer mênção
nos créditos, na personagem Jenny da Dreigroschenoper,
em particular na balada que esta canta, e também noutras peças
de Brecht como Der gute Mensch von Sezuan. É ao mesmíssimo
Brecht, aliás, que vai buscar o modo épico, a divisão em
actos cujo conteúdo é previamente anunciado, o narrador, que
fica em off ao ser transposto para o meio fílmico –
desafortunadamente, a um ponto quase nauseante em virtude da sua
desproporcionada omnipresença –, o miserabilismo moral das
personagens e, num grau menor, o despojamento do cenário
tornado, à excepção de alguns adereços de palco, mera marcação
no espaço (piscadela de olho a um outro «círculo de giz»?).
A
filiação em Brecht é contudo algo que se paga sempre caro: na
medida em que procura afastar o naturalismo em favor de uma
interpretação simbólica, qualquer leitura meramente estética
é de imediato secundarizada, tornando-se mero instrumento ao
serviço, consoante a inclinação do autor, de uma Weltanschauung
política (era essa a intenção do próprio Brecht) ou ético-moral,
no limite religiosa, justamente aquela a que von Trier não pode
– nem pretende – furtar-se. Ora, é aí que os elogios
degeneram em pesadas críticas. Em von Trier, cada vez mais a
ambiguidade interpretativa relativamente ao estatuto das suas
obras cinematográficas vai dando lugar à imposição de uma
determinada moral na qual a possibilidade de salvação
(especialmente dum ponto de vista religioso, reafirme-se) se vê
destroçada – mais do que confrontada, o que era ainda uma
interpretação admissível em Breaking the Waves –
face à irreparabilidade (leia-se irremediabilidade, num sentido
contrário ao de Agamben) da natureza humana.
Nesse
sentido, o nome de algumas das personagens femininas (Gloria,
Vera) não pode ser senão uma ironia pouco subtil, o que é
flagrante no caso da personagem principal, pois de Grace pouco
ou nada resta no desfecho, confirmando talvez a suspeita (que em
nada favorece von Trier, católico filho de ateus) de que, seja
qual for a sua confissão, não há fanatismo pior do que o de
um convertido. Talvez fosse ainda possível conceder o benefício
da dúvida ao realizador, dado que este é apenas o primeiro de
uma trilogia: ao que consta, em Manderlay, o próximo
filme, Grace reaparece como protagonista, e agirá de novo como
justiceira, mas em nome de uma causa altruísta. O problema é
que até mesmo essa hipótese, a confirmar-se, aponta para um
joaquimismo mal disfarçado — à justiça vingadora do Pai
seguir-se-á a (agora sim) graça redentora do Filho, cabendo a Wasington
o difícil papel de encerrar a trilogia sob a égide de uma «Era
do Espírito Santo».
Ao
menos esse terceiro filme revela-se à partida incerto na forma
como poderá superar uma bipolaridade de leituras que começam já
em Dogville a confrontar-se — se tal fosse possível,
recomendaríamos a von Trier que lesse The Divine Invasion,
de Philip K. Dick, onde tal solução foi de certa forma
ensaiada. Chamemos então a tais possibilidades de interpretação
a de uma «leitura apocalíptica» e a de uma «leitura patética»
(no sentido original da palavra, derivada de pathos):
quem viu o filme ou acompanhou a lógica acima enunciada intui
de imediato que a primeira teve necessariamente de prevalecer
(ou não fosse a história inspirada nas palavras da pirata
Jenny de Brecht). É verdade que a leitura oposta se insinua ao
longo do filme, mas já perto do final desfaz-se qualquer equívoco
quanto ao rumo que os acontecimentos vão tomar. Contudo,
qualquer das opções não faz mais do que mostrar a
esquizofrenia extrema em que se cai quando se procura impor uma
visão cristã: que Grace se torne um anjo vingador ou que
tivesse levado o sacrifício ao extremo mesmo depois de revelada
a sua identidade, a diferença esconde uma incapacidade de
saltar nietzscheanamente por cima de uma moral bíblica. É
certo que o cão Moses, ao contrário do seu homónimo bíblico,
sobrevive por mero acaso, e não como fruto de uma eleição (só
depois do acto consumado se descobre que Moses escapou ao incêndio),
mas até aí se cai na inevitabilidade de uma oposição entre
uma natureza animal desprovida de culpa (e portanto salva à
partida – all dogs go to Heaven) e uma tendência
humana para não obedecer senão a um insuperável hedonismo que
desafia qualquer graça divinamente concedida. E no entanto,
essa mesma desobediência, e portanto incontrolabilidade do
livre arbítrio, se tomada em conta, permitiria uma
multiplicidade de outras soluções para a narrativa: tente por
exemplo imaginar-se uma versão alternativa de Dogville
em que Grace se limitasse a partir e a ignorar tanto o destino
dos habitantes de Dogville quanto as sevícias que estes lhe
infligiram no passado, num acto de indiferença altiva que
deixaria nestes, tal como no espectador, um outro tipo de
marcas.
Von
Trier é – e o mais deprimente é que ele sabe-o, mas talvez não
se dê conta até que ponto – um duplo da personagem de Thomas
Edison Jr. É a boa vontade da personagem que dá início a toda
a tragédia, e é igualmente o cinismo em que essa boa vontade
degenera que precipita o trágico desenlace. Sempre em nome de
uma teoria que quer demonstrar, sempre em nome duma aprovação
mais estética do que social (se Edison alguma vez lograsse
completar o romance que nunca chega a iniciar, adivinha-se que
seria o primeiro a abandonar Dogville sem qualquer compaixão
pelos que permaneceriam), Edison não evolui. Mesmo quando
parece ter aprendido algo acerca das consequências dos seus
actos, o excesso de palavras, de justificações que não são
mais do que um desajeitado e imaturo pedido de clemência, trai
o seu irremediável autismo, revelando ser, de todas as
personagens, porventura a única que merece totalmente o seu
castigo.
Post Scriptum perfeitamente pessoal e portanto também
tendencioso: chegado a casa depois de assistir a Dogville,
ligo a televisão. No ecrã, a série de animação South
Park. No episódio desse dia, a trama conduz as personagens
principais a encontrarem-se com o serial killer Charles
Manson, evadido da prisão, e a fazerem com que este descubra o
significado do Natal. Ninguém poderá dizer que South Park
é ideologicamente neutro (veja-se o depoimento do criador da série
no documentário Bowling for Columbine), mas entre essa
visão corrosiva e incómoda para uma certa América e o
dogmatismo em que von Trier ameaça cair (antes o outro «Dogma»,
que sendo-o no campo estético não o era no moral), não é difícil
perceber em qual recaem as minhas preferências.
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