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Sistema matrix: marketing ou a obra total?

  [ Patrícia Gouveia ]

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Matrix reloaded o filme (parte II), animatrix, as curtas metragens (9) e enter the matrix, o jogo.

O regresso de Matrix não é só um filme mas mais do que isso. É uma marca, uma chancela, um marketing totalitário. O filme não é mais do que metade de um vasto objecto (cultural? comercial? artístico? político?[1]) que se completa nesta fase intermédia através do jogo enter the matrix e das nove histórias, curtas metragens, escritas pelos irmãos Wachowski e por alguns realizadores e escritores da cena Anime japonesa e seus seguidores americanos. Para aceder a todas as dimensões do universo matrix é necessário ver o filme, as curtas metragens e jogar o jogo. Jogo e cinema como um só e mesmo objecto? As recentes incursões no universo cinematográfico de histórias e heróis provenientes de videojogos, tais como Final Fantasy e Tomb Raider, são acompanhadas por uma evolução na tipologia narrativa dos videojogos. Assim, através de uma estrutura, planta ou matriz da história, é possível jogar o enter the matrix em diferentes dimensões, momentos, níveis, e construir diversos pontos de vista a partir de um mesmo acontecimento, o qual vai sendo explicitado pela inclusão no jogo de pequenos excertos de filme previamente registados.

A história é simples: para salvar Zion, último lugar dos homens na terra agora dominada pelas máquinas, a dupla Neo e Trinity tem que passar uma quantidade de obstáculos e garantir o sucesso da sua missão que consiste em encontrar o homem das chaves para que o-tal-cujo-caminho-está-nele entre na porta certa. Neste episódio da saga somos levados a concluir que, ao contrário do que pensávamos, Neo é também um vírus engendrado pelo sistema, um software implantado na matriz para nos divertir. A metáfora viral estende-se a todo o grupo de refractários do sistema Matrix uma vez que tudo estava planeado pelo arquitecto do programa. Até a Oráculo, vidente ou feiticeira, surge como uma simulação, ou seja, está inscrita no código. Esta ideia, que não é de todo nova, embora nos últimos anos tenha ganho imensos adeptos, lembra-nos que tudo está escrito, pré-programado - o código ADN, o código da Bíblia, o código do hardware e software, o código das relações humanas e das químicas do corpo que antecede a própria consciência, pelo que o homem só tem como alternativa uma escolha limitada. Uma escolha que se divide, neste caso, em duas soluções: uma pílula vermelha, para aqueles que sabem que a simulação se trata de uma ilusão, ou uma pílula azul, para aqueles que preferem não ter dúvidas sobre o carácter real ou ficcional do universo da matriz. No primeiro episódio Neo tinha que escolher entre salvar a sua própria pele ou a de Morpheus. Neste segundo, tem que escolher entre salvar o último reduto dos humanos, Zion, ou a sua amada Trinity. Em ambos, é o amor entre Neo e Trinity que revela o escolhido e ressuscita o outro. Depois de cem anos de sono, qual bela adormecida, Neo acorda para a sua segunda vida através do beijo de Trinity no primeiro filme. Em Matrix Reloaded Trinity morre ao tentar salvar o seu amado e é posteriormente activada pela mão de Neo, que penetra nas suas entranhas. Ainda bem que nas linhas de código estava destinado um final feliz nesta dimensão da história, pois ninguém gostaria de ver Neo e Trinity separados; a sua identidade é de tal forma permutável e andrógina que suspeito bem que são um só. E Hollywood, uma entidade que se ocupa da distribuição planetária de canais e programas de simulação que substituem a realidade das experiências humanas, não poderia prescindir de um herói deste tipo.

O pacote de acessórios matrix para uma cultura de marca não é de todo original nos seus propósitos, embora a reciclagem da mitologia popular da ficção científica seja bastante interessante. Encontramos em Matrix Reload um ambiente high tech à la 2001 Odisseia no Espaço nas salas e corredores da matriz, misturado com incursões na estética Alien, através das sentinelas e do ambiente geral apocalíptico da contra-cultura; um plano inspirado no Exterminador Implacável e nas metamorfoses metálicas do agente Smith; um cheirinho a Blade Runner, Eles Vivem e Videodrome nos gémeos siameses e na indiferenciação entre humanos e réplicas, realidade e ficção; um voo tipo Superman recheado com muita manga, Akira, Ghost in the Shell e folhetim, Alice no país das Maravilhas e o Feiticeiro de Oz, como aliás é referido no primeiro episódio e realçado na curta metragem de Shinichiro Watanabe, História do Detective (animatrix). “Como menosprezar Morpheus e as suas sentenças budistas quando em criança admirámos o mestre Po em Kung Fu?[2]” Um caldeirão bem condimentado pelo livro de cabeceira de Neo no primeiro filme, Simulacros e Simulação de Jean Braudrillard, e por várias ideias caras à cibernética, nomeadamente a questão da evolução do homem e das suas máquinas na curta metragem apocalíptica O segundo Renascimento (Parte I e II / animatrix). O processo de simbiose, definido por Joel de Rosnay em L’homme Symbiotique[3], como uma associação que se realiza em benefício mútuo de dois ou mais organismos diferentes, aparece ainda numa associação do tipo comensal ou parasitária, isto é, o comensal vive no organismo que o alberga ou na sua vizinhança e retira deste “alimento” sem o prejudicar, tal como os escorpiões que se infiltram no corpo dos humanos no filme. O parasita vive dependente do organismo que infecta e pode colocar em risco a sua sobrevivência. A matriz, como todos os organismos vivos, produz os seus vírus, que se replicam, modificam e infiltram nas células, autonomizando-se em certo sentido. Então, o sistema activa o programa anti-vírus para os eliminar e corrigir, os quais se instalam no sistema e reproduzem o ciclo iniciado pelos vírus.

A utopia mórbida de um corpo puro, típica do método analítico, que analisa o corpo humano como uma entidade que se decompõe numa complexidade de elementos distintos, deixa de fazer sentido se pensarmos num método sistémico que completa o anterior, ou seja, um sistema que tem em conta a relação combinada do todo, constituído pelas partes, as suas relações interdependentes e a sua evolução no tempo. Estas relações intrínsecas ao sistema são de interacção dinâmica e têm como finalidade manter a estrutura deste[4]. Neste contexto, são exemplos de sistemas o corpo humano, a célula, a empresa ou uma sociedade de insectos, o qual não tem como finalidade apenas o elemento isolado mas o conjunto das suas relações, como num jogo de bonecas russas... Sendo o método sistémico a convergência da cibernética, da teoria da informação e da biologia, a matriz, como um sistema estruturado, visa o processo no seu todo e é este que é passível de ser reproduzido. Nobert Wiener[5] remete-nos para a ideia de que é o processo em vez da existência da estrutura mecânica do computador o que corresponde à vida humana nos autómatos, ou seja, se este mecanismo for semelhante é bem possível que o tempo do autómato seja de facto o tempo do humano. É este o principio replicativo dos 100 inimigos em forma de agente Smith, que se multiplicam numa inesquecível coreografia, tal como também o é na questão da infalibilidade que está na base da personagem de Neo - ambos os sistemas fazem uma triagem do inimigo de forma a preverem as suas posições futuras; o fenómeno de propagação não visa apenas a criação de uma réplica mas a concepção de um outro ser capaz das mesmas funções num rastreio inteligente típico dos homens e das suas máquinas[6]... Este sistema que não determina o futuro através das acções passadas mas antes se projecta na distribuição de possíveis futuros, um conjunto inteligente que consiga aprender e evoluir de forma análoga à biológica, que se consiga reproduzir copiando o código humano e os seus sistemas de informação, é impossível de detectar. Em vez de uma cópia e de um original temos uma estrutura una na qual a resolução se mantém coerente em diferentes graus e níveis de observação. Por outras palavras, a estrutura é construída através de motivos repetitivos que se organizam a níveis diferentes de forma a conservarem uma formação de base análoga, coerente...

A narrativa de Matrix como objecto cultural é fractal? Uma história que se repete linearmente no filme, no jogo e em algumas animações, uma estrutura de base análoga, várias dimensões possíveis de jogar o futuro. No filme Neo beija Persephone, e esse beijo permite-lhe prosseguir na história. A jogar o jogo no papel de Niobe, pois é o utilizador que selecciona a personagem com quem joga, que opta por Ghost ou Niobe, quem beija Persephone é Niobe e imagino que se o jogo for jogado através dos olhos de Ghost quem ganha o beijo é Ghost. A soberba cena de acção na auto-estrada também surge no jogo só que desta vez a partir do carro de Niobe, que em ambos os objectos salva Morpheus. A perspectiva de jogar o jogo depois de ver o filme inaugura um sonho de simulação perpétua no qual podemos interagir de inúmeras formas com a história base e, ao limite, com todo o sistema. Esta é uma das maiores ambiguidades de Matrix: o filme ficcionaliza uma luta de refractários sob o domínio do simulacro criando um ambiente de pura acção visual, que acorrenta e liberta ao mesmo tempo, oferecendo-nos um universo videolúdico total, em que podemos interagir ao rallenti ou em modo de aceleração, porque o tempo da acção é o tempo da simultaneidade, o tempo da história é o tempo da narrativa, ou seja, esta é contada à medida que vai sendo construída. A luta contra a hegemonia universal de um só modelo, o da matriz, de hollywood, o que quisermos, é ela também um objecto planetário, total e totalizador; a obra de marca Matrix é feita de imagens que vimos e daquelas que veremos.

Este segundo episódio do filme apresenta uma utilização estética dos efeitos especiais 3D nunca antes vista. Não há um único plano que não tenha sido traficado pelo tecnologia digital: os movimentos das personagens (curioso é o facto dos contratos com os actores implicarem uma cedência da sua imagem numérica), a posição das câmaras, os efeitos de luz, etc. A hora extra de filme que o jogo oferece, no qual podemos ver os bastidores das acções de Niobe e Ghost para chegar ao local de salvamento – a auto-estrada – é uma mistura entre cenas filmadas com as actrizes e actores de carne e osso e com as suas personagens digitais. O jogo tem alguns erros de programação, tais como sombras e corpos mortos que subitamente desaparecem, simbioses não propositadas com paredes e objectos, movimentos toscos, etc. Por outro lado é monótono, muito escuro e por vezes demasiado repetitivo nas acções, é sempre a mesma coisa: matar uns agentes, limpar umas áreas e progredir para mais umas cenas do filme. Contam-se como momentos de particular interesse a cena dos pseudo vampiros no quarto de Phersephone, género Metal Gear 2, a cena da auto-estrada e a do hangar seguida da luta interminável com o agente Smith.

Das nove curtas-metragens de Animatrix destaco as animações japonesas de criadores como o realizador da série Ninja Scroll, Programa e Recorde Mundial, Além de Koji Morimoto que me fez lembrar a obra prima de Isao Takahata Les Tombeau des Lucioles de 1988, a História de Detective pelas incursões no filme negro de gangsters e, finalmente, A História do miúdo com argumento dos irmãos Wachowski e realização de Shinichiro Watanabe. “Alguém me diga porque parece mais real quando sonho do que quando estou acordado? Há alguma ficção na tua verdade e alguma verdade na tua ficção...” As animações realizadas por americanos são bastante mais fracas, e até pirosas, como é o caso de O Último voo de Osíris que começa com um misto de luta e streap tease absolutamente ridículos e que continua com um ambiente em tudo semelhante ao filme. Os extras que constam do DVD estão recheados de maquetas, desenhos de cenários e esboços dos personagens, assim como de análises à importância do fenómeno e cultura do estilo anime, um género de animação criado no Japão e apreciado nos EUA. conhecido pela sua subtileza gráfica inspirada na banda desenhada japonesa (manga). O estilo Anime, que nos remete para cenários de pós-guerra, pós-Hiroshima e Nagasaki, centra-se no aspecto cinematográfico mais do que na animação, ao contrário da escola americana, pela introdução dos movimentos de câmara em imagens fixas, dos diferentes pontos de vista, caros aos videojogos, pela ênfase nos grandes planos nas expressões e emoções das personagens de olhos grandes e brilhantes, pois os japoneses acreditam que estes são um espelho da alma... O estilo em termos históricos remonta aos pergaminhos japoneses lidos da direita para esquerda, à ilustração japonesa do século XIX, aos actores do teatro Kabuki, à enorme indústria manga para todos os géneros e feitios e ao horror apocalíptico do pós-guerra. Só a banda desenhada e a animação poderiam fazer esquecer a tragédia dos 140 mil mortos do dia 6 de Agosto de 1945, em Hiroshima, e os quase 74 mil mortos no dia 9 do mesmo mês e ano, em Nagasaki. Um país destruído integralmente pela guerra contra os EUA, um inimigo considerado demasiado infantil e mimado para lutar com o guerreiro nipónico.

Porque a máxima do herói de guerra japonês “vale mais morrer do que admitir a derrota” e a pretensão nipónica em ocultar a realidade através do sonho, da imaginação, é bem compreensível depois da experiência da segunda guerra mundial. E assim os miúdos vão preferindo, no Japão contemporâneo, a realidade dos seus quartos sombrios e das suas consolas de jogos ao desumano código de honra do guerreiro nipónico, entre o bem e o mal, num doentio fenómeno de isolamento do mundo. Uma doença com o estranho nome de Ikikomoro, em que milhares de miúdos se fecham durante meses, anos, no seu próprio quarto, porque a ficção é, por vezes, mais real do que a realidade...

O rato Mickey da Disney contra o Astroboy de Tezuca num caldeirão cheio de amor-ódio. Matrix é isto tudo! Um sistema em permanente reciclagem, um bailado aquático de Esther Williams misturado com danças chinesas do tigre e do dragão. Um sistema, uma obra, uma operação de marketing.



[1] AAVV, «Matrix XXL Hors compétition. Shoot visuel pour kids mondialisés, Reloaded défriche aussi un nouveau territoire du cinéma», Libération (www.liberation.fr/page.php?Article=110885)

[2]Lançon, Philippe, "Numériques, digitales le goût des autres", matrixité, Libération (www.liberation.fr/page.php ?Article=114286)

[3] Rosnay, Joel de, L’homme Symbiotique, regards sur le troisième millénaire, Editions du Seuil, 1995 p. 104.

[4] Rosnay, Joel de, op. cit., pp. 37-39.

[5] Wiener, Norbert, Cybernetics: or control and Communication in the Animal and the Machine, The Mit Press, Cambridge, Massachusetts, 2ª edição 2000. p. 130.

[6] Wiener, Norbert, op. cit., p. 113 e 179.